Júlia Caroline Fonte
Após muito tempo das grandes sagas literárias longe das telas, Sombra e Ossos, nova série da Netflix, chegou suprindo as necessidades dos leitores que passaram a adolescência vidrados em fantasias e distopias nas páginas dos livros. A série conta a história de Alina Starkov (Jessie Mei Li), uma órfã que descobre ser a Conjuradora do Sol, e, dotada de grandes poderes, pode ser a salvação de seu mundo. Em seus primeiros dias de estreia, Sombra e Ossos ficou no top 10 das produções de maior audiência na plataforma de streaming, apresentando uma obra única que conquistou um grande público e marcou o forte retorno do gênero ao audiovisual.
A série nos leva ao universo Grisha, marcado por guerras e conflitos de poder. O foco está em Ravka, um país dividido pela Dobra das Sombras, uma mancha densa e escura onde vivem os volkras, criaturas perigosas, que os humanos têm que enfrentar quando tentam cruzar a Dobra em direção ao outro lado. Assinalada pela pegada militar, Sombra e Ossos mostra a relação entre humanos e grishas, estes últimos dotados por habilidades de dominar elementos naturais e liderados pelo General Kirigan (Ben Barnes).
O mundo da obra chega ao espectador de forma encantadora, sendo muito bem construído. Contudo, para quem está tendo contato pela primeira vez com a mitologia, pode se sentir confuso durante a primeira metade da temporada. A série aparenta se preocupar mais com os acontecimentos do que em situar seu público desde o início – o que pode ser bom para manter ele em frente à tela, mas seria importante ter um equilíbrio entre as duas coisas.
Sombra e Ossos é baseada nos livros de Leigh Bardugo, porém é adaptada de modo um pouco diferente do que estamos acostumados. A história das telas traz os acontecimentos da Trilogia Grisha, iniciada por Sombra e Ossos, que conta a história de Alina Starkov, e ao mesmo tempo, se mistura com a duologia Six of Crows, revelando a trama do grupo chamado de Corvos, que nos livros, se passa anos depois dos acontecimentos de Alina.
A série conseguiu explorar muito essa junção, construindo uma história complexa que se enlaça bem ao final, e dando um ritmo mais dinâmico ao que está sendo contado, uma vez que apenas a narrativa da protagonista poderia torná-la maçante. Porém, não foi perfeita em sua execução: a obra misturou três arcos diferentes que roubavam o protagonismo um do outro, e deixou alguns momentos soltos ao longo da série até se juntarem no final. Talvez fosse interessante a temporada ter tido pelo menos dois episódios a mais para explorar tudo isso.
Os Corvos foram um dos destaques de Sombra e Ossos. O grupo formado na primeira temporada por Kaz (Freddy Carter), Inej (Amita Suman) e Jesper (Kit Young) vive na série uma história original em relação aos livros, funcionando como um prequel, o que possibilitou que eles cruzassem o caminho de Alina de algum modo. O trio tem por objetivo sequestrar a Conjuradora do Sol em troca de uma fortuna. Desse modo, acompanhamos duas histórias que acontecem paralelamente, e que tem por objetivo se encontrarem até o final da temporada.
É muito instigante observar as situações vividas pelo grupo, principalmente por causa dos personagens muito diferentes entre si e com personalidades muito fortes, que cativaram o público. Porém, como mencionado anteriormente, não houve equilíbrio na série para a inserção dessa história, que colidiu muito com o protagonismo de Alina – colocada em segundo plano em diversos momentos, enquanto os Corvos ganham muito mais destaque.
Outro arco mostrado na série é a da personagem Nina Zenik (Danielle Galligan), uma grisha Sangradora, capaz de infligir dor. Nina é apresentada no momento em que os Corvos irão necessitar de sua ajuda para invadir o Pequeno Palácio, onde Alina está sendo treinada e local em que Nina trabalhava. No entanto, antes desse encontro, ela é capturada pelos Drüskelle, caçadores de grishas, e se aproxima de um deles, Matthias (Calahan Skogman).
A personagem passa a protagonizar uma história simultânea que, infelizmente, não tem tanto espaço de tela como gostaríamos. Mas nem por isso seu encaixe no todo é feito de maneira ideal: em muitos episódios, suas cenas são colocadas de modo que não fica nítida qual a relação exata dela com os outros dois arcos; resposta essa que só temos nas últimas cenas do episódio final, e quando começamos a compreender seu papel, a temporada acaba.
Por fim, conhecemos nossa protagonista, Alina Starkov, que já no primeiro episódio descobre ser uma Conjuradora do Sol, um tipo lendário de grisha. A personagem surpreende por não se apresentar de modo clichê dentro do gênero e tem um bom desenvolvimento até o final, sendo muito verossímil quando lida com as situações nas quais foi colocada, reagindo como qualquer pessoa normal quando é retirada de sua realidade.
Seus retornos ao passado também são enriquecedores para o roteiro escrito por Eric Heisserer, Daegan Fryklind e Vanya Asher, e expõe muito de sua personalidade e suas relações com quem ama, além de fazer o público compreender a forma como recebeu sua nova vida. A aceitação (dela e dos outros), o isolamento e saber lidar com os pesos de quem se tornou são os fardos carregados por ela durante a temporada, mas felizmente Alina entende seu papel naquele mundo e passa a ter um novo olhar sobre ela mesma.
