Ana Júlia Trevisan
Sophia Loren. Apenas o nome dela basta para iniciar a crítica. Uma das principais atrizes do mundo, e talvez a mais renomada da Itália, estava há mais de uma década longe dos grandes holofotes, após atuar ao lado de Daniel Day-Lewis e Penélope Cruz no filme Nine, dirigido por Rob Marshall, fazendo apenas breves aparições nas telas desde então. Mas como a aposentadoria nem sempre é a escolha mais fácil para quem respirou Cinema durante toda vida, como Sophia, ela retorna ao audiovisual sob a direção de ninguém menos que seu filho Edoardo Ponti, e mostra que ainda tem força e talento de sobra para atuar.
La Vita Davanti a Sé é o título original da produção que marca a volta de Sophia Loren. Mundialmente conhecido como The Life Ahead, o filme recebeu o nome de Rosa e Momo no Brasil. Se engana quem acha que a tradução feita não tem nada a ver com a história, Rosa e Momo são os protagonistas da trama. Rosa é uma ex-prostituda que, ao chegar na velhice, passou a cuidar dos filhos das colegas de profissão, e Momo é um órfão senegalês que, após perder a mãe, ficou aos cuidados do Dr. Coen. Todas as mudanças na vida do garoto acabam levando-o para o mundo do tráfico e do roubo.
Distribuído pela Netflix, o roteiro é uma adaptação do livro A Vida Pela Frente de Romain Gary, que já havia ganhado outra filmagem em 1977, dois anos depois de seu lançamento. Madame Rosa não é muito conhecido na terra das palmeiras, mas recebeu a estatueta do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e do César de Melhor Atriz para Simone Signoret. Diferente da produção de 1977, que é francesa, Rosa e Momo se ambienta na Itália, trazendo mais conforto à atriz veterana.
Para quem é acostumado com a turbulenta cenografia estadunidense, o visual de Rosa e Momo chega a ser aconchegante, com a calorosa iluminação das ruas italianas muito bem aproveitadas. O visual da casa, e principalmente suas cores, é tão bem trabalhado que você se pega pensando que é óbvio Rosa morar naquele local.
Assim como Breaking Bad é marcado pela teoria das cores, que se reflete na vestimenta das personagens, a direção de Rosa e Momo também acerta em cheio ao utilizar a técnica de modificar a paleta de cores das roupas dos protagonistas conforme eles carinhosamente se aproximam. Isso ajuda a criar o apelo emotivo que é corroborado para os sentimentos que pairam no ar do telespectador quando o filme acaba.
Rosa e Momo começa por aquilo que é seu final, não entendemos direito toda afobação da primeira cena até que há o corte para o real início da história. Tendo em vista que a trama é construída cena após cena, conforme são revelados os traumas das personagens principais, e que não há grande plot twist na produção, pois o intuito é ser um melodrama simples e emocionante, não havia necessidade do início e do fim serem o mesmo.
A vida deles se cruza quando Momo rouba no meio da rua a bolsa de castiçais de Rosa, mas eles verdadeiramente começam o enredo a partir do momento em que o Dr. Coen não pode mais cuidar do menino de 12 anos e, humildemente, vai até Rosa pedir para que fique com o garoto. Até então, ela é apenas uma mulher que cuida de filhos de prostitutas, as incógnitas sobre sua vida surgem conforme há evolução na personagem, e é nessa construção onde todo brilhantismo de Sophia Loren é depositado.
Temos duas pessoas vivendo traumas pessoais. A comunicação corporal do ator mirim, Ibrahima Gueye, foi excepcional. Sua solidão e suas explosões de raiva nos fazem esquecer que tudo aquilo não passa de encenação. O ator mostra ser promissor ao encarnar com tanta verdade o personagem pré-adolescente de psicológico complexo. O envolvimento comercial com um traficante e a ânsia de querer ser o melhor representam de maneira cirúrgica que comportamentos problemáticos são reflexos de dores e grandes perdas. É um prazer assistir a atuação de Ibrahima Gueye durante uma hora e meia.
