Vitor Evangelista
Unbreakable Kimmy Schmidt é uma série de lunáticos. Seus criadores Tina Fey e Robert Carlock são filhos do Saturday Night Live, o maior laboratório de malucos que a América filma e televisiona por mais de quatro décadas. De tão extravagante, a trama de Kimmy foi recusada pela NBC e achou casa na Netflix, lar aberto à visões distorcidas e um afinco pelo humor não-convencional. Lançada em 2015, a primeira sitcom da ‘emissora’ rendeu 4 temporadas, finalizando as aventuras da trupe nova iorquina ano passado.
Junto do anúncio do fim, Fey revelou que desenvolvia um filme interativo que daria continuidade à história. E então Unbreakable Kimmy Schmidt: Kimmy vs. The Reverend chegou com a promessa de colocar quem assiste no controle das decisões dos personagens. Algo que, como o roteiro do seriado cansou de mostrar, já era recorrente da trama: Kimmy Schmidt sempre procurou o caminho mais louco e desmiolado para guiar sua protagonista. A única diferença é que agora temos a ilusão de que nós mesmos apertamos os botões decisivos.
A história de Kimmy vs. The Reverend é simples. Kimmy Schmidt (Ellie Kemper) vai se casar mas, ao encontrar um livro perdido na mochila Jan, a mulher se encafifa com uma medonha ideia. Será que o Reverendo (Jon Hamm) tinha mais de um abrigo subterrâneo, com outras garotas sequestradas? Kimmy, então, interrompe os preparativos da cerimônia com Frederick (Daniel Radcliffe) e parte numa jornada em busca desse hipotético segundo bunker. Titus, Jacqueline e Lilian ajudam a protagonista, independente das escolhas de quem assiste. O filme evidencia bem seu mote principal, mas sabe traçar linhas paralelas onde os coadjuvantes constroem narrativas próprias e completas.
Embora as pontas da trama de Kimmy Schmidt tenham sido atadas no último episódio da 4ª temporada, esse especial interativo é um bem-vindo apêndice. Escrito à oito mãos por Fey e Carlock, junto de Sam Means e Meredith Scardino, o filme atua numa chave de recompensa, tanto para os personagens concretizando sonhos, quanto para quem acompanha esse bando de malucos por cinco anos. A direção de Claire Scanlon sabe manejar o elemento de interação com as bases comum de um filme fechado, com três atos e, pelo menos, uma hora e vinte de duração.
Existe uma linha geral que o filme segue: Kimmy precisa ler o livro que achou na mochila, ela também tem de escolher viajar com Titus e não pode, em circunstância alguma, ser guiada para decisões que vão em desencontro de seus princípios. Se Kimmy é imprudente, o longa interrompe a experiência e explica que, por mais que sejamos nós escolhendo o decorrer da trama, temos que ser fiéis à esses personagens que aprendemos a amar. O mesmo vale para o oposto. Se as escolhas facilitam a história, o filme ‘acaba’, sempre com um desfecho inusitado, para depois retroceder a fita, até a bifurcação que prossegue para o final ‘maior’.
Fazendo uso de seu vasto elenco de estrelas, Kimmy vs. The Reverend dosa bem o tempo de tela das figuras que orbitam a ruiva. Tituss Burgess, indicado ao Emmy de Melhor Ator Coadjuvante em Minissérie ou Filme para a TV, retorna à pele de Titus Andromedon. Agora uma estrela do cinema, ele precisa abdicar de seu próprio egoísmo para ajudar Kimmy no que for preciso. O ator deixa um pouco de lado os trejeitos mais extremos do personagem, atuando em picos de entusiasmo. Esse conta-gotas de emoção engrandece Titus, que transparece evolução, maturidade e um timing cômico mais afiado que nunca. As escolhas interativas do arco de Titus são sagazes justamente por fazerem jus às peculiaridades dele, quando fugimos de sua índole escolhendo um treino à uma soneca, por exemplo, o filme faz questão de parar e reavaliar nossas diretrizes.
