Vitória Gomez
Uma máxima da internet, a Regra 34 pressupõe que tudo existente na web tem sua versão pornográfica. Seja desenhos animados ou cenas cotidianas, qualquer elemento pode virar ponto de partida para o prazer. Em Regra 34, longa-metragem da carioca Júlia Murat presente no Festival do Rio e na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, as contradições entre a liberdade do prazer e a sua raíz na sociedade borram as linhas entre consentimento e abuso. Na obra, uma coprodução Brasil e França, a violência é o combustível que incendeia a vida de Simone, confrontada com os frágeis limites que impõe ao próprio corpo.
Como a sinopse entrega, ela, estudante de Direito e defensora pública, paga seus estudos com o lucro dos conteúdos como camgirl no site Chaturbate. De tabela na curiosidade de uma amiga, começa a se questionar sobre as práticas do BDSM: de início, o prazer a partir da violência e dos corpos amarrados, sujeitos a situações de submissão, soa estrutural demais, um mecanismo de degradação mascarado por tesão. Para Simone, mulher negra, orgulhosa em debater seus valores feministas e em se pronunciar em prol de pautas anti-racistas e de inclusão, reforçar um imaginário popular de subordinação e erotização é, a princípio, impensável. Até não ser mais.
Gradativamente, Simone dá vazão à curiosidade. Interpretada visceralmente por Sol Miranda, a protagonista quebra seus próprios conceitos prévios sobre o BDSM e, progressivamente, avança no que está disposta a experimentar. A prática sexual, porém, não se restringe às quatro paredes de seu quarto: porta afora, o cotidiano de Simone é o do abuso e da violação, que se chocam com a noção de escolha presentes ali. Se como defensora pública, focando sua atuação em casos de agressões contra a mulher, a personagem é testemunha de relatos de violências físicas e psicológicas diariamente, Regra 34 passa longe de alienar para a relação intrincada entre o prazer e a vida real.
A pornografia é tema perigoso e a glamurização é o risco a ser levado em conta, mas roteiro a oito mãos de Júlia Murat, Gabriela Capello, Rafael Lessa e Roberto Winter não assume um só lado do discurso – não o repele, tampouco se rende a um liberalismo irresponsável. Sem um posicionamento pronto, as contradições e hipocrisias de Simone, tão dividida entre um desejo instintivo e um posicionamento racional quanto qualquer pessoa não fictícia poderia estar, movem o argumento da obra. Ela, confrontada por sua amiga e amante Lucia (Lorena Comparato) – quem a provocou para o BDSM em primeiro lugar -, sobre o perigo das práticas e dinâmicas de relação que passava a assumir, dispara: “E se eu estiver reproduzindo o que a indústria sexual me ensinou, e daí? Sinto muito se meu tesão não é suficientemente político pra você.”
Na reta final dos 100 minutos de duração, a frase soa como apenas uma externalização do que o longa discutiu até ali. No contexto mais didático possível, Regra 34 se manifesta justamente em sala de aula: o que Simone reproduz no quarto se sobrepõe ao que debate junto aos colegas, estudantes de Direito, sobre a origem dos problemas sociais e das dinâmicas de dominação e poder, e ao que vê no dia a dia na defensoria pública. Discutir punitivismo, as brechas do sistema legal e os mecanismos de repressão estruturais do Legislativo em uma turma majoritariamente branca e masculina, quase desconectada do mundo real senão pelos lapsos de veracidade vindos de outros alunos – mulheres e pessoas negras -, parece raso demais para mensurar a profundidade do universo em que Simone se insere.
Entre dois mundos, os âmbitos pessoal e profissional da protagonista se revelam antagônicos. Se durante o dia ela discute e presencia a violência submetendo corpos femininos e, em sua maioria, pretos a situações de abuso, durante a noite se coloca em ocasiões similares por espontânea vontade. Aqui, Regra 34 também discute o BDSM: diferentemente da vida real, na doutrina da prática, o consentimento e o diálogo são chave. Nas relações entre Simone e Coiote (Lucas Andrade), seu companheiro de turma, amigo e amante com quem ela explora as dinâmicas sexuais, linhas são traçadas, mas, conforme ambos ultrapassam os próprios combinados, os limites são rapidamente deixados para trás. Afinal, qual é o limite se Simone é quem os impõe e logo os descarta?
A obra não acena a uma responsabilidade moral. Com as explícitas contradições de sua grandiosa protagonista, graças ao intenso trabalho de Miranda, Regra 34 pouco diz sobre o contexto de violência das mulheres – especialmente negras – no Brasil e menos ainda sobre o BDSM. Aqui, ambos subtextos parecem conduzir o foco a um quadro maior: a relação entre o prazer e a sua raíz estrutural. Se as relações de poder e submissão, de dominação e dominado, permeiam todas as esferas do país, aparecendo até em relacionamentos românticos e familiares, por que no sexo seria diferente? O filme não responde os questionamentos que suscita. Simone, que se aventurou a ponto de arriscar sua própria integridade física, vida e carreira, tampouco desvenda. Que cada um reflita por si.