Anna Clara Leandro Candido
Por vários séculos no passado, narrativas como Star Wars e O Senhor dos Anéis basearam-se nos confrontos entre o bem e o mal para construir suas histórias e universos. Muitas vezes, os autores caracterizam a personalidade e modo de viver dos seus personagens com base em um desses dois lados. Por isso, era sempre fácil distinguir o mocinho do vilão e guiar o afeto do público. Até que um dia, ambos os lados convergiram e um novo tipo de personagem nasceu: pessoas que não são heróis nem vilões e mesmo estando ao lado dos mocinhos não compartilham do mesmo jeito de resolver as coisas que eles. Os chamados anti-heróis.
É com essa definição em mente que The Great Pretender constrói seu universo. Um anime criado pela Netflix em parceria com o estúdio Wit, que possui como protagonistas um grupo carismático e divertido de vigaristas internacionais. A segunda parte da história chegou em novembro no catálogo do streaming e conquista os espectadores com seus personagens carismáticos, aventuras divertidas, trilha sonora cativante e uma animação com um estilo deslumbrante.
No primeiro episódio, Juntos em Los Angeles, o espectador é apresentado a Makoto Edamura, um jovem japonês que ganha a vida aplicando pequenos golpes, como vender um produto ineficiente para idosos ou abater carteiras de visitantes desavisados. Ele se autodenomina o maior vigarista do país, até que, certo dia, tenta roubar de um turista e se vê envolvido dentro uma aparente sequência de eventos aleatórios que o levam a ficar pendurado de cabeça para baixo no letreiro de Hollywood.
Os eventos que o colocaram nessa situação, no começo, parecem desconexos. Mas isso é só até ele descobrir que o turista em quem tentou aplicar um golpe mais cedo, a velhinha para quem vendeu o filtro de água e até mesmo seu comparsa, fazem parte de um grupo internacional de vigaristas que possuem como alvos pessoas ricas e más no mundo inteiro. Desse ponto em diante, tanto Makoto quanto o espectador são arrastados para dentro de várias armações, golpes e trapaças ao redor do globo.
Logo no começo do anime, o que mais salta aos olhos do espectador em The Great Pretender é a estética da animação. O Wit Studio, também responsável por animes como Attack on Titan e Vinland Saga, é conhecido pela qualidade de suas produções e não economizou esforços para produzir esse. Mas os aplausos devem mesmo ir ao renomado designer Yoshiyuki Sadamoto, mais famoso por seu trabalho com o mangá de Evangelion e Wolf Children. O animador foi capaz de criar para a obra lindos cenários de várias partes do mundo. Assim como retratar personagens de diferentes nacionalidades e etnias, deixando transparecer em cada traço deles um pouco de suas personalidades.
Em entrevista ao site Anime Trending e Myanimelist, Sadamoto foi questionado sobre qual parte do mundo real ele mais ficou mais orgulhoso de ter animado e logo respondeu ’o tráfego’. Contudo, se a mesma pergunta fosse feita a alguém que acabou de assistir os episódios do anime, a resposta não viria tão rapidamente. Seja com os céus de Singapura ou com as casas de Paris, The Great Pretender é tão repleto de detalhes e cores em uma qualidade deslumbrante que fica difícil escolher um destaque.
A animação, porém, não estaria completa sem a bela e singular paleta de cores utilizada no anime. Com ela, Singapura vibrou sob cores fortes e claras, enquanto Los Angeles foi retratada pela transição entre tons frios e quentes, como o vermelho e amarelo. Segundo o diretor, o estilo do anime foi concebido durante a fase de storyboard e inspirada nas obras de um artista não muito conhecido chamado Brian Cox. Mas, uma coisa é certa, os estilos de animação e cores de The Great Pretender são um dos pontos altos que marcam essa obra e ajudam a contar a história dos personagens.
Se a animação e a paleta de cores são a estrutura base para o enredo, as músicas são o coração da narrativa. A trilha sonora principal do anime é toda trabalhada no jazz, trazendo um ritmo rápido e animado que a qualquer momento pode se transformar em uma explosão, exatamente como os golpes planejados pelos personagens. O jazz inserido nas cenas de ação e o uso da música para contar a história lembram o trabalho de Yoko Kanno no clássico e aclamado Cowboy Bebop, dirigido por Shinichiro Watanabe.
Entretanto, o anime não utiliza apenas do jazz para compor sua narrativa. Artistas como Quincy, Max e Emarie também tiveram suas produções presentes na obra e contribuíram para construir os arcos de desenvolvimentos dos personagens. Mas nenhuma dessas participações foi tão icônica, presente e importante quanto a música que inspirou o nome, o encerramento e a própria história do anime: Great Pretender de Freddie Mercury.
