Marcela Zogheib
Quando falamos de musicais, alguns nomes vêm imediatamente à cabeça. Clássicos contos de bruxas cantados por Bernadette Peters, felinos noturnos cantando sobre amor e memórias, romances proibidos com fantasmas mascarados… Tudo isso morou por anos na cabeça de Jonathan Larson. O grande nome da Broadway inovou e mudou a cena do teatro musical por anos ao escrever o fenômeno Rent, que ficou em cartaz por muito tempo, sendo remontado milhares de vezes em diferentes palcos ao redor do mundo.
Mas antes de Rent, existiu tick, tick… BOOM!. Nesse musical originalmente estrelado por seu próprio criador, acompanhamos a história de Jon, um nova-iorquino aspirante a compositor no início dos anos 90. Ele está preocupado com a chegada dos 30 anos, se comparando com grandes nomes que haviam conquistado muitas vitórias antes de atingir a fatídica idade. No longa-metragem, dirigido por Lin-Manuel Miranda e roteirizado por Steven Levenson, vemos mais detalhes da vida de Jonathan que tornam a obra original um trabalho semi-autobiográfico, traçando paralelos das vivências reais de Larson com as dos personagens que ele criou.
Jonathan Larson era uma estrela cadente. O gênio aclamado da Broadway, responsável por criar um dos musicais mais ovacionados do meio, foi embora cedo demais, no auge de seus 35 anos, na noite da estreia Off-Broadway de Rent. Mas seu legado vive, muitos anos, pelos teatros lotados em suas produções, sem contar o longa-metragem, as produções internacionais e, principalmente, as pessoas impactadas pela vida e obra do compositor que jamais assistiu sua composição. Relatos daqueles que conheceram Jonathan destacam a sua genialidade, carisma, criatividade e muito sobre sua pressa. A família e os amigos do escritor dizem que ele nunca parava, que ele nunca queria perder tempo, quase dizendo que ele escrevia como se seu tempo estivesse acabando.
O longa se inicia com uma pequena introdução sobre Jonathan (Andrew Garfield), mostrando cenas de sua família e do que Rent se tornou e o tornou. Nos apresentando a uma das tradições mais bonitas do Teatro, o filme é dedicado ao idealizador de sua história, com o mesmo ritual que inicia cada apresentação de suas peças, sempre através de uma dedicatória à importância e legado de Larson. Logo somos introduzidos ao queridinho das massas e dos estúdios, e Andrew Garfield está na pele do nosso protagonista, recriando umas das performances mais conhecidas da produção, 30/90. A partir daí, o trabalho de edição, que faz as cenas transitarem de forma muito natural e coerente, dá o tom que o longa segue durante toda sua duração, proporcionando a indicação ao Oscar de Melhor Montagem de 2022, creditada a Myron Kerstein e Andrew Weisblum.
A atuação de Andrew Garfield externaliza o amor que o ator tem pelo personagem, construído com a preocupação em fazer jus a uma figura tão importante. As palavras de Jonathan, registradas na memória coletiva daqueles que amaram e amam o compositor, transparece em olhares, trejeitos e maneirismo representados com naturalidade e leveza pelo intérprete. A indicação ao Oscar e ao SAG, e as vitórias no Globo de Ouro e Hollywood Critics Association Awards não vieram sem fundamento, desde seu primeiro momento em tela, o ator some e se revive como seu personagem.
Os personagens são espelhados dentro e fora dos palcos, e Jon tem um grupo de pessoas que o apoia e está com ele na sua jornada para alcançar sucesso com sua peça de teatro Superbia. Karessa Johnson (Vanessa Hudgens) e Roger Bart (Joshua Henry) performam ao seu lado, representando nos palcos aqueles que cercam Jonathan. Na lanchonete Moonshine, Freddy (Ben Levi Ross) e Carolyn (Michaela Jaé Rodriguez) trabalham servindo mesas ao lado do protagonista, compondo a família que ele busca nos ambientes. Seu melhor amigo, Michael (Robin de Jesús), sonhava em viver a vida como ator, mas desistiu para trabalhar em um escritório, onde ganha o suficiente para abandonar a vida boêmia e se mudar do apartamento em que morava com Jon.
