Júlia Caroline Fonte
As adaptações são uma grande polêmica do mundo audiovisual, algumas chegam ao patamar da perfeição, já outras decepcionam o fandom. Sweet Tooth com certeza se encaixa no primeiro grupo. Lançada em 4 de junho, a nova série da Netflix, que vem ganhando cada vez mais destaque da crítica, é produzida por Robert Downey Jr. e Susan Downey e traz uma proposta um pouco diferente da graphic novel que a originou, levando-a a ser uma das séries mais assistidas da plataforma em diversos países.
A criação de Jim Mickle e Beth Schwartz nos apresenta um mundo caótico tomado por um vírus mortal, o Flagelo, e o nascimento de misteriosas crianças híbridas com animais, estas perseguidas e exterminadas pelo exército dos Últimos Homens. A maior parte da sociedade acredita que essas crianças foram as causadoras desse apocalipse, enquanto outras as vêem como uma salvação para o planeta. Diante disso, acompanhamos Gus (Christian Convery) um garotinho híbrido de cervo que, dez anos depois do estopim do caos, tenta sobreviver isolado na floresta com o pai, que ele chama de “Paba” (Will Forte). Quando este é acometido pelo Flagelo, deixando Gus sozinho em um mundo perigoso, o caçador Tommy Jepperd (Nonso Anozie), cruza caminho com o menino, que a partir disso começa uma aventura em busca de sua mãe, Birdie (Amy Seimetz).
Adaptada da graphic novel de mesmo nome de Jeff Lemire, Sweet Tooth assume um tom diferente daquele do quadrinho. Querendo deixar de lado “o estilo Mad Max“ das páginas, os produtores buscaram transformar a história de Gus em uma série family friendly, o que garantiu um tom leve e encantador, mesmo em meio ao fim do mundo. A inocência e fofura do personagem garantem uma sensação de aconchego e consegue tirar muitas lágrimas do espectador, uma vez que seu foco é o arco do garotinho e não o contexto em que ele está. Essa mudança drástica não impediu a série de ser considerada uma excelente adaptação, uma vez que conseguiu de modo certeiro adequar a história para o novo formato e soube definir muito bem seus objetivos quanto ao seu público.
Além da jornada do Gus, a série apresenta mais duas histórias que ocorrem paralelamente; uma é da Aimee (Dania Ramirez) e a outra do Dr. Aditya Singh (Adeel Akhtar). Gus tem como objetivo chegar ao Colorado, onde tem a certeza de que encontrará sua mãe; Jepperd, sem outra alternativa, assume a perigosa e desafiadora missão de levar Gus até ela. No caminho, ambos cruzam com um curioso grupo chamado Exército Animal, adolescentes que têm como propósito proteger e salvar os híbridos; esses personagens trazem um contraste interessante à obra: inocência e juventude em choque com o perfil de guerreiros sanguinários. A partir daí, ambos seguem com a companhia de Ursa (Stefania Owen). Os três continuam a aventura repleta de desafios e revelações devastadoras
De modo independente, temos a história de Aimee, uma personagem exclusiva da série. Sua jornada começa quando ela encontra um novo sentido para a própria vida, pois da mesma forma que Gus, a pandemia do Flagelo foi um impulso para a liberdade. Aimee se muda para um zoológico abandonado, e acolhe Wendy (Naledi Murray), uma garotinha híbrida com porco que foi deixada em sua porta ainda bebê, tornando-se sua filha. Com o passar dos anos, juntas elas criam o Santuário, um espaço para proteger crianças híbridas.
E, por último, temos o Dr. Singh, um médico que desistiu de sua profissão quando sua esposa Rani (Aliza Vellani) foi contaminada pelo Flagelo, e passa a dedicar a vida para garantir a sobrevivência dela, até que ele fica responsável por continuar as pesquisas sobre a cura iniciadas pela Dra. Bell (Sarah Peirse). Os três arcos se encaixam perfeitamente, e diferente do que ocorre na série Sombra e Ossos, eles não roubam o protagonismo um do outro e o foco maior permanece na narrativa de Gus, o personagem principal; e ao final, temos uma junção excelente de todos eles.
