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No dia 11 de fevereiro de 1963, a escritora Sylvia Plath se suicidou. Não demorou para que se tornasse uma espécie de mártir: além de sua obra poética ter cativado muitas pessoas de modo profundo, o relacionamento abusivo com Ted Hughes, também escritor, veio à tona e desde então é praxe em conversas sobre Plath. A morte de Sylvia aconteceu apenas semanas após a publicação de seu único romance, A Redoma de Vidro (The Bell Jar), e é peculiar observar a relação entre estes dois momentos.
Lançado sob o pseudônimo de Victoria Lucas, o livro conta a história da jovem Esther Greenwood. Habitante de uma cidade pacata no interior dos EUA e aluna exemplar, vê sua vida mudar com um estágio em uma revista de moda em Nova York. O que deveria ser uma experiência enriquecedora se torna em pesadelo, e aflições passadas, presentes e quanto ao futuro convergem. Esse caos é reforçado pelo constante uso de flashbacks, que muitas vezes cortam a linearidade de modo agressivo e tornam a leitura sufocante. O fluxo mental de Greenwood, ininterrupto e pessimista, é uma representação precisa das sequelas da ansiedade. A melancolia parece emanar de todo canto, em qualquer situação.
Junto a isso, a autora preza por detalhes em sua narrativa. Metáforas surrealistas, constantes em sua poesia, são utilizadas para sensações e objetos, enquanto suas descrições para pessoas sempre relatam a maneira como se vestem. Esse recurso por vezes beira o obsessivo (novamente, reflexo de doenças psiquiátricas) e inclusive revela a faceta menos agradável da personagem, que não é isenta de preconceitos. Longe de ser defeito em A Redoma de Vidro: a visceralidade se torna completa exatamente ao também expôr o lado obscuro das coisas, e esse sempre foi o grande diferencial de Sylvia Plath.
(…) Toda vez que chovia minha velha perna quebrada parecia lembrar que existia, e essa lembrança era traduzida numa dor vaga.
Então pensei: “Buddy Willard me fez quebrar essa perna”.
Então pensei: “Não, eu a quebrei. Quebrei de propósito pra me punir por ser tão canalha”.
O romance permanece atual como retrato sociopolítico. Os períodos de transição na vida são tratados como ritos de passagem violentos, como se dissessem que, por trás da beleza de cada metamorfose, existe todo um processo doloroso. Ser uma pessoa diferente, muitas vezes, exige a destruição de traços pessoais e o abandono da zona de conforto – e o respaldo afetivo e econômico para tal nem sempre está lá. As expectativas se transformam em fardo ao vislumbrarmos um futuro ideal, e pesam ainda mais conforme este é demolido pela realidade amarga.
O sonho de Esther em ser poeta não só reitera o teor autobiográfico da trama, como é pontual ao lembrar da desvalorização e dificuldades de profissões relativas à arte. Décadas mais tarde, o psicólogo James C. Kaufman cunhou o termo “efeito Sylvia Plath“, em um artigo que afirma que mulheres poetisas estão mais sujeitas a enfermidades mentais. Embora tal discussão permaneça nebulosa e controversa – vide este artigo, publicado em 2017 pelo próprio Kaufman -, ela reflete a importância do ponto central de A Redoma de Vidro: o prisma do gênero feminino. A imposição de papéis sociais é a espinha dorsal do sofrimento da protagonista, assim como da autora na vida real.
Achei que aquele era o tipo de droga que só um homem podia ter inventado. Ali estava uma mulher passando por um grande tormento, que não gemeria daquele jeito se não estivesse obviamente sentido cada espasmo de dor; e ela voltaria para casa e faria outro bebê porque a droga a faria esquecer de como a dor tinha sido terrível (…)
Ao constatar que o status de moça “bela, recatada e do lar” é vendido como a única opção possível, Plath pinta a realidade em traços grotescos. A paranoia não poupa ninguém, em especial os homens, que se revelam monstros aproveitadores e hipócritas. O tema da maternidade, central na obra da autora, é mostrado como um trauma – tão tóxico como os relacionamentos do qual é fruto. A negação dessa suposta ordem natural leva Esther à mesma alternativa extrema de Sylvia: tentar acabar com a própria vida. Como nem o ambiente médico se mostra ileso de misoginia, um desfecho feliz seria incoerente para A Redoma de Vidro; é mais justo afirmar que o final do livro equivale a um suspiro sereno, daqueles que trazem paz momentânea mas reconhecem que o amanhã é cenário pra mais uma batalha interior.
Se na poesia a carga emocional vinha de metáforas simbolistas e linhas fraturadas, no romance ela surge cataclísmica pela descrição realista impiedosa, entregue em parágrafos milimetricamente fluidos. Dessa forma, a transposição para o cinema seria tarefa trabalhosa. Mas isso não justifica o tamanho desserviço que é a adaptação dirigida por Larry Peerce, lançada em 1979 e difícil de encontrar até hoje (mesmo na internet). O roteiro propõe uma trajetória linear, mas ignora pontos essenciais da história. Já as atuações pecam pelo exagero e, ainda pior, reforçam estereótipos nocivos.
Em 2016, foi anunciado que a atriz Kirsten Dunst faria sua estreia como diretora em uma nova releitura cinematográfica para o canto do cisne de Sylvia Plath. É de se imaginar que sua sensibilidade com os temas (vide As Virgens Suicidas (1999) e Melancolia (2011)) e experiência enquanto mulher podem render algo bastante digno. No entanto, é difícil imaginar qualquer coisa que faça justiça à carreira de Sylvia Plath do que leitura e discussão atentas. Neste caso, seu único romance permanece como o melhor cartão de visitas para um universo tão sombrio como intenso, mesmo 55 anos depois.
Um comentário em “A Redoma de Vidro: o último suspiro sufocado de Sylvia Plath”