Jane Krakowski, estrela de 30 Rock (2006-13) ao lado da própria Tina Fey, é quem encontra limitações no formato interativo. Escanteada dos acontecimentos principais, a agente de talentos lida com as loucuras de um set de cinema. O longa brinca com possibilidades exorbitantes que, no fim, resultam na história acabando abruptamente. Se escolhemos Jacqueline como acompanhante de Kimmy, tragédias acontecem. Se, mais pra frente na história, a loira mentir, consequências desastrosas desmoronam sua luta feminista da temporada final da série. Kimmy vs. The Reverend é preciso quando pesca detalhes dos arcos passados do elenco e insere na interatividade, sempre trabalhando numa chave extremista, ou as coisas dão muito certo, ou descarrilham. Essa decisão de Jacqueline ser o bode expiatória da desgraça diminui e muito o raio de talento de Krakowski que, ofuscada e com grande competição, acabou ficando de fora da categoria de Atriz Coadjuvante em Minissérie ou Filme para TV no Emmy 2020.
As intromissões do elenco, quando as escolhas esgotam o filme antes do esperado, são bem pensadas. Especialmente por dar espaço às figuras da mitologia de Unbreakable Kimmy Schmidt que não encontraram espaço para essa narrativa atual. O raciocínio lento de Mikey (Mike Carlsen) e a felicidade quase ilícita de Mimi (Amy Sedaris, de Bojack Horseman) são jóias raras do filme. Além disso, outro que quando aparece enriquece a tela é Mr. Bankston (Mike Britt), o cidadão que ‘narra’ os créditos iniciais do seriado. Unbreakable, they’re alive, dammit. It’s a miracle! As frases eternizadas pelo remix musical e sua admirável pompa e dicção ganham novos contornos em Kimmy vs. The Reverend. Experimente pular a abertura para ver a bronca que chega na hora.
O cansaço que Bandersnatch provocou em 2018 não é repetido na aventura de Kimmy Schmidt. Enquanto o filme interativo de Black Mirror esbanjava pretensão e um sentimento de grandiosidade mentirosa, o longa de 2020 sabe se divertir com o formato de escolhas. Nunca subestimando a inteligência de quem assiste, Kimmy encara suas escolhas como ovos de páscoa escondidos no quintal. Quando deparamos com cenas inéditas, não existe um fator de obrigatoriedade em farejar por tudo e revisitar imediatamente a trama e as decisões do filme. Esses distintos takes e piadas vão funcionar, no fim das contas, como episódios inéditos de Unbreakable Kimmy Schmidt, feitos para serem apreciados com moderação, sem pressa alguma. Assistir escolhas diferentes no futuro será tão excepcional quando assisti-las no dia da estreia.
Paciência e planejamento foram conceitos chave nos êxitos de Kimmy vs. The Reverend. Diferente da produção de um filme comum, a interatividade do projeto demandou um roteiro mais espesso e encorpado. Atenção aos pequenos detalhes, e uma predileção à piadas e gags visuais, como Jacqueline bebendo com um canudo e Titus pensando em voz alta, tudo isso quando o cronômetro inicia a contagem para o espectador fazer sua escolha. As decisões mais drásticas, e que ‘matam’ a história, servem muito mais como uma recompensa para quem assiste do que para quem as executa em cena. Matar o Reverendo uma porção de vezes pode não se encaixar no cânone da história, mas não há quem negue o prazer que os tiros de bazuca geram em nós, que assistimos impotentes as monstruosidades que o personagem de Jon Hamm cometeu por anos. E roubar no Detetive não foi, nem de longe, a pior delas.
Para a série que consegue fazer humor com qualquer coisa, rir de traumas, ironizar medos e extrapolar a metalinguagem da TV, Unbreakable Kimmy Schmidt mais uma vez entrega o impensável. Colocar no colo de quem assiste, de forma divertida e instigante, o caminho até os créditos finais, nessa aventura interativa que é uma benção na monotonia do isolamento social. Enquanto no mundo real parecemos viver o mesmo dia repetidamente, em Unbreakable Kimmy Schmidt: Kimmy vs. The Reverend podemos reviver os acontecimentos da protagonista na semana de seu casamento, mas dessa vez brincar com as possibilidades e, pela tela da Netflix, andar lado a lado com eles, bem longe de casa.