Vitor Evangelista
Estrelada por Amy Adams, a minissérie da HBO adentra o passado da jornalista Camille Preaker, que retorna a sua cidade natal para noticiar a morte de duas jovens garotas. Carregada de ressentimento, a produção caminha a passos lentos e cores quentes para mapear as relações familiares problemáticas de sua protagonista. Camille é uma mulher marcada por abusos. A começar pela distante relação que construiu com a mãe Adora (Patricia Clarkson, sublime), a perda de sua irmã caçula ainda na infância, os anos marcados pela automutilação e alcoolismo, a personagem de Amy Adams tem problemas em encarar o passado e, principalmente, deixá-lo ir.
A produção de Gillian Flynn (Garota Exemplar) adapta seu primeiro livro, lançado lá em 2006, quando o assunto de mulheres problemáticas e com as psiques estudadas e trabalhadas ainda não entrara em voga. A autora já chegou a dizer que essa é sua criação que mais lhe causa raiva, tanto pela índole das personagens por ela idealizadas quanto pela força negativa da história aqui contada.
Sob o olhar astuto e imersivo de Jean-Marc Vallée (Big Little Lies, obra-prima), Sharp Objects dança no limiar de um pós-horror e thriller psicológico mesclado ao relato sujo de uma história de abuso e desafeto. Todas as personagens em cena guardam ressentimento. Todas gostariam de não estar ali. Transitando pela infância de Camille por flashs pontuais e impactantes, a jovem interpretada por Sophie Lilils (de It – A Coisa) cimenta muito bem o arcabouço problemático e ferido que a persona de Adams transmite, já na vida adulta.
Junto de Adams, no hall das mulheres desagradáveis postas em tela, temos Adora e Amma Crellin. Patricia Clarkson constrói sua Adora internalizando todo o rancor e o desgosto que a personagem sente pela primogênita. Uma mulher silenciosa, ardilosa e que faz de tudo para manter intacta a reputação da cidade de Wind Gap, no Missouri.
Amma é a personagem mais interessante do seriado. A atuação de Eliza Scanlen patina entre duas personalidades que a garota oculta, sempre um passo a frente dos outros. Amma representa o meio da linha entre Camille e Adora. Enquanto sua meia-irmã tenta se desvencilhar das raízes da cidadezinha do interior e sua mãe ergue a bandeira do passado, a adolescente busca, ao longo dos oito capítulos, um lugar para se prostrar nisso tudo.
Recheado de silêncios harmoniosos, Sharp Objects faz de sua trilha sonora uma protagonista a parte. Sempre num clima anestesiante, a música da produção alude a tudo que os criadores querem explicitar ali. O barulho é tão problemático quanto a ausência dele. Camille sempre ouvir músicas para fugir da realidade crua de Wind Gap casa perfeitamente com o silêncio ensurdecedor que Adora reina em sua casa.
Outra protagonista oculta em meio as atuações marcantes é a cidade que toma lugar a trama. Conhecida pelo mercado do abatedouro de porcos e pelo clima quente, Wind Gap cresce ao passo que a história progride. Há aqui um ar misterioso, fantástico, quase folclórico, que incomoda, deixa o espectador na ponta da cadeira, esperando o pior. Sempre tomando as atenções para si, a cidade elucida as ações de seus residentes. Todos são daquele modo pelo simples fato de ser. Não há qualquer escapatória.
Completando a parcela de personagens deslocados e desconfortáveis, a minissérie apresenta o delegado Bill Vickery (Matt Craven), aparentemente o único policial da cidadezinha, responsável pela investigação da morte das meninas Ann e Natalie. Outro homem da lei que aqui figura é Richard Willis (Chris Messina), vindo do Kansas, que auxilia nas investigações, tem boas cenas junto da protagonista.
É importante ressaltar aqui que o foco do seriado não é a resolução dos casos ou qualquer retrato que demande explicações e motivos. Sharp Objects trabalha sim esses temas, mas toda sua carga criativa se concentra na ascensão e queda de suas mulheres protagonistas. As trocas dúbias de palavras fortes, o envenenamento de suas almas.
Os objetos cortantes do título são tão materiais quanto são figurativos, todo diálogo entre mãe e filha machuca até mais que a agulha que Camille leva a tiracolo. O show é pesado e sabe estudar as suas mulheres, deixando aqui um retrato semelhante ao que David Fincher fez em Garota Exemplar, de 2014. Quando dadas as devidas atenções, as mulheres são tão perigosas quanto os homens. Sharp Objects cumpre mais do que promete e finaliza sua trajetória na Televisão sem muitos porquês. Não se esqueça das cenas pós-créditos.