Vitor Evangelista
Chega a ser cômico escrever um título desses poucas semanas depois da AMC revelar o planos de encerramento para The Walking Dead, mas vamos lá. Após sofrer pausas na pós-produção por conta do coronavírus, TWD exibiu a season finale alguns meses depois do planejado. Num painel remoto da San Diego Comic Con, os produtores anunciaram o lançamento de mais 6 episódios, no início de 2021, para preencher lacunas da temporada atual. Finalizando o arco dos Sussurradores, o seriado se encaminha para dizer adeus mas, mais do que qualquer coisa, existe uma sensação de infinito quando pensamos na crônica de zumbis. E não tem nada a ver com o que você está pensando.
Desde 2015 a série sofre com críticas à respeito do ritmo e duração da coisa toda. A coisa mais fácil que tem é acessar qualquer portal que noticie Walking Dead e encontrar comentários vomitando prepotência, são dizeres de pessoas que nem assistem ao show, mas se acham no direito de meter o bedelho. Existem ainda textos que delimitam, temporalmente, o momento que a série começou a desagradar quem a acompanha, medindo a queda de audiência a partir da inserção do vilão Negan, no fim da 6ª temporada.
Quando estreou no Halloween de 2010, The Walking Dead iniciou um fenômeno. Era uma adaptação dos quadrinhos de Robert Kirkman, Charlie Adlard e Tony Moore. Era TV de prestígio passando na AMC, a emissora que já havia nos trazido Mad Men e Breaking Bad. O que poderia dar errado? A princípio, nada. Os anos iniciais fizeram um sucesso estrondoso e, a cada cara nova dos gibis que pipocava na tela no domingo a noite, a audiência grunhia de felicidade. E, um a um, os arcos originais foram sendo adaptados e aclamados, mudanças aconteciam, é claro, mas o saldo sempre ficava no verde.
A série sempre gostou de trazer o choque cru para seus espectadores. Logo de cara, assistimos massacres, tanques de guerra destruindo prisões e uma gangue de canibais tocando o terror. TWD criava vilões encorpados para desarmá-los aos poucos, rendendo bons dramas e extraindo camadas de atuação dos intérpretes. David Morrissey, que deu vida ao Governador, se deliciava semanalmente, misturando o sadismo com a crueldade. O mesmo preceito caiu no colo de Jeffrey Dean Morgan que, na pele de Negan, fez o barulho mais alto da franquia até então.
Os leitores dos gibis já sabiam o que a chegada de Negan significava para a série, e mesmo assim foi um choque tremendo assistirmos, impotentes, os assassinatos de Glenn (Steven Yeun) e Abraham (Michael Cudlitz). Lembro que, à época desses acontecimentos, The Walking Dead me frustrou muito. Aconteceu o seguinte: o 6×16 acabou com Negan matando alguém, mas a câmera não mostrou quem recebeu o taco de beisebol no crânio. A resposta veio quase meio ano depois, na estreia da 7ª temporada. Mas, àquela altura, muita gente ficou de saco cheio (com razão) da covardia de Scott M. Gimple, o showrunner do momento.
Gimple teve um início promissor no seriado. Ele assumiu o posto no ano 4, cozinhando o arco do Fim da Prisão, além de servir episódios ‘separados’ de cada personagem com maestria, cutucando com voracidade as histórias do Terminus, dos Canibais e das comunidades sedentárias, Alexandria, Hilltop e O Reino. O showrunner, todavia, estava preso ao engessado formato de exibição de The Walking Dead e, com o tempo, virou refém dos 16 episódios anuais, um número exorbitante para a TV feita nessa década.
Com isso, The Walking Dead começou a perseguir o próprio rabo. Negan e os Salvadores mataram o ritmo e o fôlego da série, esse é aquele momento que citei acima, quando as televisões foram desligadas no domingo, e os antigos fãs investiam o tempo em xingamentos e reclamações na internet. Essa maré de azar se arrastou por dois anos. Scott M. Gimple parecia ter medo de dar cabo à trama de Negan, sempre esticando o inesticável. A verdade, por mais dolorosa que seja para eu admitir, é que The Walking Dead se tornou uma série chata. Os longos capítulos se enchiam de prepotência, querendo dar sustância até ao cachorro da vizinha, personagem que não merecia nada disso.
