95ª edição do Oscar pode acender a fagulha de um movimento de retorno já orquestrado
Guilherme Veiga
O início da história do Cinema, na exibição de A Chegada do Trem na Estação em 1895, foi caracterizado pela fuga do público da sala, em função da novidade daquela tecnologia aliada com a perspectiva de filmagem do trem. A partir daí, iniciava-se uma jornada duradoura e, a princípio, inabalável. A Arte de fazer filmes superou as duas grandes guerras, inclusive servindo como ferramenta de propaganda, a grande depressão, a Guerra Fria, as ditaduras do século XX e até mesmo a greve de roteiristas de 2008. Sempre de portas abertas e salas lotadas.
Se a pandemia da covid-19 alterou a forma como encaramos o mundo, com a Sétima Arte não foi diferente. Dessa vez, as pessoas não fugiram das salas, pois sequer entraram. Além das consequências econômicas – que aqui no Brasil, segundo o Sistema de Controle de Bilheteria (SCB), representou uma queda de 77,5% no faturamento dos espaços de projeção em 2020, comparando com o ano anterior – viu-se também a ascensão do streaming para além de uma ferramenta distribuidora. Mas essa veia de distribuição desses serviços foi ainda mais impulsionada com o período de isolamento, sendo uma válvula de escape das produtoras nesse período de incerteza. Com as plataformas online nascendo da morte da Blockbuster, pela primeira vez em tempos, surgiu a dúvida sobre a próxima vítima ser o Cinema como o conhecemos.
O cenário era caótico no mundo, e mais ainda no audiovisual. A conjunção dos astros resultou em uma tempestade perfeita para a Sétima Arte, que, mesmo antes do período de pandemônio, via o streaming calcando cada vez mais espaço. Com a consolidação da Netflix, proliferou-se o número de plataformas vigentes, algumas até como derivadas dos próprios estúdios hollywoodianos, caso do Paramount+, Disney+ e HBO Max (empresa da Warner). Não só isso, viu-se também o aporte de grandes empresas de outras vertentes do mercado nesse segmento, caso da Amazon, com o Prime Video, e a Apple, com o AppleTV+.
Isso atraiu atores, como no caso de Adam Sandler que está tendo e ainda terá seu rosto vinculado na Netflix graças a um contrato multimilionário com a locadora vermelha. Ela também foi responsável por começar a movimentar o mercado de diretores – algo inédito até então – e teve como suas primeiras aquisições, a exclusividade de Alfonso Cuarón, que rendeu o brilhante Roma, e Martin Scorsese, responsável pela obra prima O Irlandês (hoje, os dois também tem parceria com a Apple). As duas colaborações resultaram em indicações ao streaming para o careca dourado.
Scorsese inclusive, é um ferrenho defensor da experiência cinematográfica no espaço Cinema (vale lembrar que é dele a carta de amor A Invenção de Hugo Cabret). Em um primeiro momento, as telas se mostram, assim como o lendário diretor, relutantes. Tanto que, um filme original das plataformas, para concorrer ao Oscar, precisava estrear no circuito comercial. Isso demonstrava que, por mais ameaçado, o Cinema ainda se mantinha no topo da hierarquia audiovisual. Porém, os dois anos de pandemia foram responsáveis por virar o mundo ao contrário sem que ninguém reparasse.
As salas físicas deixaram de ser unanimidade e receptáculo de uma forma de Arte, para agora desenvolver uma relação de competição sem ao menos desenvolver um produto próprio para competir. A própria Academia, sinônimo de conservadorismo, desenvolveu um streaming próprio para driblar o período pandêmico e a burocracia de enviar cópias aos votantes. Ainda no formato antigo da categoria de Melhor Filme, com seus oito indicados, filmes originais de plataformas começaram a figurar na principal disputa a partir de 2019 com Roma, que também integrou – e venceu – a categoria de Melhor Filme Internacional daquele ano.
Esse cenário é um legado bom da chegada das plataformas digitais na indústria. Com um mercado mais globalizado e tais serviços com frentes fora do eixo americanizado, a visibilidade da categoria internacional aumentou, muito também em função da renovação dos votantes. O reflexo pode ser visto na edição de 2023 do Oscar, com Nada de Novo no Front sendo altamente reconhecido e RRR se tornando uma esnobada sentida pelo público.