The Great Pretender é o primeiro anime a licenciar uma música de Freddie Mercury na história. A composição é usada não só como título da obra, mas também como ending em uma versão do clipe com uma animação dos gatos verdadeiros do cantor, e também serviu de inspiração para a história de um dos personagens da trama em específico. Ter uma música tão famosa e aclamada pelo mundo inteiro como parte da produção convém com o objetivo do roteirista Ryota Kosawa em criar uma história que agrade um amplo público, não só os fãs de anime. E que sucesso ele teve!
Além da variedade de estilos musicais, há também uma diversidade dentro do elenco de The Great Pretender. Como a história segue um grupo de vigaristas internacionais é quase impossível não incluir pessoas de diferentes países dentro da trama. A narrativa é dividida em diferentes cases que se passam em lugares novos a cada golpe. Os personagens viajam de Los Angeles à Singapura e depois da França ao Japão, sem contar as menções a outros países em que eles já estiveram. Até mesmo o Brasil já foi alvo desses famosos e carismáticos chantagistas.
Assim, com plena atenção aos detalhes e variedades de nações presentes na obra, o anime consegue passar muito bem esse tom internacional para o público. Um detalhe interessante de se notar logo no começo, é que quando Makoto encontra Laurent, o turista e líder do grupo, ele fala em inglês com o personagem e essa dinâmica é mantida até certo ponto do primeiro episódio, depois todos eles falam em japonês. Mas a todo momento The Great Pretender faz questão de indicar o idioma no qual o personagem está falando ou enfatizar a necessidade deles em aprender essa língua nova.
O próprio grupo é formado por pessoas de diferentes nacionalidades e esse fator traz certa riqueza para os arcos de desenvolvimentos dos personagens. Tanto Abigail quanto Cynthia, membros da equipe de vigaristas, possuem boas histórias construídas dentro da obra e diversas vezes flertam com diferentes estereótipos sem nunca se estabelecer em um só, gerando uma profunda e interessante complexidade para suas personas. Já Makoto e Laurent são o centro da narrativa e os constantes atritos entre suas diferentes personalidades, maturidade e valores morais dão vida a diversas cenas engraçadas e conversas profundas no decorrer da história.
O anime também trabalha com temas e críticas sociais maduras com as quais muitas pessoas ao redor do mundo podem se identificar. The Great Pretender traz à tona independência emocional, as guerras no Oriente Médio, machismo, discriminação social e racial, assim como tráfico de menores e de drogas. Temas pesados e complexos demais para serem abordados em outras obras, mas que é feito com maestria nessa. Essa proximidade com a realidade não só permite discussões profundas, mas traz também várias referências e easter eggs. Possibilitando, até mesmo, que um dos alvos do grupo seja uma versão animada do ex-presidente Donald Trump.
Contudo, no final das contas, esse ainda é um anime sobre vigaristas aplicando grandes golpes milionários contra as mais famosas e ricas pessoas ao redor do mundo. Se a história não tiver um roteiro e narrativa que prende o espectador do início ao fim, de nada vale a trilha sonora ou a animação da obra. Pois bem, esse não é um problema que The Great Pretender possui. O roteiro escrito por Ryota Kosawa é tão complexo quanto os planos da gangue. Ele manipula o espectador de maneira que, em certo ponto da história, você não sabe se pode acreditar em mais uma palavra ou ação que seja dita ou feita pelos personagens.
Cada uma das cenas que parecem aleatórias aos olhos do público, convergem de acordo com o plano traçado anteriormente. Mesmo que a maioria de suas estratégias sejam improvisadas, no final, cada detalhe foi levado em conta durante o planejamento. O único mais confuso que o espectador é o próprio personagem principal Makoto Edamura e mesmo ele poderá te surpreender se deixar a guarda muito baixa. Por mais que os planos mirabolantes da equipe deixem a história mais complexa e exijam uma atenção extra do espectador, uma hora tudo se encaixa de maneira que o faz querer ser enganado mais uma vez.
The Great Pretender é uma revolução tanto para a indústria dos animes quanto para o catálogo da Netflix. É uma história caótica mas cativante, divertida porém séria, que envolve o espectador nos mais emocionantes golpes internacionais enquanto discute e apresenta diversas críticas sociais e diferentes lugares ao redor do mundo. Tudo isso combinado à uma animação de qualidade com um estilo singular e uma trilha sonora marcante. O anime poderia facilmente ser transformado em uma série ou filme pois, assim como o roteirista desejava, é uma história para todos os públicos, seja você fã do gênero ou não.