Gus com certeza é o ponto forte da série, sendo um personagem adorável e cativante. Da mesma forma que a personagem Anne, de Anne With An E é inserida e desenvolvida em sua adaptação, Gus consegue ser uma representação verdadeira de uma criança, com toda a sua intensidade de sentimentos e sua curiosidade de entender o mundo. Seu arco é construído colocando o personagem em diversas situações cruciais para o amadurecimento, aprendizado e construção de sua personalidade.
A construção do personagem, unida à atuação do ator Christian Convery, traz veracidade tanto para Gus quanto para a obra. Suas reações, inocência, esperança, empolgação, frustrações e ingenuidade são muito bem colocadas, Vemos esse aspecto em diversos momentos: ao perder o Cão, seu brinquedo preferido e melhor amigo, seu desespero para recuperá-lo os coloca em uma situação complicada; seu aborrecimento é evidente quando Ursa usa palavras difíceis que não estão em seu vocabulário, e em muitas situações de perigo o menino recorre desesperadamente a Jepperd.
O protagonista constrói uma ótima relação com os outros personagens que o acompanham, com destaque para Jepperd, apelidado por Gus de “Grandão”, que de início queria a todo custo se livrar do híbrido, mas eles acabaram se tornando uma boa dupla. Jepperd, dono de um passado sombrio, fazia de tudo para sobreviver ao mundo caótico em que estavam, e entende os perigos de proteger uma criança como Gus; contudo, assim como acontece com o público, ele consegue ser cativado pelo menino cervo. A boa química entre os atores Christian Convery e Nonso Anozie foi fundamental e conseguiu garantir uma das melhores relações entre adulto e criança retratada no universo audiovisual, sendo um ponto alto da série.
Gus ainda está envolvido no maior plot twist da temporada e um dos momentos mais difíceis para o garotinho. O híbrido tem seu mundo colocado à prova ao lidar com as verdades sobre sua vida; também é aqui que suas questões familiares e origem se revelam mais profundas do que aparentavam, e afetam sua jornada a partir de então.
A série caminha através de diversas reviravoltas e situações cruciais para a história, tendência esta que se mantém no plot twist: sendo tão bem construído, não surpreende apenas o protagonista, mas também o público, que, desde o primeiro episódio é levado a acreditar em determinada realidade que entrará em choque nesse momento.
Os aspectos técnicos de Sweet Tooth também não deixam a desejar. A série possui narrador onisciente, com voz de James Brolin, de modo sutil e na medida certa, combinando com o tom da história. E seguindo o padrão da maior parte das séries originais da Netflix, a diversidade no elenco também está presente na série do menino cervo, que possui atores excelentes.
Contando com uma ótima trilha musical, que combina com a atmosfera criada pela série, Sweet Tooth é perfeita visualmente. A fotografia em tons quentes de Dave Garbett e Aaron Morton e a presença de muitas cores contribui para a leveza e aconchego que ela proporciona ao público; com destaque para o primeiro episódio, o qual se passa a maior parte no chalé de Gus e Paba, com uma iluminação muito bem feita casando com a colorização impecável de Walter Volpatto; tudo se adequando com os elementos da direção de arte. A elaboração desta última, coordenada por Nick Connor, Nathan Blanco Fouraux, Gabriel Kearney e Adam Wheatley, foi um fator fundamental para contar a história.
Ainda sobre seu visual, o trabalho da equipe de arte atrai a curiosidade do público, principalmente para a caracterização das crianças híbridas. Algo essencial e que fez grande diferença para a série foi diminuir o digital para usar elementos construídos fisicamente. Os efeitos especiais foram importantes para trazer veracidade ao universo de Sweet Tooth, como nas orelhas de Gus, que foram inseridas em seu figurino e controladas pelo marionetista Grant Lehmann. Simultaneamente, a maquiagem artística de Justin Raleigh foi um elemento importante para transformar a aparência das crianças em híbridas.
