Costanza Guerriero
Se você escolhe se esquecer de algumas coisas, isso é o mesmo que mentir? Girando em torno dessa indagação, a minissérie The Dropout: A História de uma Fraude conta a história da fraude da empresária americana Elizabeth Holmes (Amanda Seyfried) e sua startup de biotecnologia, a Theranos. A produção mostra o absurdo do mundo corporativo das startups, ao mesmo passo que satiriza a cultura dos investidores do Vale do Silício. Como cereja do bolo, ainda aponta uma problemática contemporânea muito real, que é a tendência das pessoas acreditarem e apostarem nas aparências, apenas porque as agrada.
The Dropout é uma produção original do Hulu, exibida no Brasil pelo Star+. Antes mesmo de chegar à plataforma digital, a história de Elizabeth Holmes já era conhecida pelos fãs de true crime, por meio do documentário do HBO Max, A Inventora. Contudo, a minissérie criada pela produtora executiva Elizabeth Meriwether (New Girl) foi baseada no podcast homônimo, gravado em 2019 pela ABC News. Assim, a obra entra para a lista das ficções baseadas em crimes reais, juntando-se a Dopesick na categoria de fraudes envolvendo a indústria médica, e que parecem bizarras demais para serem verdade.
O propósito de Elizabeth Holmes sempre foi claro: se tornar uma empresária de sucesso por meio de uma grande invenção, tal qual ocorreu com o homem do pôster em seu quarto, Steve Jobs. Desta forma, ela nunca foi uma jovem comum: aos dezenove anos, desistiu da sua graduação em Engenharia Química na Universidade de Stanford, para investir na Theranos (junção das palavras “Terapia” e “Diagnóstico” em inglês). A startup prometia uma tecnologia que executasse cerca de duzentos exames de diagnóstico com apenas uma gota de sangue. O grande problema dessa ideia, que assegurava render bilhões de dólares, era não ser cientificamente possível, mesmo após os treze anos nos quais a empresa prosperou como uma das mais promissoras do Vale do Silício.
Suco verde após suco verde, a narrativa segue narrando como a jovem Elizabeth conseguiu chegar no topo do mundo das startups e sua queda, que ocorreu tão rapidamente quanto sua ascensão. A minissérie, dividida em oito episódios, parece apresentar duas partes distintas. A primeira, nos mostra o começo da jornada de Holmes, no formato de uma drama biográfico. Situada nos corredores de Stanford e nos laboratórios de engenharia biomédica, conhecemos a protagonista como uma jovem verdadeiramente interessada na ciência e com ideias revolucionárias. Também é abordada a estranha relação da personagem com Sunny Balwani (Naveen Andrews), um homem milionário que tinha idade para ser seu pai, e que mais tarde viria a ser o COO da Theranos.
Por outro lado, na segunda metade de The Dropout, a trama se transforma quase em um thriller corporativo, e ficamos a par de como Elizabeth se tornou uma farsante. Assim como a sua empresa, tudo sobre ela era uma mentira, a qual se sustentava apenas pelas aparências. No seu escritório amplo, grande e iluminado, a empresária construiu sua persona caricata de CEO. Sempre se espelhando no seu ídolo Steve Jobs, o guarda-roupas do personagem é composto apenas de trajes executivos e blusas de gola alta pretas. Nesse figurino solene, ela proferia frases de efeito sobre empreendedorismo, ao invés de vestir seu antigo jaleco e ir para os laboratórios tentar fazer seu produto funcionar. Em determinado momento, a jovem altera até mesmo o seu jeito de falar, forçando um esquisito e quase vergonhoso engrossamento da voz, na tentativa de ser mais respeitada como mulher na indústria farmacêutica.
É aqui que a minissérie aproveita para tirar sarro da cultura dos CEOs. Elizabeth se torna especialista no linguajar do engodo corporativo e consegue conquistar todos os investidores, que antes duvidavam dela, com muita ‘puxa saquice’ e apelando para o frágil ego dos homens brancos e velhos do ramo tecnológico e farmacêutico. Assim, a Theranos se torna uma empresa de 9 bilhões de dólares, sem nunca ter apresentando ao menos uma prova concreta da eficácia do seu modelo de diagnóstico.
O ritmo de The Dropout: A História de uma Fraude é bom, a trama rapidamente engata e envolve o espectador no caso, tão absurdo que nem parece ser real. Ao acompanharmos as mentiras de Elizabeth e Sunny, também vemos a ex-universitária cheia de sonhos e ambições se converter em uma golpista que de nada entende sobre a sua própria tecnologia – e honestamente parece nem se importar. O único ponto que vale para a farsante é sua auto imagem de empresária, que, como ela tanto quis, chegou a ser comparada a ‘versão feminina’ de Steve Jobs.
Inclusive, o criador da Apple serve como uma marca temporal na trama. Ao passo que os episódios se desenrolam em elipses temporais, o crescimento da Theranos é situado no tempo da série por meio dos lançamentos dos modelos de iPhones e pela própria vida de Jobs. Quando a morte do magnata acontece, é justamente quando se inicia a investigação do jornalista John Carreyrou (Ebon Moss-Bachrach) sobre a startup, que dá início ao fim da farsa de Elizabeth.