O case da indústria internacional esperava ser replicado na produção local americana. As expectativas ficaram ainda mais altas após No Ritmo do Coração se tornar o primeiro filme de streaming a conquistar a estatueta mais importante da noite no Oscar 2022. O longa apresentava sinais de um eventual domínio dos serviços, principalmente por ter sido adquirido em Sundance, festival em que os grandes estúdios disputam as obras exibidas e, mesmo com a alta demanda, caiu nas mãos de uma iniciante como a AppleTV+, demonstrando a força dessas plataformas para além do conteúdo próprio. Porém, as coisas saíram dos trilhos muito rápido.
Uma decolagem demorada e uma queda relâmpago
Apesar das recentes vitórias, é fato que o streaming nadou contra a maré para se estabelecer na indústria. O conservadorismo do entretenimento, em especial da Academia, sem dúvidas foi um dos maiores dificultadores. Beasts of No Nation, por exemplo, foi uma das primeiras esnobadas de produtos originais das plataformas ainda em 2016, e nesse início era deliberadamente desenvolvido todo um lobby contra Netflix e derivados. Com a proliferação dessas produções, chegou em um ponto em que ficou impossível esquecê-los, mas mesmo assim, de alguma forma, eles ainda eram prejudicados pela associação.
Mas é aí que entra um problema: os serviços digitais não sabem e não têm malícia para fazer campanha. A Apple, por exemplo, não se arriscou e após a vitória decidiu apostar no irmão espiritual de CODA, resultando no esquecível Cha Cha Real Smooth como seu filme da temporada. A Netflix, mesmo com ótimos nomes no catálogo, focou erroneamente no tardio Glass Onion. O caso mais absurdo é o da Amazon. A empresa do calvo que quer ser astronauta tinha o ouro incontestado Argentina, 1985 em mãos, mas moveu mundos e fundos para a campanha de Treze Vidas. “Qual?” você deve estar pensando. Exatamente.
Porém, o que botou a pá de cal em um 2022 tenebroso nos streamings foi a volta dos cinemas com os dois pés na porta. Depois de muito ensaiar (e falhar) seu retorno, como assistimos na empreitada desastrosa de Nolan com Tenet ou no despercebido Velozes e Furiosos 9, a Sétima Arte parecia se tornar uma das sequelas da pandemia no pós-isolamento e provavelmente passaria a ser regida pelas plataformas de VoD.
No entanto, o que aconteceu fugiu do roteiro imaginado. No berço de Hollywood, o crescimento de bilheteria em 2022, comparado a 2021, foi de 65%, tornando a América do Norte novamente o maior mercado consumidor de Cinema, com uma arrecadação de U$S 25 bilhões. Já no Brasil, o agora ano de retomada representou um aumento de 485% no público somente no primeiro semestre, de acordo com a Ancine. A volta foi capitaneada por Top Gun: Maverick, o retorno da Marvel (apesar de suas críticas) às grandes telas e contou também com Steven Spielberg e James Cameron, pai e padrasto do blockbuster, respectivamente.
O ciclo sem fim
Claro que isso refletiria na maior premiação do Cinema. Quando o streaming começou a figurar na disputa de Melhor Filme no Oscar, em 2019, Roma foi o único representante dos serviços. Gradativamente, a aparição dessas produções foi aumentando, com 2021 e 2022 apresentando a maior cota, com três filmes cada edição. O que se esperava era que, para o ano de 2023, ainda como reflexo do final do isolamento, o número se mantivesse, ou se superasse. Porém, a principal categoria voltou ao patamar de 2019: apenas um indicado, mais uma vez pela Netflix e com um filme internacional. Só que a nomeação desse ano é mais mérito próprio de Nada de Novo no Front (que nem tem tantos méritos, é só mais um filme de guerra) do que da Tudum.
Mas é importante ressaltar que essa não é uma história de vilão contra mocinho. Babilônia explicita que a indústria é um ninho nefasto de cobra engolindo cobra, e nessa narrativa toda não há distinção polarizada e muito menos bem contra o mal: o Cinema como produto é a vítima, o acusado e a testemunha. Outro aspecto que a obra de Chazelle também nos mostrou é que essa não foi a primeira vez que a Sétima Arte foi posta contra a parede, e provavelmente não será a última. Portanto, ela sabe se moldar às adversidades que naturalmente criará à medida que for se desenvolvendo e também as que forem impostas à ela. E na lei do mais forte, mais uma vez o Cinema prova sua força conquistada em seus mais de 120 anos de história.