Enrico Souto
BROCKHAMPTON é a primeira boyband da história formada pela internet. Entretanto, talvez o uso desse termo – normalmente imputado a grupos de música pop como *NSYNC, Backstreet Boys e One Direction – possa soar deslocado ou inadequado para um grupo de hip-hop, mas é propriamente assim que eles se definem: boyband. Isso por si só já evidencia uma quebra de barreiras de masculinidade que o grupo fará constantemente, mas seu trabalho não se resume a isso.
Apesar de serem frequentemente comparados com o coletivo de rap Odd Future, que revelou grandes artistas como Tyler, The Creator e Frank Ocean, a banda vai muito além desse paralelo, encabeçando um novo movimento musical e estético da cena estadunidense, protagonizado pela juventude do país, que já é muito mais relevante que qualquer coisa que a Odd fez em seu período de atuação. Essa energia pujante se manifesta o tempo todo em seu som, agora conquistando uma maturidade muitíssimo bem-vinda em ROADRUNNER: NEW LIGHT, NEW MACHINE.
Os integrantes se conheceram e fundaram a banda através de um fórum sobre Kanye West em 2015 – o que já é peculiar por si só –, agregando hoje 14 artistas, que vão desde vocalistas, produtores e fotógrafos, até responsáveis por direção criativa e gerenciamento. Considerar todos os envolvidos no processo criativo como membros, e não só quem aparece nos holofotes, revela o olhar valioso, e infelizmente escasso, do grupo sobre o valor coletivo da produção de sua música. Todos eles são BROCKHAMPTON porque BROCKHAMPTON não existiria se não fosse por cada um deles.
Apesar de se lançarem em 2016 com a mixtape ALL-AMERICAN TRASH, é em 2017 que eles finalmente alcançam o mainstream com a trilogia SATURATION, uma sequência de três álbuns que totalizam quase 50 músicas e mais de 2 horas de conteúdo. Como foi lançado no decorrer do ano, o projeto manteve-se vivo durante todo o período e, mesmo dividido em três partes, ainda funcionava como uma obra única, com uma fluidez surpreendente para um produto tão longo. O fato dos discos terem sido revelados em um intervalo curto de tempo reforça o caráter imediatista e de constante urgência de uma geração millennial hiperconectada que transborda em todas as faixas.
Essa vontade insaciável por se expressar é traçada por uma sonoridade carregada, pesada e por versos diretos, afrontosos, despojados e cheios de comentários políticos, perpassados também pela vivência marginalizada de grande parte dos integrantes. BROCKHAMPTON é um grupo diverso inclusive em âmbito de sexualidade, sem hesitar ao abordar isso abertamente, o que é raro dentro da cultura hip-hop.
Contudo, em 2018, ao mesmo tempo em que estavam no auge de sua popularidade e assinavam um grande contrato com a gravadora RCA Records, a boyband, que sempre apoiou um forte discurso sobre diversidade e respeito, é surpreendida quando um dos seus principais integrantes, o rapper Ameer Vann, que estampa as três capas de SATURATION, é acusado de assédio e abuso sexual, culminando em sua súbita expulsão do grupo. Após esse choque, quando todos acreditavam que a banda interromperia suas atividades e se afastaria dos holofotes para se reagrupar, a resposta imediata foi iridescence.
Esse álbum é sujo, psicodélico e abarrotado de informação, beirando o desconfortável. Quase como se reunisse toda sua frustração e a transformasse em música, pegando os elementos mais agressivos de SATURATION e os elevando ao máximo. Provido de graves estourados e sintetizadores desarmônicos, iridescence não dá espaço para respirar; é um grito de ódio que expõe toda a raiva e desilusão com a fama que eles experienciavam.
Se iridescence foi a resposta imediata ao ocorrido, o álbum do ano seguinte, GINGER, veio de um entendimento mais sóbrio e de um questionamento interno. O resultado disso foi, ao invés de um trabalho eufórico e caótico, um olhar intimista sobre as emoções e anseios de cada um dos integrantes. Eles abrem a porta de seus corações e dão espaço para suas fraquezas e vulnerabilidades, num movimento de alívio e quietude. A sonoridade do disco reflete isso, optando por uma abordagem branda e comedida, explorando vertentes musicais do pop ao R&B.
