Gabriel Gomes Santana
Há duas décadas, o mundo foi contemplado com o lançamento de uma das animações que mais revolucionaram o Cinema: Shrek. Essa prestigiada obra-prima reuniu o que há de melhor sobre piadas de duplo sentido, referências icônicas, paródias e lições de vida sobre autoaceitação e felicidade. Dentre todas essas qualidades, que tal relembrarmos com detalhes a grandeza desse gigante cinematográfico?
Não poderia começar de outro jeito esse texto, sem falar do forte vínculo entre Shrek e sua trilha sonora chiclete. Desconheço uma viva alma que escute All Star, da banda Smash Mouth, e não consiga relacionar instintivamente a canção do grupo americano ao longa Shrek. Eu mesmo quando era criança (não faz tanto tempo assim), me recordo que só fui associar o nome desta música e sua respectiva banda, em um momento de curiosidade epifânica, após ter assistido o filme.
Segundo fontes envolvendo os bastidores, a escolha da DreamWorks pela Smash Mouth aconteceu por conta dos dois primeiros versos do hit I’m A Believer: “Eu pensava que o amor só acontecia em contos de fada, significativo para alguns mas não para mim”. Pois bem, diversas bandas fizeram os testes de audiência de trilha, mas somente esses dois versos conquistaram o coração dos produtores. O curioso é que All Star fez ainda mais sucesso e se tornou trilha de abertura da animação, assim como a canção mais famosa da banda californiana.
Apesar da fama proporcionada pela produtora de Steven Spielberg, se engana quem crê que Shrek seja uma narrativa original da DreamWorks. Apesar da genialidade, seu roteiro é inspirado na obra homônima de William Steig. No livro, Shrek também foi desenvolvido para o público infantil, no entanto foi graças à perspicácia dos roteiristas, Terry Rossio e Joe Stillman, que a animação foi vencedora do BAFTA em 2002, na categoria de Melhor Roteiro Adaptado.
Além da premiação do BAFTA, a brilhante direção de Andrew Adamson e Vicky Jenson desafiaram dois gigantes concorrentes, Monstros S.A. (Pixar) e Jimmy Neutron (Paramount), candidatos à primeira categoria de Animação do Oscar. Shrek levou o título e ainda concorreu na categoria de Roteiro Adaptado. Mas seu sucesso não se reduz a tais feitos, estas são apenas as consequências do merecido reconhecimento desta animação 3D (método de gravação também utilizado em CGI). As falas e a ousadia de criação dos produtores são a essência cativante desta relíquia animada.
Em um primeiro momento, os diretores Adamson e Jenson teriam entrado em contato com o icônico Chris Farley para a interpretação vocal do protagonista. O comediante dublou quase todas as falas, cerca de 90% das cenas, porém veio a falecer antes que completasse o roteiro da personagem.
Com isso, as vozes de Shrek, Fiona, Burro e Lord Farquad se imortalizaram nas dublagens originais de Mike Myers, Cameron Diaz, Eddie Murphy e John Lithgow. Aqui no Brasil, Shrek ganhou ainda mais notoriedade devido sua dublagem em português, na qual a presença do querido Bussunda como intérprete do ogro verde é inesquecível!
Shrek é perfeito devido suas imperfeições. Apesar de ser uma frase contraditória, ela resume bem a tônica deste quase-conto de fadas. Digo “quase”, pois esta é uma trama não convencional, ainda que seu encerramento o seja. O enredo nos apresenta contradições nunca antes percebidas ou criticadas pela indústria de animações. Ele explora a temática contrastante entre aparência e essência, nos obrigando a refletir: “como um ogro poderia ter chance com uma princesa?”
Em uma época onde as redes sociais sequer sonhavam em existir, a DreamWorks já estava bolando um plano para conscientizar seu público acerca de temas tão contemporâneos e urgentes. Até os espectadores menos atentos conseguiram perceber que o filme é recheado de mensagens subliminares, conceitos e lições morais (característica típica de qualquer conto de fadas). Se analisarmos os quatro personagens do núcleo principal, cada um deles simboliza os defeitos que comumente presenciamos nas relações humanas.