Sem dúvidas, o ponto forte da produção é a atuação excepcional da indicada ao Oscar Amanda Seyfried (Mank), que dá um show de emoções, ou expressa a falta delas na pele da estranha e obcecada empresária. Seyfried compreende Elizabeth desde suas danças esquisitas, até o jeito desengonçado de correr e o engrossamento da voz. A atriz se baseia nos trejeitos e maneiras falsas de falar da personagem, mas, em determinado momento, se apropria desta de tal forma que quase nos convence da legitimidade de Elizabeth – isto é, se não fôssemos cúmplices das suas mentiras desde o primeiro episódio, Estou com pressa. O olhar compenetrado e alucinado, juntamente com a escolha da direção de utilizar frequentes close-ups na personagem, são momentos nos quais ela quase quebra a quarta parede e nos remete ao consagrado “Kubrick Gaze”, coroando a atuação da atriz como uma das melhores de sua carreira.
Além de Seyfried, The Dropout também conta com atuações relevantes dos demais atores escalados, que, ao longo da trama, ganham mais espaço. Visto que a farsa de Elizabeth por si só não seria capaz de sustentar uma série com oito episódios de aproximadamente cinquenta minutos cada, a direção investe em se aprofundar nos arcos dos personagens secundários, contribuindo com a sua valorização. Entre os nomes de destaque temos Naveen Andrews (O Paciente Inglês), que entrega um complexo Sunny na parceria de romance e esquemas com a personagem principal, e William H. Macy (Fargo), como o vizinho inflexível e vingativo, uma das principais fontes da denúncia da fraude da Theranos. Entre outros nomes conhecidos na produção estão Dylan Minnette (13 Reasons Why), Stephen Fry (V de Vingança), Michaela Watkins (Casual), Sam Waterston (Grace e Frankie) e Kurtwood Smith (Robocop).
A direção dos capítulos está distribuída entre três diretores, que deixam transparecer as marcas dos seus outros trabalhos. Os primeiros episódios ficaram nas mãos de Michael Showalter, ainda fresco do seu último projeto, Os Olhos de Tammy Faye. Showalter traz para The Dropout a experiência de ter trabalhado com outra história baseada em fatos reais, na mescla de acompanhar o desenrolar da vida de uma mulher protagonista e expor uma fraude americana para o mundo. Francesca Gregorini (Killing Eve), por sua vez, se encarrega de encaminhar a história da queda de Theranos e direciona o cair das máscaras de Elizabeth e Sunny. Por fim, Erica Watson (Expresso do Amanhã) toma frente do desfecho da narrativa, entregando, no capítulo final, uma das cenas mais reveladoras e viscerais da minissérie, quando vemos o momento exato no qual a personagem de Seyfried se dá conta de sua ruína.
Um ponto negativo da produção é o desaparecimento repentino de alguns rostos, os quais em determinado momento foram importantes para a trama. Diferentemente do arco de Ian Gibbons (Fry), químico chefe dos laboratórios da Theranos e cujo trágico arco é bem amarrado, a história de outros personagens acaba sumindo, sem ganhar uma devida finalização. Esse é o caso de personagens como Rakesh (Utkarsh Ambudkar) e Don Lucas (Michael Ironside), o primeiro investidor que Elizabeth consegue ludibriar.
The Dropout conseguiu marcar presença no Emmy 2022 com as indicações a Melhor Série Limitada ou Antologia, um dos principais troféus da premiação, e, é claro, pela atuação marcante de Amanda Seyfried, sendo a primeira indicação da atriz ao prêmio, na categoria de Melhor Atriz em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme. Além disso, o belo mosaico de atores coadjuvantes rendeu a nomeação a Melhor Direção de Elenco em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme, fruto do trabalho de Alison Goodman, Jeanie Bacharach e Mark I. Rutman. Por fim, dois dos três diretores apareceram na categoria Melhor Direção em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme: Michael Showalter, pelo episódio Suco verde, e Francesca Gregorini, por As irmãs de ferro.
Lançado no mesmo ano que a produção da Netflix Inventando Anna, igualmente uma mistura de realidade e ficção, The Dropout: A História de uma Fraude tinha a missão de trazer algo novo para o gênero do true crime, para que não se tornasse uma obra repetitiva no mar de ‘baseado em fatos reais’. Apesar da minissérie não ter conseguido abordar a narrativa de uma forma completamente original, a história por si só já é tão inacreditável e instigante que configura um bom entretenimento, sobretudo para aqueles que gostam de passar nervoso com a cara de pau e picaretagem dos personagens. Ainda que não tão cirúrgica e prestigiada quanto Dopesick, o potencial é bem aproveitado. Afastando-se de Anna Delvy, a série se diferencia e envolve o telespectador por conta da fraude da Theranos envolver a saúde e a vida das pessoas, enquanto a golpista da Netflix ter brincado ‘apenas’ com bancos bilionários.
Ao final dos oito capítulos de The Dropout, fica claro que Elizabeth só prosperou na sua mentira por tanto tempo porque ela própria também era uma. A produção escancara a realidade de um mundo corporativo, que, cego pela ganância, acaba se deixando enganar pelas aparências do que seria um bom negócio. Em uma realidade na qual startups surgem e se dissolvem como areia ao vento, basta surgir uma ideia aparentemente promissora, vinda de uma pessoa bem apresentada e de belas palavras, para que bilhões sejam movimentados. No final das contas, escolher se esquecer de certas coisas é sim o mesmo que mentir. Porém, em uma realidade no qual fraudes como a de The Dropout se tornam cada vez mais corriqueiras, a minissérie indica como a sociedade não reconhece tal sentença como verdadeira.