Traições, liberalismo e Lady Di abalam a quarta temporada de The Crown

Na imagem, Lady Di, jovem de cabelos curtos e loiros, usa um vestido de noiva branco, volumoso.
Emma Corrin, aos 24 anos, estreia na Netflix como a jovem Diana Spencer; a produção não recriou a cerimônia do casamento real, mas exibiu Corrin no vestido icônico da princesa (Foto: Reprodução)

Vanessa Marques

Com o fardo e a glória de narrar uma história real, The Crown chega ao seu quarto ano na Netflix. Em novo ciclo, a realeza é ofuscada pela entrada de duas mulheres no elenco: a lendária Lady Di (Emma Corrin), futura ex-esposa do Príncipe Charles, o cara que até hoje aguarda sentado para ser rei, e a irredutível Margaret Thatcher (Gillian Anderson), primeira-ministra do Reino Unido entre 1979 e 1990. Mais uma vez, a produção de Peter Morgan não peca em qualidade, coroando uma narrativa delicada, rica em beleza visual, de modo a unir aspectos de ficção, história e biografia.

Sob essa ótica, a trama começa com a eleição de Thatcher, líder austera do Partido Conservador. De origem comum, a persona de Anderson foi a primeira mulher a ocupar o cargo mais alto do Parlamento britânico. Interpretada pela estrela de Sex Education, a Dama de Ferro emerge caricata e altiva, impondo o seu poder no ambiente masculinizado da política inglesa. Em primeira reunião com a Rainha Elizabeth (Olivia Colman), a matriarca do thatcherismo” mostra a que veio, disposta a fazer reformas controversas na economia britânica. As governantes estabelecem uma relação amistosa, mas não fogem de confrontos.

Na imagem, Lady Di está de perfil e utiliza um vestido vermelho.
Elizabeth ocupa o trono, mas quem brilha é a Princesa de Gales: o figurino da série recriou
peças famosas do vestuário de Lady Di (Foto: Reprodução)

A personagem mais esperada no palácio aparece em cena tímida e ainda adolescente. Diana Spencer conhece o Príncipe Charles (Josh O’Connor) na mansão da irmã, Sarah Spencer (Isobel Eadie), fantasiada para uma versão infantil da peça Sonho de Uma Noite de Verão. O casal emite uma química digna de conto de fadas, e a pureza de Diana cativa, inocente perante o lado obscuro daquele fairytale. Apesar de a jovem despertar o interesse do filho da rainha, Charles continuava obcecado por Camilla Parker Bowles (Emerald Fennell), com a qual mantinha uma ligação secreta, profunda e inabalável.

Diana, por outro lado, conquista logo de cara todo o restante do núcleo rígido da família real. A última carta de Lord Mountbatten (Charles Dance), falecido em atentado na Irlanda, revela o desejo de que Charles encontrasse uma esposa. Logo, a jovem Spencer passa nos testes do Castelo de Windsor — jantares de ricos que não tinham mais o que fazer. Num desses eventos, que toma parte do episódio O Teste de Balmoral, a figura de um enorme cervo, caçado e empalado, exibido como troféu na sala de jantar, vira um recurso visual poderoso. De certo modo, o animal simboliza o abate da própria Diana, quando levada ao covil dos leões da Coroa britânica.

Na imagem, Lady Di anda de patins pelo palacio real, a personagem utiliza uma calça xadrez rosa claro e um sueter vinho.
Sem enquetes no Instagram, Diana vence o tédio no Palácio de Buckingham andando de patins e ouvindo a playlist do “Duran Duran” (Foto: Reprodução)

Embora o ativismo social de Diana seja retratado numa visita ao bairro do Harlem em Guerra, pouco conhecemos das crenças, desejos e do pensamento mais íntimo da aristocrata. A trama gira em torno da relação “montanha-russa” dos cônjuges, abordando, em paralelo, a bulimia da princesa. O assédio da imprensa e o sofrimento psicológico, que tornariam o drama mais pesado, não recebem foco, por enquanto. Nesse contexto, em virtude das cenas de distúrbio alimentar, os episódios contém um alerta de gatilho emocional antes da tradicional abertura.

A licença poética ao unir drama e biografia entra em palco no caso Fagan —  sobre o homem que invadiu o Palácio de Buckingham, em 1982. Michael Fagan (Tom Brooke) dá voz e rosto aos males sociais causados pela destruição do Estado de Bem-Estar Social. Desempregado e sem perspectivas, o Fagan da ficção encara o discurso meritocrático da Dama de Ferro com revolta. Em certa manhã, após driblar a segurança da Coroa, Fagan entra no quarto da rainha e desabafa. Para o nosso espanto, a monarca, recém-desperta, enquanto convoca um guarda, o escuta. Elizabeth diz que o Estado pode ajudá-lo, ao que o homem responde: “Não há mais Estado. Ela [Thatcher] o desmontou”.

