Isabella Siqueira
Dispensando sutilezas e panos quentes, Michel Laub escancara o Brasil com maestria em Solução de Dois Estados. Lançado em outubro de 2020, o premiado escritor traça uma narrativa sobre um problema familiar e privado para abranger todo o ódio existente entre dois lados opostos, mas igualmente raivosos e ressentidos. Apesar das primeiras impressões quanto a sinopse carregada, onde o primeiro pensamento é menos é mais, chega-se à conclusão de que seus exageros são carregados de verdades.
Alexandre e Raquel, dois irmãos, são os personagens principais do romance, com um relacionamento irreconciliável, ambos representam dois lados que exemplificam todo o ódio recente no país, exposto com mais intensidade a partir de 2013. Todo esse casos de família absurdo é apenas a ponta do iceberg no romance, onde por trás de cada fala existe uma referência a um comportamento social, político e cultural.
O drama familiar é tema do filme da diretora alemã Brenda Richter, cujo marido foi assassinado durante um assalto no Rio, assim a obra já se diferencia na forma como é estruturada. Visto que é narrada em capítulos curtos, uma característica da escrita de Laub, e dividida entre material bruto e material pré-editado. Entrevistas, panfletos e fragmentos de reportagens ajudam a compor a história, que é revelada sempre aos poucos, nunca completamente, assim como muitos dos outros livros do autor, como por exemplo o denso Diário da Queda.
Raquel Tomazzim, artista de 130 kg, inicia a obra atraindo empatia por ter sofrido uma agressão por gordofobia enquanto participava de um evento sobre violência em um hotel. Contudo, com o decorrer da história, ela demonstra ser tão rancorosa quanto seu irmão, que logo de cara atribuímos o título de vilão. A arrogância da personagem é visível em sua rispidez com Brenda, o egocentrismo e a raiva são outras características marcantes nas entrevistas focadas na artista.
Às vezes com um palavreado enfeitado e tiradas sagazes, a personagem não adoça as críticas ao irmão e a Brenda, ao mesmo tempo que assume para si todas as dores do mundo, quase em tom debochado com o passado da cineasta, que para ela possuí uma dor secundária. Assim, com o passar das páginas se torna difícil preferir um lado entre os dois, já que a ideia de certo e errado se confunde em tanta mágoa.
Já quando estamos presos na narrativa de Alexandre, é impossível não ler suas falas em primeira pessoa sem a imagem de um tiozão bolsonarista típico. O personagem exagera de propósito o lado cristão, obcecado com dinheiro e pai de família, acusado pela irmã de ser um miliciano, ele começa em um assunto e termina com comentários sem pé nem cabeça, seguindo uma linha própria cheia de ódio escancarado e preconceitos.
Logo de cara com um tom vitimista de quem foi sabotado pelo mundo inteiro mas, principalmente, pela irmã, Alexandre começa sua narrativa em sua adolescência no contexto do Governo Collor e o Plano Real. Também se utilizando da política e história do país para justificar suas próprias falhas. Apesar das diferenças de ambos, e por estarem em lados polares marcados desde 2013, os irmãos se mostram farinha do mesmo saco. O tom rancoroso, as acusações e os diferentes pontos de vista sobre eventos e conversar marcam o romance, ajudando a criar uma história viciante, também algo comum na obra de Michel Laub. No fim, não temos os mínimos detalhes da agressão de Raquel e como Alexandre está envolvido (ou não) nela, mas isso meramente importa já que o leque de referências e reflexões oriundas dessa agressão são o grande destaque.
O romance busca falar justamente sobre o ódio e a violência que, além de intrínsecas a realidade familiar conturbada dos personagens, para sempre irreconciliáveis, também estão vinculadas ao país que é o cenário dessa trama. Apesar do tom áspero e amargo que fazem desgostar da personagem em múltiplos momentos, as descrições das violências sofridas por Raquel por conta do corpo são tocantes e difíceis de ler. As insinuações preconceituosas de Alexandre pintam um retrato básico de muitos brasileiros, ele é bruto, machista e homofóbico, e se esconde por trás de um discurso falso de moralidade e muita meritocracia.
Indo além do conflito polarizado de civilização e barbárie, os quase monólogos raivosos de personagens tão característicos são a prova de que nem tudo é isso ou aquilo, não dá pra escolher um lado e fechar os olhos para as incoerências motivadas pelo ódio puro. Sem papas na língua, o também jornalista gaúcho usa como pano de fundo os traumas do passado para falar sobre o que dói e gera desconforto ao leitor. Solução de Dois Estados pode não ser a melhor obra de Michel Laub, mas é uma das mais necessárias.