GINGER é não só uma ruptura da banda e seu som, mas também do próprio gênero do rap como um todo, gerando, naturalmente, opiniões divididas. Grande parte da sua base fiel de fãs criticou a produção por se sentir pouco familiarizada com sua música melosa e sentimental. O que, ao meu ver, só demonstra o cunho subversivo da obra, que nesse caso é um ponto positivo.
Até que, então, emerge o ano de 2020, junto com a pandemia. Conforme éramos forçados a nos isolar, a BROCKHAMPTON finalmente se permitiu suspender seus trabalhos e, pela primeira vez em 4 anos, interrompeu sua sequência de lançamentos anuais de álbuns. A banda ficou inativa pelo ano todo, e, enfim, retornou abruptamente com ROADRUNNER: NEW LIGHT, NEW MACHINE, divulgando seu primeiro single apenas 15 dias antes da chegada do disco.
A maturidade desse trabalho é incontestável, dado o tempo que ele teve para ser produzido, porém, ainda assim, não deixa para trás a potência jovem que os fizeram explodir em 2017. Na verdade, acredito que ROADRUNNER, assim como o nome sugere, busca assimilar o caráter fugidio e efêmero das temáticas abordadas em cada uma de suas obras, sempre renovadas ano após ano. Cada música parece resgatar elementos distintos de seus álbuns anteriores, mergulhando sobre seu passado a fim de encontrar respostas para o presente.
Porém, mesmo que seja um olhar para trás, ROADRUNNER está longe de ser uma parada ou unicamente reciclado, pelo contrário. JOBA, um dos vocalistas da banda, em vídeo promocional, define o álbum como “o sentimento de liberdade, e se não liberdade, o sentimento de correr de alguma coisa e em direção a outra coisa”. O objetivo aqui, portanto, é se libertar de um lugar funesto e ir em busca de sua utopia, e essa sensação está longe de ser estática. Não importa o quanto eles busquem no passado, eles sempre encontram algo novo e inexplorado. É um exercício de encontro e reencontro.
Isso pode ser enxergado na sua sonoridade dinâmica e diversa. O primeiro single do disco, BUZZCUT, com participação de Danny Brown, é vigoroso e expansivo, aludindo instantaneamente aos tempos de SATURATION. Porém, quando a banda faz os fãs acreditarem que a produção será um retorno às origens, eles são logo surpreendidos com o lançamento do segundo, COUNT ON ME, que acompanha versos de A$AP Rocky e SoGoneSoFlexy, e vocais de apoio de Shawn Mendes e Ryan Beatty, muito mais próximo da estética romântica e emotiva de GINGER.
Tal dualidade é alimentada e se mantém em toda a tracklist. BANKROLL, por exemplo – que, por sinal, deu as caras pela primeira vez em 2018 com o teaser de anúncio da i’ll be there tour –, dialoga tanto temática quanto musicalmente com as faixas caóticas e alucinantes de iridescence. Enquanto outras, como I’LL TAKE YOU ON e OLD NEWS, estruturadas por beats enérgicos cheios de vocais melódicos embebidos por autotune, abraçam uma faceta clássica de boyband e, em questão lírica, são praticamente love songs.
Essa variação de temáticas também se manifesta de outras formas. ROADRUNNER apresenta uma quantidade considerável de canções que se aproximam do boombap: desde WINDOWS, com aparições de quase todos os vocalistas da banda, em uma estrutura musical que se relaciona à cultura dos cyphers, que foram febre na cena brasileira entre 2016 e 2018, até WHEN I BALL, onde eles exploram suas memórias e experiências da infância sobre um beat old school que remete bastante aos primeiros trabalhos de Kanye West. No entanto, para além disso, a banda ousa de verdade em momentos surpreendentes como WHAT’S THE OCCASION?, um indie rock embalado por guitarras cheias de efeito, e DEAR LORD, que arrisca um coral gospel inspirador, e os resultados dessas experimentações são simplesmente extraordinários.