Apesar disso, a trajetória não é mostrada de modo completo na série criada por Eric Heisserer. São raras as cenas de treinamento grisha de Alina, e seus conflitos e real adaptação dentro do Pequeno Palácio são pouco desenvolvidos. Um dos problemas que Alina tem que lidar é a insatisfação e preconceito por ser Shu de diversos outros grishas que vivem com ela – em especial Zoya (Sujaya Dasgupta), mas são escassas as vezes que é mostrada a interação direta entre elas, de modo que a construção de rivalidade acaba sendo fraca.
Além disso, Alina tem apoio de três amigas que conheceu no local: Nadia, Marie e Genya, sendo que apenas a relação com a última acaba sendo aprofundada, enquanto as outras estão em cenas breves, e gostaríamos de ver melhor o desenvolvimento dessa amizade. Nesse quesito, temos que nos contentar com migalhas.
Contudo, o que perdemos anteriormente é recompensado com um bom desdobramento da relação de Alina com Malyen (Archie Renaux), seu melhor amigo e interesse romântico. Desde o início, Sombra e Ossos sugere que devemos esperar o desenvolvimento de uma relação amorosa no meio de todo o caos da vida da protagonista.
No entanto, ela é colocada de uma forma leve e não tão convencional. Amigos desde a infância, eles só tem um ao outro e usam esse amor fraterno mútuo como porto seguro, principalmente para lidar com a realidade em que foram colocados: órfãos desde crianças e que agora servem ao exército.
Quando são separados, ambos juntam todo tipo de forças para poder se reencontrar, mas aqui percebemos que, desde o início, tentam fazer isso como família. Eles só tem um ao outro e esse era o sentido que eles tinham para se manterem vivos e firmes, mesmo que depois entendemos que há um sentimento amoroso – e infelizmente não foi mostrado com nem um único beijo.
Por esse mesmo motivo, vemos Alina a todo custo tentando entrar no barco quando Mal é convocado para navegar pela Dobra, onde ela acidentalmente descobre seus poderes. Ao mesmo tempo que essa motivação é a principal de ambos os personagens, ela ocorre de forma leve e natural para nós, como Prim e Katniss ou Finnick e Mags em Jogos Vorazes, e essa relação divide bem o foco da série com a descoberta de Alina sobre seus novos poderes.
Em contrapartida a esse relacionamento saudável, vemos Alina se envolver com o general Kirigan, também conhecido como Darkling, um dos vilões mais sádicos das adaptações literárias, principalmente por não ser um personagem tão distante de nós. Desde o início, já percebemos que Kirigan não tem nada de mocinho, já que a série tenta nos confundir acreditando que ele está do lado de Alina e consegue fazer isso até certo ponto.
Porém, antes mesmo da revelação, já temos certeza disso. O plot twist deveria ter sido feito de uma forma um pouco mais impactante para o público, mesmo que não seja a intenção de seus produtores, que provavelmente queriam nos deixar desconfortáveis diante da relação abusiva que ele impôs à Alina para presenciarmos todo o desenrolar disso sem poder fazer nada; e assim, entender como sua manipulação era extremamente poderosa e provavelmente o pior lado do personagem.
De todas as surpresas de Sombra e Ossos, não é possível deixar de falar sobre o final da temporada. A maior parte do último episódio acontece dentro da Dobra das Sombras, e o domínio de Kirigan sobre Alina é cada vez maior. Aqui, já vemos a união de Mal com os Corvos contra Darkling, mesmo que por objetivos diferentes, todos querem tirá-la dali.
Esse é o momento mais importante para nossa protagonista, uma vez que ela percebe que o cervo, um amplificador de poderes grisha, a escolheu. Ela passa a entender suas habilidades e a si mesma, bem como seu papel nisso tudo, além de mostrar que ela compreende que seus poderes alcançam dimensões muito grandes sem depender de Kirigan para isso.
Ao final temos uma grande surpresa: Alina não consegue destruir a Dobra e entende que ainda não tem a força suficiente para isso. Uma grande quebra de expectativas em séries de ficção, que sempre terminam com o protagonista espontaneamente atingindo o máximo de seus poderes. E é compreensível para o espectador, que por mais que espera essa repetição, vê sentido em ela não conseguir, pois diferente dos outros grishas, ela domina os próprios poderes há pouco tempo; e a partir de agora inicia um nova jornada para conseguir cumprir seus objetivos. O momento é fundamental e um dos melhores da série.
Em relação aos aspectos técnicos, a série também surpreende. Com seu universo de fantasia baseado na Rússia Imperial, a direção de arte realizou um trabalho impecável, principalmente em relação aos figurinos muito característicos e locações com cenários construídos de modo perfeito. Algo que pode ser incômodo é a escolha dos ângulos de câmera, que em alguns momentos são colocados de forma subjetiva quando não há necessidade, criando uma sensação que não cabe no momento. Já os efeitos especiais não são excelentes, porém ainda são suficientes e de qualidade. Além disso, a escolha do elenco é algo a se comemorar, com atuações maravilhosas e muita diversidade, especialmente os atores principais, como é o caso de Jessie Mei Li, Amita Suman e Kit Young.
Sombra e Ossos é um excelente retorno para as sagas literárias às telas, trazendo até mesmo uma leve nostalgia para aqueles que as acompanharam em parte da infância e adolescência. Temos que reconhecer o grande sucesso que a série alcançou, pois conseguiu prender seu público com ótimos personagens, uma história interessante e um mundo de fantasia que consegue ser muito verossímil com o nosso. Por mais que ela apresente alguns problemas em sua execução, se mostrou uma boa obra com grande potencial para as futuras temporadas, que prometem trazer uma história única e novos desafios para todos os personagens.