Vitória Gomez
“A História não se repete, mas costuma rimar.” A sinopse de Terceira Guerra Mundial, por mais extensa que seja, sequer provoca para a experiência completa da obra. Candidato ao Oscar 2023 pelo Irã e parte da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo na seção Perspectiva Internacional, o filme segue Shakib, um trabalhador braçal, sem-teto e sem família, que, ao ser envolvido contra a sua vontade na produção de um longa-metragem, tem uma oportunidade de recomeço. Quando Ladan, a mulher com que se relaciona, vem a seu encontro em busca de ajuda, uma sequência de acontecimentos testa as relações de poder da vida do protagonista.
Logo de início, a obra contextualiza o personagem que irá estrelar essa Terceira Guerra Mundial: Shakib, interpretado tão aflitivamente por Mohsen Tanabandeh a ponto de vencer Melhor Ator na seção Horizontes do Festival de Veneza, perdeu a mulher e o filho em um terremoto. Ele não se recuperou do luto e seus dias se resumem a realizar trabalhos braçais, se relacionar com Ladan (Mahsa Hejazi) e dormir na casa de um amigo. Nos dias frios e chuvosos que são paisagem para o filme, o protagonista consegue um trabalho fixo como faz-tudo em uma obra, o set de um longa sobre a Segunda Guerra Mundial.
Analogicamente a um campo de concentração nazista, os trabalhadores são obrigados a servirem como figurantes, sem sua autorização ou aviso prévio. Eles são forçados a vestir macacões listrados, correr e se despir em frente à câmera, jogados para lá e para cá, prisioneiros da promessa de um salário ao final do dia. Até que o ator principal da peça metalinguística – sim, o intérprete de Hitler – tem um infarto e deve ser hospitalizado. Nem frente à morte de sua maior figura o show pode parar e o escolhido para substituí-lo é Shakib.
Como é característico do Cinema iraniano, o longa dirigido por Houman Seyedi parte de uma situação improvável para ampliar seu horizonte de acontecimentos. Como cozinheiro e assistente, o homem ganha um canto frio, alagado e sem energia para passar a noite; como ator, tem direito a absolutamente nenhuma mordomia a mais, mas pelo menos pode dormir na casa principal do set. Se nem o contratado para interpretar a estrela do filme é motivo de preocupação o suficiente para o diretor e o produtor, as péssimas condições de trabalho e o contrato abusivo com Shakib também não serão. Do chão frio e molhado a poder almoçar na mesa do produtor, o protagonista tem uma chance de melhora na vida.
No entanto, Shakib sempre será ‘o que foi tirado da lama’. Mesmo que, com muita insistência, aceite interpretar o personagem principal da produção, ele é tratado como o veêm: apenas um trabalhador braçal, mandado por quem quiser, aceitando as migalhas que vierem. Para ele, é o suficiente. Até que Ladan vai a seu encontro. A mulher com quem o protagonista se relaciona está fugindo de seu empregador, um cafetão, e fica abrigada no set. Ele, que foi contratado para a obra por não ter uma família ou vínculos externos ao trabalho, não ousa em exigir o mínimo, e esconde a mulher sob as tábuas da locação.
Daí em diante, as bombas começam a cair na Terceira Guerra Mundial. Os cafetões perseguem a dupla e ameaçam machucá-los se não forem pagos uma quantia milionária. Shakib mente e exige o dinheiro do produtor, reconhecendo que, afinal, ele é parte importante do processo conduzido ali e tem poder de negociação. Quando está fora tratando com os golpistas, o set é incendiado, como parte do filme; ninguém sabia que uma mulher morava ali e Ladan, surda e muda, não poderia notar a movimentação. O protagonista também não fora avisado das intenções da produção – não era considerado relevante o suficiente para algo além de ser dirigido em cena – e, agora, a locação poderia ser uma cena de crime.
Apesar da sequência de baques que move o denso roteiro de Seyedi, Arian Vazir Daftari e Azad Jafarian, Jang-E Jahani Sevom (título original do filme) apresenta mais do que uma cadência de situações frenéticas. Aqui, o estudo sobre relações de poder desponta. Uma comparação objetiva da Alemanha nazista da Segunda Guerra a qualquer situação atual seria cruel e desaprovada, portanto o longa traça paralelos afiados entre as dinâmicas sociais do conflito às de dentro do set. Shakib testa o limite dessas relações, pressionando o produtor e diretor do filme pelo mínimo. Nem a possibilidade de uma fatalidade é o bastante para fazê-los olhar além do lucro e da ganância pelo seu almejado produto final.
Possibilidade porque em nenhum momento Terceira Guerra Mundial é didático ou explícito quanto ao destino de Ladan. As tentativas de encobrir um possível crime na propriedade levantam a dúvida: tamanha a canalhice do produtor em se livrar das evidências para não lidar com as consequências ou a mulher realmente conseguiu escapar? Durante as quase duas horas, o longa suscita questionamentos quanto ao caráter da moça, que admite ter procurado Shakib por sua nova residência, mas declara ter se apaixonado posteriormente, para aprofundar ainda mais as incertezas. Sem descanso na derrocada, o conflito em aberto acertadamente alavanca para um terceiro ato ainda mais catártico.
Quantos abusos Shakib pode aguentar? O protagonista é engolido pelo seu entorno e pela impotência frente às violências. Até que decide não mais só aceitá-las. World War III, título da distribuição internacional e que pode ser pronunciado pelo Oscar, não constrói a trajetória de um herói nem de um vilão: corretas ou errôneas, as atitudes do protagonista resultam do acúmulo de socos – alguns metafóricos, outros não – os quais aguenta desde o início. No figurino de Hitler, a alma envenenada de Shakib se impõe. Dá-se fim à Terceira Guerra Mundial.