Entretanto, o que mais chamou atenção foi o personagem Bobby, um híbrido de marmota, em que a produção usou um boneco mecatrônico para trazê-lo à vida – uma retomada do que víamos em filmes mais antigos de fantasia, como em Harry Potter e a Câmara Secreta, para criar a fênix do Professor Dumbledore. Outro caso é o dos bebês híbridos retratados logo no início do primeiro episódio, que foram fantoches manipulados pela equipe e criados pela empresa de efeitos visuais Fractured FX. Ao mesmo tempo em que esses elementos deixam tudo mais palpável, pode causar muito estranhamento para um público saturado de efeitos visuais.
O último episódio de Sweet Tooth é com certeza um dos mais importantes, principalmente para a continuidade da história. É nele que, finalmente, entendemos por quais motivos Gus, Dr. Singh e Aimee dividem a temporada. A trama será imprescindível para o futuro da série, principalmente para Dr. Singh, pois aqui podemos perceber que em algum momento Gus será um elemento significativo para definir o arco do médico para a segunda temporada. Além disso, revelações sobre um personagem serão relevantes para aguçar o público a respeito do vírus que aquele mundo enfrenta, abrindo espaço para muitas teorias sobre o rumo da série, que já começa a ganhar contornos nítidos.
Além de todos seus aspectos audiovisuais, Sweet Tooth carrega mensagens muito fortes para seu público. A jornada de Gus e Aimee mostram a importância de sair da zona de conforto para poder se reencontrar ou para começar a viver, e que essa vivência é essencial para o processo de crescimento, tanto de uma criança, como é o caso de Gus, quanto para Aimee, que entende um novo propósito e significado de sua vida. Ainda somos convidados ao longo da série a refletir sobre o amor, seus diversos aspectos e aquilo que ele pode mover; bem como o papel da família, entendendo o que realmente a faz existir.
Já a história do Dr. Singh traz aspectos científicos e sociais que atingem em cheio a nossa realidade atual. Um retrato muito mais caótico da pandemia que estamos vivendo, a série tem um papel social de extrema importância, que vai muito além de seu entretenimento. Muito antes da covid-19, a Netflix criou um cenário acometido por duas doenças que enfrentamos durante o nosso isolamento e se espalham rapidamente: um vírus fatal e a ignorância diante dos fatos. A série expõe diversos momentos de extremismos pelo “bem maior”; ou por causa de teorias da conspiração, propagar o ódio e eliminar aquilo de que não se tem conhecimento. Tudo isso abre espaço para um mundo onde o principal objetivo é garantir a própria sobrevivência, ignorando seu papel na sociedade.
Sweet Tooth apresenta um grande potencial para continuações, à medida em que a série deixa de explicar a fundo algumas informações, como as referentes ao vírus e ao início da pandemia do Flagelo. Há também algumas pontas soltas que precisam ser respondidas a respeito de Birdie, sobre quem salvou Wendy quando bebê e o porquê, e qual papel o Exército Animal terá no futuro da série. Além disso, elementos como as flores roxas e as barras de chocolate não paravam de aparecer ao longo da temporada, indicando para um público que elas terão um significado importante em algum momento. Porém, levando em conta os temas e o cenário da história, poderíamos supor que poucas perguntas seriam respondidas em uma única temporada.
Sweet Tooth já consegue se garantir como uma das melhores séries de 2021. Bem recebida pelo público e pela crítica, tem suas raras falhas ofuscadas por uma história bem contada, com personagens reais e apaixonantes e um visual que chega a ser um espetáculo aos olhos. Mais uma vez, a Netflix conseguiu garantir uma boa obra e acertar em todos os seus aspectos como adaptação. E mesmo com o caos que Gus e Jepperd enfrentam em sua história e o que enfrentamos aqui do lado de fora, Sweet Tooth consegue nos resgatar e confortar com sua esperança e leveza inocente que procurávamos há muito tempo.