Vitor Evangelista
‘Vivemos como sonhamos, sozinhos’. A frase de Joseph Conrad, que ilustra a redação de Maeve, cai como uma luva na micronarrativa da britânica Sex Education. Quando o pensador vincula a ideia do onírico ao mundo real, ele também acaba revelando uma faceta importante de nossa relações humanas: a incessante necessidade de ter alguém para dividir momentos. E, como boa série teen que é, o sucesso da Netflix caminha gentilmente em territórios poéticos ao nos apresentar as vivências e amores dos estudantes de Moordale, no Reino Unido. Tudo regado a um texto sincero, desbocado e que transborda honestidade.
Além da forte carga de verdade que o seriado carrega, o que alavanca a produção para um requinte maior é o comando quase que todo feminino por trás das câmeras. O roteiro é assinado, em sua maioria, por mulheres, e a direção e criação seguem a máxima. Esse tato único resulta numa óptica que molda chavões e estereótipos à uma primeira camadas mas logo na cena seguinte se encarrega de injetar personalidade àqueles representados em tela. Ainda que o protagonista Otis (o charmoso Asa Butterfield) seja branco e heterossexual, todos os problemas que o garoto enfrenta saem da casinha comum e desbravam áreas antes restritas em produções adolescentes.
Sex Education une o espírito britânico da ótima Skins (2007 – 2013), recheia a mistura com a arrojada abordagem de Euphoria (2019) e brinda um resultado final que não deve nada a ninguém; com bom humor, auto-consciência e, o mais notável, praticando a simpatia com seu espectador. O texto soa simples e até mesmo óbvio, mas as construções de adolescentes para adolescentes transformam o batido em potente. Seja Otis discursando sobre como não devemos forjar relacionamentos, ou sua fala a respeito de não controlarmos nossos sentimentos. O roteiro do seriado se esbalda em ilustrar personagens carismáticos passando por situações relacionáveis a nós, fora da tela. Essa familiaridade constrói empatia, não a toa que as figuras que frequentam aquele high school são tão interessantes de serem assistidas, seja pro bem ou pro mal.
A simples premissa da série logo afoga suas intenções e cresce em grau e número. Sem medo de desenvolver os jovens, Sex Education é latente em suas entrelinhas. Existem escolhas narrativas que, por si só, dizem muito. O exemplo mais crasso é o aborto, apresentado logo de cara no início da temporada; essa problemática é resolvida sem imediações ou postergações. O terceiro episódio é responsável tanto por ‘normalizar’ essa espécie de tabu ao mesmo passo que introduz uma cara menos sisuda ao trabalhar com ele. A desconstrução dos clichês foge do óbvio e do plástico, o texto e a direção cavam fundo nas motivações e consequências dos personagens, sempre engrandecendo suas figuras centrais e nunca relegando-os a simples coadjuvantes da história de outros.
Eric (Ncuti Gatwa) representa tudo que Sex Education oferece de melhor. Descendente de africanos, o personagem nos é apresentado como o melhor amigo negro barra gay do protagonista, o Robin de seu Batman. Todavia, é quando o garoto se afasta da linha principal que sua trama ganha sustância. Resiliente e introspectivo, Eric encontra no pai uma figura doce e sensível, mas sempre protetora, ao lidar com sua sexualidade e expressão. As figuras masculinas e paternais de Sex Ed passeiam pela diversidade que o seriado com êxito abraçou. Aliás, mesmo sendo britânica, a produção se joga em inspirações norte-americanas, além de contar com um elenco rico em cor e forma.
Enquanto Eric cultiva bons frutos em casa, Adam (Connor Swindells) é refém de uma relação abusiva com sua figura paterna. Filho do diretor do colégio, ele é o primeiro a enfrentar problemas sexuais e recorrer à ajuda de Otis e sua clínica de terapia informal. Adam veste a carapuça da homofobia e da dureza, mas a série se encarrega de desengatilhar suas pré-definições, e sua personalidade, motivações e traumas são dissecados. Até mesmo Otis enxerga distância emocional na relação com o pai, e eventualmente reflexos de um passado ruim vem à tona, sempre num nota singela e que abraça sua vítima. É notável a preocupação do seriado em rimar figuras masculinas distintas, e como nossa criação se desenvolve falha ou manca em vista de comportamentos de nossos pais.
