Maria Vitória Bertotti
Compartilhando as mentes uns dos outros e vivendo experiências de maneira onipresente, a série estadunidense Sense8 inova na ficção e nos mostra que o espaço é apenas um detalhe para se viver inteiramente. Lançada em junho de 2015, a produção trouxe a temática LGBTQIA+ para o mundo do streaming, o que chocou parte do público da Netflix. Por essa razão, tantas pessoas se renderam à trama revolucionária dos sensates e suas habilidades de conexão mental.
Com direção e roteiro das irmãs Lilly e Lana Wachowski, já conhecidas pelo seu trabalho em Matrix (1999), as expectativas para a nova produção eram altas, e elas entregaram tudo. A série acompanha Sun, Lito, Nomi, Will, Kala, Wolfgang, Riley e Capheus; oito pessoas de diferentes lugares do mundo que nasceram com uma conexão mental e podem sentir as experiências uns dos outros (como se tivessem trocado de lugar) independente de distância ou qualquer outro fator. A descoberta acontece logo no início do primeiro episódio, quando todos têm a mesma visão de uma mulher que não conhecem morrendo.
Permeando um enredo nunca antes visto, com a criação de todo um universo ao longo das duas temporadas, Sense8 é marcada por sua diversidade. Desde a direção das Wachowski – que são mulheres trans -, até as vivências dos protagonistas, a comunidade queer é muito bem representada em tela. O relacionamento entre Nomi (Jamie Clayton) e Amanita (Freema Agyeman) é muito maduro do início ao fim, com direito a casamento no episódio final. Com muitos elogios sobre sua atuação, Jamie agrega uma importância enorme para a obra ao retratar uma mulher lésbica. Na ficção e na vida real, a atriz é transgênero e militante pela causa de gêneros, e por isso foi escolhida à dedo pela produção para dar vida a uma personagem tão significativa; são fatos que só acrescentam na construção da identidade única que a série incorporou.
Entrando na mente dos protagonistas, o vilão Sussurros (Terrence Mann) manipula de maneira cirúrgica – quase que literalmente, ao tentar fazer lavagens cerebrais no grupo – e brilhante, distorcendo as informações do passado e confundindo todo o sistema sensorial deles. Em meio a bloqueadores de sentidos sintéticos e estratégias internacionais, a trama de caça e fuga envolvendo Whispers e os sensates prendem a atenção do espectador.
Por ser uma obra que aborda a pluralidade de culturas, já que cada protagonista mora em um país diferente (com exceção dos estadunidenses Nomi e Will), as gravações ocorreram de maneira simultânea na Índia, Coreia do Sul, México, Londres, Quênia, Estados Unidos e Alemanha. A forma como as relações amorosas e afetivas são retratadas seguindo os diferentes costumes desses lugares têm o poder de impactar o público. Como exemplo, o casamento arranjado da indiana Kala (Tina Desai) e seu desejo de desistir da relação para investir no amor com Wolfgang (Max Riemelt), o sensate alemão do grupo.
E nessa constante disputa interna sobre seguir o coração ou agir racionalmente, os oito amigos se veem obrigados a cultivar uma relação intrínseca entre corpo e mente. Cada um com seus hábitos e ideais completamente diferentes aprendendo a compartilhar a vida e os sentidos em sintonia com o ambiente que cada momento exige. Como esse equilíbrio é extremamente difícil de ser atingido, alguns deles acabam sofrendo mais, como Riley (Tuppence Middleton), que já apresentava um quadro de depressão e acabou se agravando com as invasões mentais e manipulações do Sussurros, o vilão da trama que também é um sensate.
Levando em consideração as muitas cenas de ação e luta que a série oferece, os refrescos aparecem e dão brilho nas narrativas pessoais de cada personagem. As Wachowski acertaram em cheio ao trazer Nomi e Amanita como casal sáfico, uma comunidade que era pouco representada nas telas, e nunca de maneira tão sincera quanto em Sense8. Nomi é perseguida em vários momentos por seu gênero e sexualidade, mas sua companheira Amanita sempre está a apoiando e defendendo independente da ocasião. A conexão delas é o que faz a diferença, mostra a necessidade de equalizar as relações e o apoio que a outra pessoa pode nunca ter tido por conta da discriminação.
A união de Lito (Miguel Ángel Silvestre) e Hernando (Alfonso Herrera) não fica de fora da conta, e traz o questionamento sobre o que é ser LGBTQIA+ no mundo atual. O casal relata o drama da sexualidade íntima exposta de maneira não-consensual e como isso afeta suas carreiras profissionais, principalmente a de Lito, que é ator e perde grandes papéis, mostrando que o preconceito está enraizado em todos os ambientes. É uma luta pessoal conciliar a profissão e o “fardo” atribuído para si depois do escândalo midiático construído sobre seu namoro, tanto que ele desenvolve depressão e negligencia seu trabalho.
Além de tratar de maneira mais profunda sobre a existência queer, um dos pontos mais memoráveis para a maioria do público são as cenas sexuais abertamente retratadas. Mas, como Sense8 serve o tabu bem quebrado, o “amorzinho convencional” não foi capaz de agradar as diretoras e logo foram gravadas cenas bem reveladoras de uma orgia em que os 8 sensates compartilham as sensações uns dos outros simultaneamente.
Ao longo do tempo de produção, a série foi alvo de muitas injustiças, como o cancelamento após a segunda parte, lançada em 2017. Como forma de reconciliação com o público, um episódio final de duas horas foi ao ar em 2018, conseguindo encerrar o ciclo construído pelos personagens ao longo de três anos. Ainda assim, faltou mais consideração para com os fãs que alegam, até hoje, a necessidade de mais temporadas para esclarecer as dúvidas que restaram sobre o destino dos personagens.
O Brasil, apesar de não ter nenhum protagonista na obra, foi palco de um dos mais belos episódios de todas as temporadas. Parte do elenco foi à Parada do Orgulho LGBT e esbanjaram simpatia e acolhimento com a multidão, os verdadeiros responsáveis pela realização do episódio final após diversos abaixo-assinados em protesto à suspensão.
Cruzando uma linha temporal que transita entre o passado e o presente de maneira levemente confusa, com níveis de consciência que oscilam (tanto dos personagens quanto dos espectadores), Sense8 reúne o melhor da ficção e realidade numa mistura que prende o público desde o primeiro minuto de série. Amada por muitos e odiada pelos conservadores, doses exatas de suspense e romance são oferecidas ao longo dos 24 episódios totais. Mesmo sem mais novidades sobre a trama, milhões de pessoas continuam apaixonando-se pela conexão que os sensates compartilham e a mensagem de apoio e representatividade para todes que transmite.