Nathan Nunes
Três personagens movem a trama de Rye Lane: Um Amor Inesperado, disponível no catálogo da Star+ (em breve Disney+). O primeiro é Dom (David Jonsson), um contador que, nos minutos iniciais, se encontra desolado pela traição da ex-namorada Gia (Karene Peter) com Eric (Benjamin Sarpong-Broni), melhor amigo do rapaz. A segunda é Yas (Vivian Oparah), uma aspirante a figurinista também recém-saída de um término com o pretensioso artista plástico Jules (Malcolm Atobrah). A situação dos dois parece a mesma, mas as personalidades são completamente diferentes. Ele é um ‘filhinho de mamãe’ introvertido, neurótico e com problemas de autoconfiança. Ela é extrovertida, de espírito leve e carisma imbatível.
Os opostos se conhecem no banheiro de uma exposição sobre a boca humana, com a curadoria do amigo em comum Nathan (Simon Manyonda). Yas escuta Dom chorar e, sentindo-se intrigada e também com pena do jovem, decide fazer companhia a ele. A partir daí, o longa passa a acompanhar as aventuras dos dois pelas ruas da terceira e principal personagem da narrativa: a região de South London, mais especificamente os distritos de Brixton e Peckham.
Localizados ao sul do Rio Tâmisa em Londres e marcados por uma forte diversidade cultural, os distritos se mostram parte central do projeto em vários aspectos. O título, por exemplo, refere-se ao mercado de mesmo nome, localizado em Peckham. Já a câmera da diretora Raine Allen-Miller faz questão de exaltá-los com planos abertos, cores vibrantes e uma movimentação suave, como se estivéssemos passeando junto dos personagens e sentindo o mesmo fascínio que eles.
Nessa linha, destaca-se também o comprometimento de Rye Lane em mostrar diversas facetas da área. Durante os ágeis 82 minutos de duração (mérito da montagem de Victoria Boydell), o público é levado a conhecer a cena artística das galerias elitistas, o karaokê underground de Mona (Omari Douglas), a gastronomia chique de restaurantes exóticos, a comida de rua singela (com direito a uma participação especial impagável), o subúrbio pitoresco, os parques onde idosos ricos se exercitam, entre outros.
A força do filme, entretanto, não se manifesta apenas nas ruas de Brixton e Peckham, pois Rye Lane também abraça uma encenação declarada em cenas pontuais, como quando cada um dos dois revela a história de seus próprios términos. Na versão de Dom, Yas faz as vezes do público, ao acompanhar passivamente a tragédia do rapaz sendo recontada no cenário de um cinema. A cena termina com ambos observando o Dom antigo assistindo um filme na tela grande. Mais metalinguístico que isso, impossível.
Já na versão de Yas, Dom também se torna público, mas de maneira literal. Diversos clones do rapaz ocupam todas as poltronas de uma sala para acompanhar uma reconstituição teatral do término, com direito a palco, objetos cênicos e reações da plateia. Ambas as soluções esbanjam tons fluorescentes e planos chamativos, cuidadosamente pensados pela cinematografia de Olan Collardy. A criatividade não para por aí, pois a ênfase na figura do espectador, seja Dom na história de Yas ou Yas na história de Dom, também dialoga com a noção de Brixton e Peckham como personagens na trama dos dois.
Para Rye Lane, os distritos representam muito mais que uma mera locação bonitinha. Um exemplo no roteiro, escrito por Nathan Bryon e Tom Melia, é a maneira como a região reflete simbolicamente a jornada dos protagonistas. A exposição bizarra de bocas os une, enquanto o passeio pelas ruas os transforma. Dom se reconcilia com o término no restaurante de comida exótica (e, curiosamente, brasileira), mantém a companhia de Yas pelas lojinhas e food trucks e, por fim, rejeita o último trem de volta para casa, abraçando metaforicamente as novas possibilidades em sua vida. A jovem, por sua vez, vai sendo desconstruída pela narrativa, ao passo que sua autoconfiança em elogiar estranhos aleatoriamente é substituída pelo simples medo de encarar um karaokê lotado.
Outro exemplo, já no campo imagético, é a misé-en-scene. As primeiras cenas de interação da dupla são encenadas prendendo ambos aos seus respectivos planos e mantendo-os pequenos, em relação ao cenário. Conforme a relação evolui, vemos eles cada vez mais próximos nos enquadramentos, além de uma mudança no ambiente. Os espaços, que começam engolindo Dom e Yas, terminam se equiparando aos dois, como se a cidade não fosse mais uma presença intrusiva, e sim uma testemunha genuína desse romance.
No fim das contas, Rye Lane acredita que cidades, bairros e regiões específicas são capazes de gerar belas histórias de amor. Nesse sentido, não há encerramento melhor do que um beijo apaixonado de Dom e Yas no desembarque de um barco turístico, próximo ao Rio Tâmisa. A câmera, que tanto prendia o casal em planos individuais fechados, finalmente os prende juntos em um mesmo plano. Depois, ela se abre em uma visão aérea em 360º do local, capturando os dois no centro do quadro e, nas extremidades, as pessoas ao seu redor, uma imagem que representa perfeitamente o que o filme quer dizer: amar é urbano.