Um ponto bastante explorado nas produções de Larson é o surto da epidemia de AIDS, que abalou o mundo entre os anos 1980 e 1990. O compositor traz isso de forma muito vívida e presente na vida de seus personagens, sendo Michael um exemplo, principalmente por ter sido inspirado no melhor amigo de infância de Jon, que foi diagnosticado com HIV. Outro ponto essencial da trama é Susan (Alexandra Shipp), a namorada de Jonathan. Ela é uma dançarina que está cansada da vida brutal de alguém que vive das artes em Nova Iorque e está no dilema entre continuar com Jon, ou se mudar para dar aulas no subúrbio da cidade. Os conflitos do casal são apresentados na música Therapy, em que discutem o que querem falar um para o outro, o que acham que o outro quer ouvir e o que vai ser da relação deles.
Como um clichê sempre discutido em conversas sobre musicais, há quem não veja sentido em sequências em lanchonetes onde os clientes e garçons param o que estão fazendo para cantar justamente sobre o que estão fazendo. Mas Sunday já nasce como um tributo à composição de mesmo nome, com autoria de Stephen Sondheim para Sunday in the Park with George, que ficou ainda mais delicada e simbólica após a morte do compositor em 2021. E é uma das cenas na lanchonete em que o trabalho da montagem mais transparece, encaixando perfeitamente cada movimento e apresentação dos intérpretes da música com naturalidade às cenas anteriores e posteriores.
De volta à relação de Larson com o veterano da Broadway (interpretado por Bradley Whitford), o longa se preocupa em retratar como ela impactou a jornada do protagonista. Uma cena, em específico, mostra a participação de Jon em um workshop, onde Sondheim sugere a inserção de mais uma música na obra do compositor, desencadeando uma série de ideias em sua mente para criar em seu musical e direcionar o rumo de suas produções. Além disso, o verdadeiro Stephen Sondheim realmente faz uma participação no filme, mostrando a inversão do impacto, em que Jonathan Larson também se tornou respeitado por seu ídolo.
A junção de Lin-Manuel Miranda com Jonathan Larson traz medidas perfeitas com milhares de referências como resultado. Os dois amantes do teatro musical cresceram com o sonho de criar algo novo para trazer um público diferente para o palco e a plateia da Broadway. Jonathan esteve sempre entre dois mundos, por ter crescido na era de auge da MTV via um desinteresse na sua geração em frequentar um ambiente de musicais que não representavam as questões que viviam. E apesar de amar musicais como Cats e Les Misérables, ele entendia que estavam distantes das vivências de seus amigos, então sonhava em criar uma mistura que trouxesse toda essa excitação jovem regada de ritmos atuais para um local que usualmente era frequentado por um público mais tradicional.
Em seus musicais, Larson sempre buscou trazer ritmos e letras que falassem com as pessoas da sua geração, e indo atrás disso, transcendeu barreiras que ele sempre acreditou que o teatro não deveria ter. Já Lin-Manuel Miranda iniciou sua carreira de compositor contando histórias do seu bairro latino nos palcos da Broadway com In The Heights. Em sua obra principal, Hamilton, reescreveu a história dos Estados Unidos com um elenco constituído por pessoas que foram tradicionalmente apagadas dessa narrativa, utilizando músicas que falassem com um novo público.
A direção de Lin traz um olhar que só ele poderia ter. A enciclopédia humana dos musicais sabe onde colocar os mínimos detalhes, desde os pingos nos is, passando pelas Elizas e Angelicas nas cafeterias com tiaras referenciando vestidos, até os boêmios cantando sobre gastar dinheiro com brunch de domingo. A escolha de direção foi tudo menos à toa, e a genialidade de Lin preenche todas as lacunas deixadas pela partida prematura de Larson. Além de tudo, o diretor também já tinha uma conexão com tick, tick… BOOM! dos seus dias de ator, onde interpretou Jon em uma produção do musical em 2014.
Dos grandes números extravagantes até as minúcias de caracterização, o longa segue à risca o padrão obsessivo de perfeição do diretor que transparece em cada cena. Nos números Therapy e Swimming é possível ver e sentir aquilo que Jonathan sentia e com certeza Lin-Manuel também. Assim como seus diretores, seus personagens sofrem paralelos tentando conciliar a vida real com seus sonhos de sucesso, em que Jon e Hamilton vão sempre além por aquilo que acreditam.
Jonathan Larson criou porque era isso que ele sabia fazer. O sucesso que o acompanhou foi o resultado de uma vida doada à sua arte e o amor por tudo e todos que o cercavam. tick, tick… BOOM! é fruto da tentativa de expor os medos, as vontades e todas as questões que cercavam alguém tão singular que soube falar com uma pluralidade que atravessou todas as fronteiras de gerações. Apesar dos números, do sucesso, da lucratividade, dos prêmios, sua obra, vida e legado devem ser, acima de tudo, medidos em amor.