Na imagem, Tatcher veste um terninho e chápeu azul e conversa com outro personagem.
Gillian Anderson reproduz as manias, falas e trejeitos da Dama de Ferro, que foi responsável pelo período mais conturbado da Inglaterra (Foto: Reprodução)

Dessa maneira, o embate entre a monarca e a primeira-ministra toma forma com a resistência ferrenha de Thatcher em condenar o apartheid da África do Sul. Elizabeth, conhecida pela sua neutralidade, consegue se humanizar diante da frieza da governante ao seu lado. Por fim, com muitos esforços do parlamento, a dama neoliberal aceita impor sanções econômicas ao país africano. No final do episódio Quarenta e oito contra um, é reproduzido o fragmento de uma entrevista do líder Nelson Mandela, na qual ele enfatiza que as sanções desempenharam um papel essencial para o término do regime separatista. Claire Foy também faz uma breve aparição neste capítulo, estrelando o flashback em que a herdeira de George VI discursa aos povos da Commonwealth.

Adjacente às tensões políticas, a ousada Princesa Margaret (Helena Bonham Carter), apagada da quarta temporada, torna-se o fio condutor de uma revelação espinhosa sobre a família real. Dessa vez, Margô pouco aparece, tendo somente o episódio O princípio da hereditariedade que lhe confere atenção. Lidando com problemas de saúde emocional, ela descobre, numa consulta psicológica, a existência de duas primas (“as gêmeas”) esquecidas e abandonadas num hospital psiquiátrico. A omissão das parentes com doenças mentais do conhecimento público, elucidada pela rainha-mãe (Marion Bailey), deixa mais uma fratura exposta do clã Windsor.

Envolta no frenesi da mídia, a Princesa de Gales foi nomeada o centro das atenções e o fascínio do povo britânico. Ao seu brilho, porém, o marido responde com ciúme e inveja. Curiosamente, o ego ferido do príncipe, diante do protagonismo feminino, parece uma herança do próprio pai. No começo da série, Philip Mountbatten (Matt Smith, na época), amargurava estar à sombra da rainha e esposa, ocupando uma posição secundária e sem valor. O ressentimento do Duque de Edimburgo (Tobias Menzies, neste ciclo), que não tinha um posto na hierarquia do governo, era descontado através de escapadas e infidelidades.

Na foto, Príncipe Charles, moreno e alto, veste um terno cinza escuro. Enquanto, Diana veste um vestido azul com um lenço branco estampado.
No segundo episódio, é encenado o famoso anúncio de noivado do casal real para a imprensa (Foto: Reprodução)

O príncipe que ganhou o título de boy mais lixo da Inglaterra, entretanto, demonstra-se insuperável. Com inúmeros defeitos, Philip ainda foi o companheiro de toda vida para Elizabeth, enquanto Charles, insensível e egoísta, só se prova merecedor de um repúdio colossal. A própria rainha entrega os atributos do filho: “um homem mimado, imaturo e privilegiado”. Diana, ao final, fora o bode expiatório, arrastada para um casamento de aparências. Desde o primeiro minuto do noivado, Charles permaneceu envolvido com Camilla. Há também quem defenda que o príncipe melancólico seja mais uma vítima endurecida de seu meio.

Numa viagem histórica do casal à Austrália, nação membro da Comunidade Britânica, Diana mostra a dificuldade de conciliar a maternidade com os inúmeros protocolos reais. Ela afirma, porém, que o seu principal ato de serviço à Coroa não seria “seguir o Príncipe como uma boneca sorridente, mas ser uma mãe de carne e osso, e presente”. Assim, a princesa do povo recusa afastar-se do filho para cumprir a agenda real na antiga colônia. A sua esperança era de que o futuro rei [o pequeno William], contando com a presença materna, não perdesse a humanidade, em meio aos privilégios e toxicidades da bolha monárquica. Entre resquícios de imaturidade, de quem cruzou a adolescência direto para uma vida pública agitada, Diana mostra-se dona de ideias fortes.

Na imagem, Rainha Elizabeth no centro e seu marido, Príncipe Philip logo atrás. A Rainha veste um vestido verde claro estampado e um chápeu verde, equanto o Princípe veste um terno preto.,
O príncipe Phillip: eternamente um servidor leal perante a rainha, mas um marido infiel (Foto: Reprodução)

A derrocada do governo Thatcher é enunciada com o discurso hostil de um dos aliados da Dama de Ferro, numa traição digna de Júlio César e Brutus, que antecedeu a renúncia e o fim de uma era. Ao que se sabe, Thatcher não retorna nos próximos capítulos da série, mas deixa o seu legado. O elenco atual também se despede. Olivia Colman será substituída por Imelda Staunton, a famosa Dolores Umbridge da saga Harry Potter, trazendo ao público uma rainha em idade avançada.

Com foco nos trechos mais sombrios da história recente da família real, as duas últimas temporadas prometem narrar o divórcio do jovem casal e a trágica morte de Diana, ainda envolta em teorias da conspiração. Na fase madura da princesa, Corrin deixa o seu posto para a britânica Elizabeth Debicki. Jonathan Pryce, veterano de Game Of Thrones e Dois Papas, viverá o Príncipe Phillip idoso. Lesley Manville, por sua vez, acolheu a missão de perpetuar toda a elegância de Margaret na velhice.

Consagrada pela crítica, The Crown já coleciona diversos prêmios, sendo novamente uma aposta de peso para as categorias de drama do Emmy e do Globo de Ouro, especialmente nas técnicas, dado o trabalho impecável da produção mais cara do streaming. Cercada de polêmicas e triunfos, a quarta temporada da série da rainha é sensível, tortuosa e profundamente conturbada.

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