Angela Kang veio para mudar a parada. Ela já era roteirista de The Walking Dead desde 2012, responsável por capítulos como a morte de Dale, na temporada 2, e a de Beth, na 5. Ou seja, ela manjava qual história queria contar, e como fazer isso. Assumindo o posto de Gimple no 9º ano do seriado, Kang injetou vida ao seriado. Sua abordagem menos pragmática e mais ‘porra-louca’ da adaptação dos gibis surpreendeu os acomodados com o maneirismo de seu antecessor.
E não foi só a abertura que mudou com a entrada de Kang, a trama também parecia revigorada. Foi sob sua tutela que Rick (Andrew Lincoln) deu adeus, e a história começou a usar de saltos temporais para dar agilidade aos roteiros. A decisão cirúrgica de destacar Judith (Cailey Fleming) atou pontas para a série, quase como Kang se desculpando por decisões burras que foram tomadas antes de seu comando. Matar Carl (Chandler Riggs) no momento mais anticlimático e banana mole possível pode ter sido planejado como manobra de coragem, mas fugiu muito disso.
Quanto à saída do protagonista Rick, não tinha muito a ser feito. Andrew Lincoln revelou estar exausto das rotinas de gravação, e optou por zarpar da série, mas prometeu uma trilogia de filmes para seu personagem. Outra que beijou adeus ao elenco foi Danai Gurira, a destemida Michonne. É claro que a decisão foi feita de modo temporário, e a samurai saiu de cena com missão e arco delimitados, entretanto, a carreira no cinema de Gurira no Universo Cinematográfico da Marvel, como a Okoye de Pantera Negra, pode ter sido o que falou mais alto. As telonas, no fim das contas, são muito mais atraentes que as telinhas.
Por mais que The Walking Dead dê pinta de cinema, com a cinematografia e os efeitos alinhados à sétima arte, não é a mesma coisa atuar nos dois meios. Tanto pela rotina, como já apontado por Lincoln, quanto pelos compromissos. TWD é um fenômeno nos Estados Unidos, existem coletivas, turnês de imprensa, as estreias de temporadas e exibições especiais. Quem parece estar à vontade com tudo isso é a dupla Norman Reedus e Melissa McBride. Sem carreiras proeminentes fora da série, Daryl e Carol são o carro-chefe da franquia. O protagonismo é tanto que a AMC anunciou um spin-off deles após o fecho da 11ª temporada. The Walking Dead vai acabar, mas não tem fim.
Fora a série focada em Daryl e Carol, a franquia vive de outras formas. No ar desde 2015, Fear The Walking Dead foi a primeira derivada televisa da original e, vira e mexe, elas trocam figurinhas. Dwight (Austin Amelio) e Morgan (Lennie James) já fizeram esse bate-volta entre as produções. No domingo de exibição da season finale da 10ª temporada, a AMC lançou o piloto de The Walking Dead: World Beyond, que terá foco na primeira geração de pessoas a crescer durante o apocalipse zumbi. Os quadrinhos originais acabaram, de surpresa, no ano passado, depois de 13 anos de publicação e 193 edições, fora os especiais. Existem também a franquia de jogos da Telltale, as web-séries, e os livros.
Voltando aos méritos da 10ª temporada, o comando de Angela Kang soube como brincar com as marionetes e os mortos-vivos. O público se sente parte intrínseca do grupo de sobreviventes e toda baixa soa pessoal e dolorosa. A escassez do elenco original, em sua maioria morto ou desaparecido, fortalece o vínculo com a audiência, essa que tem mais noção do todo do que os personagens. Isso é positivo por alguns motivos: primeiro, não somos feitos de burro, como no passado. Lembro da 6ª temporada, quando Glenn sumiu por alguns capítulos, e a série até retirou o nome do ator dos créditos iniciais, só para confundir e, momentos depois, anunciar a pegadinha do malandro de que o coreano estava bem vivo, no fim das contas.