Rosa é sobrevivente do holocausto, carregando em si a tatuagem de identificação de Auschwitz. Em uma tocante cena, Momo pergunta à ela o que é a marca em seu braço e não entende o significado de campos de concentração. Nesse momento entendemos o traço de personalidade mais isolado de Rosa, que toda noite procura refúgio em um quarto separado de sua casa. Ela opta por manter a inocência de Momo em relação a Auschwitz do que contar todas barbaridades cometidas por nazistas. Em uma temporada de premiações onde não vemos tantos filmes de guerra como de costume, a sensibilidade em que o assunto é tratado em La Vita Davanti a Sé é um respiro em meio a canhões.
O passado das personagens não cobram um grande enredo para a produção do presente filme. Esse fato, junto a incessante preocupação em construir laços afetivos entre os papéis interpretados por Ibrahima Gueye e Sophia Loren, torna as tramas secundárias completamente esquecíveis. Lola, interpretada pela roteirista de Vis a Vis, Abril Zamora, se encarrega apenas pelo papel de amiga de Rosa e mãe de uma das crianças, não tendo nenhuma linha do tempo própria que a faça caminhar sozinha.
Ao mesmo tempo que o filme conta o passado, ele constrói o presente, com as atitudes das personagens sendo justificadas pelos traumas. A história sobre cuidado mútuo mostra Rosa aceitando cuidar de Momo contra sua vontade, mas quando a personagem começa apresentar os sinais do trágico Alzheimer, é o garoto privado de cuidados durante a segunda infância que se mostra leal a ela.
A confiança também é peça fundamental para o quebra-cabeça de emoções. O pedido de Rosa nos momentos de lucidez, refletido de seu medo durante a Segunda Guerra, é acatado pelo menino de maneira fiel. Toda defesa que ele constrói em relação àquela figura que o cuidou por um curto período reforça o apelo emocional que é o foco.
Sem intenção de ser grandioso, a simplicidade do filme e o retorno de Sophia Loren são os principais fragmentos de sucesso da produção cinematográfica que vem dando o nome em premiações como o Globo de Ouro e o Critics Choice Awards, concorrendo em ambas na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira. Ibrahima Gueye que, dirigido com maestria, se fez notável ao lado da gigante Loren, recebeu a também indicação no Critics Choice Awards na categoria de Melhor Ator/Atriz Jovem.
Com apenas essa indicação à Canção Original ao Oscar 2021 fica o questionamento se veremos Sophia Loren, primeira atriz a ganhar o prêmio com um filme não falado em inglês e outro pelo conjunto de sua obra, e seu filho correndo em produções futuras pela campanha para o prêmio de Melhor Atriz, da mesma forma que tentou emplacar o curta de La voce umana de Edoardo Ponti, apresentado no Festival de Cannes em 2014. E foi pré-selecionada, mas não chegou à lista final da premiação com O que Sophia Loren Faria?, curta em documentário lançado pela Netflix esse ano.
Mas o verdadeiro destaque e que já conseguiu faturar um prêmio televisionado pra conta, além de uma indicação ao Oscar, é Io sí. A canção original de Rosa e Momo é assinada por Diane Warren – mulher com maior número de indicações ao prêmio da Academia sem nunca ter ganho – e magicamente interpretada pela inconfundível voz de Laura Pausini, que instiga o telespectador a assistir aos créditos para continuar apreciando a canção. Parte desse encanto talvez seja porque a trilha sonora deixa a desejar, à exceção de Malandro, cantada por Elza Soares, que rendeu a cena de Loren dançando, por momentos as faixas tocadas destoam da premissa inscrita no roteiro.
Rosa e Momo encarna um roteiro forte com suas sutilezas que nos faz pensar horas a fio mesmo depois de seu término. O sacrifício de histórias secundárias permite que a produção atinja seu objetivo central, o de emocionar. O filme em sua totalidade pode não ser um primor, mas a direção sabe onde quer chegar e consegue elaborar um trabalho sequencial que não se perde durante a caminhada. A Canção Original foi a cereja no topo do bolo, dando melodia pra dança da trama. Ibrahim Gueye inicia sua jornada com potencial de abrilhantar muitos produtos culturais e Sophia Loren retorna completa e dona de si.