Começando por Shrek, nosso ogro favorito. De imediato somos apresentados por um ser carismático, que vive bem consigo mesmo, ainda que sua aparência seja considerada grotesca e ameaçadora pelos outros integrantes do reino. Apesar de ser constantemente hostilizado, sendo alvo de pré-julgamentos, nosso anti-herói demonstra resistência, fingindo não se deixar levar pelas críticas negativas daqueles que não o conhecem, quando internamente é visível o quanto estas questões o incomodam. O Burro por sua vez é uma figura que sofre pelo medo da rejeição. Sua carência e busca por aceitação são insaciáveis.
Ao passo que Fiona lida com questões de insegurança e abandono. Talvez o fato de ter sido trancafiada em uma torre, à espera de seu salvador, fez dela uma pessoa ansiosa e incapaz de ser honesta consigo mesma. Por fim, e menos importante, Lord Farquaad representa todos os vícios e defeitos de um ditador. Autocrata, vaidoso, demagogo, mentiroso e egoísta, Farquaad sonha em se tornar rei somente pelo título máximo de nobreza, que o legitimaria ainda mais suas práticas absolutas de poder. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.
Afinal, podemos tirar proveito da maneira suave como Shrek lida com pressões emocionais, sobretudo com questões relacionadas à aceitação e pertencimento. Apesar de estar distante de uma análise acadêmica ou um manual de conduta escrito por coachs de auto-ajuda, a jornada deste anti-herói nos revela a beleza do convívio em suas mais diversas formas. A convivência é o grande dilema na vida de todos os personagens. Shrek aparentemente vive bem consigo mesmo, mas demonstra obstáculos de relacionamento. Burro e Fiona são incapazes de enfrentar a solidão e Farquaad se torna refém da validação mútua (ainda que forçada) de seus súditos.
Como todo conto de fadas, os protagonistas conseguem viver felizes para sempre, no entanto eles não deixam de apresentar problemas, muito menos se tornam “perfeitos para sempre”. O casal Shrek e Fiona é a prova disso. Ambos se complementam e constroem um vínculo recíproco de confiança, algo que os torna verdadeiros e livres para continuar apresentando falhas, mas sem deixar de lado a perseverança que o amor exige sem precisar cobrar. O trocadilho presente na última frase “e viveram feios para sempre” diz muito sobre o que podemos extrair como aprendizado.
Ele nos questiona qual é o modelo de amor que a indústria cultural tenta nos vender. Vai mais além e nos obriga a refletir se o amor perfeito realmente existe. Não à toa, seu enredo satiriza diversas obras hollywoodianas de sucesso que exploram a temática de uma maneira assustadoramente clichê. Shrek não é nenhum príncipe encantado, branco, sensível e respeitado. Assim como Fiona igualmente não é uma donzela à espera de um robô sem defeitos. Apesar de tudo, eles conseguem construir a própria história de amor verdadeiro passando por cima de todos os julgamentos de seres que igualmente são imperfeitos.
Por essas e outras razões, a paixão de Shrek e Fiona traz à tona ainda mais luz à insegurança de quem teme ser real. Há muito tempo, nós (humanidade) tememos ser transparentes e com isso, produzimos, vendemos e consumimos padrões de beleza, paixões e amor que são mentirosos. Nos moldamos pelo desejo, abrindo mão daquilo que nos torna realmente felizes.
Por isso, Shrek é antes de tudo uma obra revolucionária. 20 anos atrás, ele se tornou o ogro que ousou ter um final feliz e as pessoas não apenas entenderam o seu propósito como também o abraçaram: fazer piadas da vida como também fazer piadas do ideal que as pessoas criam sobre a vida.