Dessa vez, a banda toca diferente. Apenas aqui do lado de fora da TV sabemos que Rick não morreu, mas o luto dos personagens na trama é perturbador e dolorido, nunca soando gratuito. O efeito da vida do xerife, e sua ausência, permitem essa dicotomia dos sentimentos ‘mentirosos’, por mais temporários que sejam. A trilogia de Andrew Lincoln não tem data de estreia ou pontos de roteiro anunciados, não sabemos nem se Rick voltará a dar as caras no seriado e, nisso, aguardamos ansiosos, junto dos sobreviventes. Nesse momento, compartilhar a angústia enriquece o núcleo dramático.
Quando Connie (Lauren Ridloff) desaparece por alguns episódios, seu nome permanece na abertura e o sumiço é vital para a evolução do núcleo de Carol, diferente da gratuidade da ‘saída’ de Glenn. Mas The Walking Dead gosta de repetir erros, isso é inevitável para a série que insiste em dezesseis episódios por ano. A décima temporada teria fôlego para, no máximo, uma dúzia de capítulos, para entregar a união de calmaria e sanguinolência. A ameaça de Alpha (Samantha Morton) não chega a entrar no ciclos de Negan anos atrás, mas a repetição é novamente regra maior.
A parte dois da temporada corre mais rápido que a inicial, mas matar Alpha, uma porção de episódios antes da ‘finale’, foi um tiro no pé. Antes disso, vou relembrar um acerto recente da série, na intenção de inverter sua lógica cômoda. No ano passado, o grande clímax era o Massacre das Estacas, quando Alpha matou várias pessoas de destaque e exibiu suas cabeças decepadas e zumbificadas na fronteira do território dos Sussurradores. Isso aconteceu no 9×15, um antes da finale, que usou um salto temporal para inserir vitalidade ao luto e não exibir o choque pelo choque para acabar o ano com queixos caídos e nada de respostas. Essa manobra foi a mais correta para estabelecer ainda mais o perigo que Alpha, Beta (Ryan Hurst) e sua Horda representavam.
Dessa vez, a morte da vilã careca foi gratuita, ao menos naquele momento. Fora isso, alocar na sequência um episódio de Michonne, desprendido do núcleo principal, foi mais burro que lavar o quintal na hora da chuva. É claro que a personagem de Danai Gurira merecia um momento solo para brilhar e dizer adeus, mas, meu deus, não existia planejamento melhor? What We Become, o 10×13, acompanha Mich e Virgil (Kevin Carroll) numa jornada saudosista e macabra pela mitologia de The Walking Dead. Passado isso, as reverberações da derrota e humilhação de Alpha soaram diluídas, mais do que qualquer coisa. Beta se enraiveceu, Negan revelou o plano com Carol e Daryl organizou a defesa dos mocinhos, tudo isso por mais horas que o necessário. E chegamos ao ‘último’ episódio.
Exibido depois de quase meio ano do 10×15, A Certain Doom encerra um longo capítulo para a série da AMC. Os Sussurradores são passado, ainda bem. A investida final de Beta e sua Horda foi catártica e incisiva, mas faltou coragem. Pode ser que a série esteja guardando baixas significativa para o ano que vem, mas a maior ameaça ao time do bem não matar ninguém de destaque desanima o âmago do todo. Até mesmo o retorno de Maggie (Lauren Cohan) pareceu deslocado do centro narrativo, foi lindo revê-la, é claro, mas, novamente, com o timing todo errado.
A adição de personagens como o mascarado amigo de Maggie e a Princesa (Paola Lázaro) são como as agulhas de acupuntura que TWD é viciada em usar. São caras novas dos gibis, que estimulam pontos dormentes da produção, soprando o fôlego que cada fecho de temporada implora por. A Nova Ordem Mundial tem tudo para rimar com um corporativismo Illuminati armamentista, ao invés de repetir a selvageria e primitivismo dos Sussurradores. Para acabar de vez, The Walking Dead parece ter de enfrentar os humanos e, como nos últimos dez anos, nós lutaremos junto.
The Walking Dead sempre foi sobre encontrar a humanidade nos resquícios do medo e da crueldade, e o caminho está certo quando percebemos que, numa cena de conclusão após o massacre no precipício, a série faz seu público chorar de emoção. Somos parte da família de sobreviventes, independente de quanto tempo mais os zumbis continuarem caminhando por aí. Mas isso Rick já falou anos atrás, we are the walking dead.