O álbum também não deixa de entregar momentos emocionantes e confessionais, como na poderosa e trágica THE LIGHT, protagonizada pelos integrantes JOBA e Kevin Abstract enquanto abrem suas feridas mais íntimas: JOBA relatando seus problemas com saúde mental, principalmente após seu pai ser vítima de suicídio, e Kevin delatando as tensões que viveu ao crescer no Texas, em uma família conservadora, como um homem gay. É um manifesto cru, intenso, e muito difícil de se ouvir.
E, mesmo nos seus estados de maior vulnerabilidade, ROADRUNNER nunca abdica de ser político. DON’T SHOOT UP THE PARTY oferece um dos versos mais expressivos da carreira de Kevin, dando seu statement sobre a violência institucional destinada a grupos minoritários nos Estados Unidos, em uma alusão metafórica (ou não) aos atentados a tiros que têm sido cada vez mais comuns no país, o que obviamente também atravessa suas vivências pessoais.
No entanto, ao mesmo tempo que é um álbum excepcionalmente sólido, sua estética visual pode parecer confusa e desordenada. O clipe de BUZZCUT, por exemplo, é chamativo, colorido e faz referência a sitcoms dos anos 90, como Um Maluco no Pedaço, o que lhe dá um ar nostálgico e saudosista, ao passo que mistura esse visual com elementos de CGI ultrapassados, na limiar do uncanny valley, e propositalmente artificiais. Essa combinação bizarra e psicodélica, ao mesmo tempo que causa familiaridade, também causa incômodo e estranheza.
Mas, ao se analisar com atenção, esses elementos deixam de parecer contraditórios, quando se entende que eles são intencionalmente desconfortáveis a fim de dar maior impacto à sua catarse, concedida em THE TOP OF THE MOUNTAIN. O clipe une as faixas CHAIN ON e DEAR LORD, e, dessa vez, essa nostalgia, envolta em uma estética retrô de videotape dos anos 90, parte de um lugar etéreo e espiritual, trazendo alento e conforto. Visto isso, a pergunta que fica é: como uma mesma estética consegue capturar sensações tão diferentes? Há várias respostas possíveis, porém é exatamente essa ambiguidade que torna seu trabalho visual tão intrigante.
Ouvindo o álbum, dá para compreender que a situação de vida dos meninos não estava fácil. Mesmo as músicas mais frenéticas e entusiasmadas vem com um gosto amargo e aflitivo, nunca é só euforia. Dessa forma, BROCKHAMPTON transforma suas angústias em arte ao buscar nova luz em luzes antigas, procurando por toda a sua discografia múltipla e díspar soluções para problemas que os assolam hoje, dessa vez com o auxílio de outros artistas.
Feats nunca foram do feitio da banda, mas aqui eles possuem um papel crucial. Do mais infame do trap moderno da A$AP Mob, ao retorno às raízes do R&B de 2000 com Charlie Wilson, cada participação oferece outras perspectivas para cada uma das adversidades que são levantadas, ajudando a moldar suas narrativas e dando cor para as composições.
Tem uma frase na última faixa de ROADRUNNER, THE LIGHT PT. II, que sempre ressoa em mim quando ouço, e que acho que sintetiza todo o seu conflito emocional: “A luz vale a espera”. Ou seja, mesmo passando pelo inferno, diante de um estágio da vida conturbado, lúgubre e aparentemente insolucionável, vale a pena resistir e aguardar pelo fulgor. Assim como em Salmos 30.5: “O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã”.
Em THE TOP OF THE MOUNTAIN, após eles percorrerem à corrida todo aquele árduo percurso até o topo da montanha verdejante, o clipe acaba com eles tornando-se luz e sendo arrebatados para os Céus, dando ao processo de superação uma natureza divina e literalmente bíblica. A alegoria religiosa nunca fez tanto sentido. Em suma, a mensagem é clara. Não importa o quão fundo estivermos, que nunca percamos a esperança em nós e nos nossos. Então, resistiremos.