Se a figura paterna de Otis ressoa distante, sua mãe é quase uma luz no seriado. Interpretada pela brilhante e magnífica Gillian Anderson (que logo, logo dará as caras em The Crown), a terapeuta sexual Jean é o coração de Sex Education. Não fosse por sua formação profissional ou seu nariz enxerido, Otis não abraçaria o posto de conselheiro que o coloca no mapa no colégio. Jean é sagaz, astuta, sexualmente ativa e inibida de pudores. Sua construção versa uma figura divina na vida daqueles que a rodeiam. Os cabelos grisalhos refletem, a atitude despojada conduz e o roteiro reafirma, concordando com Ariana Grande, que Deus é uma mulher.
Figuras periféricas à trama principal ganham fôlego ao longo dos oito episódios da série, isso resultado da construção sem um grande clímax do seriado. Estratégia de roteiro que poderia ser traiçoeira e cair num desânimo de texto e direção, mas não aqui. A criadora Laurie Nunn equilibra todos seus personagens e, capítulo atrás de capítulo, serve momentos impactantes e essenciais em seu desenvolvimento. Isso rima com a decisão do aborto logo de cara, ou do baile do colégio não ser o fecho da temporada. Sex Education respeita suas peças de xadrez, deixa espaço para respiro e não se cansa de ampará-las. Os personagens servem à trama, e não o contrário.
O que fisga a atenção, além do bom humor e das atuações que emprestam veracidade a quem assiste, é a união do usual com o formidável. Quando Sex Education se presta a discutir relacionamentos amorosos ou sexuais, os assuntos recaem em duas esferas. Primeiro, a do conhecido pelo público geral, e aqui se filtram as tramas que envolvem corações partidos, sexualidade, rejeições. E lado a isso, o seriado navega em mares de descoberta e do inédito, quando toca nos pontos do sexo. Explicações teóricas e filosóficas de problemas de desempenho ou entrega, apetite e ápice. Tudo que enche os olhos de quem assiste, finalmente ligando lé-com-crê, rindo de situações já conhecidas e descobrindo mais uma porção delas.
Os dilemas de Aimee (Aimee Lou Wood) e seu desbravar íntimo vendem autenticidade, enquanto os fardos que Jackson (Kedar Williams-Stirling) é obrigado a carregar são força maior em suas atitudes e ações. Sex Education não dá ponto sem nó e até figuras como Ruby (Mimi Keene) protagonizam momentos emocionais. It’s my vagina. Ola (Patricia Allison) é o florescer de toda a segurança e o autocontrole que Otis tanto almeja, mesmo sem admitir. E a admirável Maeve (Emma Mackey) começa numa acústica a lá John Hughes e termina o seriado à mercê de sentimentos que jamais imaginaria ter. Enquanto descasca a bad girl do colégio, Sex Education aloca suas mulheres à frente de suas próprias histórias e, mesmo que tudo gire ao redor de Otis e da clínica, os acontecimentos coexistentes são o que dão vigor e energia para o seriado.
‘Vivemos como sonhamos, sozinhos’. A frase que abre o texto retorna com outros olhares ao fim do oitavo episódio. A série otimiza suas nuvens escuras mas sempre assegura de que nada é imutável. O discurso do amor romântico e da parceria de vida são ecos fortes das produções adolescentes produzidas atualmente. Filmes que se aproveitam de clichês e coincidências de gênero, que ilustram belas relações que protagonizariam comerciais de margarina.
Não tem nada errado em sonhar. Muito menos sonhar acompanhado de outros. A citação de Joseph Conrad pode transmitir negatividade ou pessimismo, mas em contrapartida, pode ser encarada com uma forma de proteção. Como Sex Education não resiste em dizer, se nós não nos amarmos, como conseguiremos amar outra pessoa?, a frase que reúne o imaginário com o mundano se torna continuação a isso tudo. Ao ponto de que ao conseguirmos sonhar sozinhos, encontrar alguém para dividir o onírico será tarefa simples.