Isabella Lima
“Austen nos dá a fantasia histórica e ainda fornece uma dura ridicularização daqueles que são muito esnobes em suas distinções de classe” é o que escreve Linda Troost e Sayre Greenfield no livro Jane Austen in Hollywood. Publicado entre os anos 1990 e 2000, as autoras acompanharam o auge das adaptações audiovisuais das obras literárias de Jane Austen. De fato, todos esses elementos, juntos da narrativa romântica, encantam os entusiastas da escritora inglesa e foram bem incorporados em Orgulho e Preconceito (2005), Emma (2020), ou até mesmo em As Patricinhas de Beverly Hills (1995), uma adaptação mais reconstruída e modernizada. Ao contrário desses títulos, Persuasão, a nova aposta da Netflix inspirada no livro homônimo de Jane Austen, não conseguiu proporcionar uma experiência capaz de estabelecer conexão com a tradição, nem com a reinvenção da direção inaugural de Carrie Cracknell, nome já conhecido no teatro britânico.
O casal Anne Elliot (Dakota Johnson) e Frederick Wentworth (Cosmo Jarvis) é o fio condutor da trama, cujo relacionamento foi bruscamente rompido no passado pela persuasão de Lady Russell (Nikki Amuka-Bird). Sendo uma amiga de grande estima de Anne, Lady Russell convence a protagonista a desistir do romance pela falta de títulos e status de Wentworth. Porém, após oito anos separados, Frederick retorna ao círculo social da família Elliot como capitão da Marinha Real Britânica, dispondo de fortuna e reconhecimento. A partir desse reencontro, observamos os ressentimentos de Anne e suas expectativas por uma segunda chance, agora que ele está em busca de uma esposa.
Entre os pontos que mais deixaram a desejar em Persuasion, nome original do longa, o esvaziamento da personagem, originalmente idealizada no livro, é o mais gritante. Anne Elliot é conhecida por ser uma das heroínas mais apaixonantes já escritas por Jane Austen. Seu temperamento tranquilo, resiliente, sábio e empático são características natas, que destoam muito do seu ambiente familiar egocentrista composto pelo pai, Sir Elliot (Richard E. Grant), e pelas irmãs, Elizabeth (Yolanda Kettle) e Mary (Mia McKenna-Bruce). Já no filme, a senhorita Anne é transformada em uma pessoa irônica, cômica, uma cópia não tão bem executada de Fleabag, que se mortifica durante oito anos por ter sido persuadida a abandonar o homem que amava. Em outras palavras, a jornada de aprendizado e evolução da personagem, um dos principais aspectos dos romances de costumes do século XIX, é deixada de lado em prol de trazer toques mais atuais para a obra.
Tanto a crítica especializada, quanto o público mais familiarizado com a escritora inglesa, fizeram comentários em relação à modernização exagerada da trama. Fica evidente que a estratégia utilizada pela Netflix foi apostar em fórmulas prontas de sucesso, assim como fez em Bridgerton, trazendo diálogos que não condizem com os costumes da época e a quebra da quarta parede. Além disso, Jane Austen é conhecida por não subestimar a inteligência do leitor e, de forma sútil, apresentar suas críticas sociais. No entanto, o filme vai na direção oposta quando incumbe a personagem principal de explicar os mínimos detalhes ao telespectador em diversos momentos, rompendo com qualquer carga emocional que a cena poderia carregar e tornando o roteiro, escrito por Ronald Bass e Alice Winslow, maçante em muitos momentos.
Outra questão pouco explorada, que dá sentido ao título da obra, é a crítica à estrutura social da Inglaterra no século XIX. A ironia sutil que a produção literária utiliza para criticar o contexto social garantiu seu lugar entre os clássicos da Literatura, portanto, adaptar a narrativa de Persuasão sem levar esse trabalho a sério é uma tarefa difícil. Para trazer alívio cômico, o filme ignora o pano de fundo histórico e deixa de se aprofundar nos motivos pelos quais a protagonista desistiu do noivado no passado. Motivos esses muito ligados ao papel aprisionador das mulheres da época, que tinham no casamento a única forma de ascensão social. No livro, Anne é persuadida ao entender que terminar com Wentworth era seu dever, uma precaução acerca das condições sociais e econômicas precárias do homem. Dessa forma, a personagem passa por um processo de racionalização dos seus sentimentos, ao contrário do que vemos no longa.
Apesar de todas as inconsistências, nem tudo foi perdido. É preciso reconhecer que pelo menos uma característica de Jane Austen foi aproveitada: a sátira pitoresca dos personagens. Um ponto forte da escritora inglesa é satirizar os costumes da época, apresentando uma ‘elegância ridícula’ daqueles que se esforçavam para manter o status social a qualquer custo. A família Elliot é o maior exemplo disso, pois, mesmo estando à beira da falência, Sir Elliot e Elizabeth não deixam de lado a vaidade e o egocentrismo. Esse aspecto é bem retratado no filme com diversos auto-retratos do patriarca espalhados pela casa e a presunção arrogante da irmã mais velha de Anne.
Vale ressaltar também a diversidade que a produção trouxe para o elenco e, claro, a maneira como retrata a natureza e o espaço físico da história em si. O bucolismo, já muito utilizado nas adaptações cinematográficas anteriores das obras de Jane Austen, se trata de um elemento chave para transportar o telespectador para o enredo, que, na maior parte do tempo, se passa na região interiorana da Inglaterra. Em Persuasão, somos apresentados a três cenários: o interior (Uppercross e Kellynch Hall), o litoral (Lyme) e a paisagem urbana (Bath). Nesse aspecto, o longa rendeu imagens agradáveis capazes de trazer a natureza como um personagem da narrativa.
Persuasão se apresenta como o ponto fora da curva entre as adaptações de Jane Austen. Repleto de anacronismos e modernizações, o longa não conversa com aquele que deveria ser seu principal elemento: o questionamento se o amor é verdadeiro a ponto de sobreviver às imposições sociais, ao tempo, à opinião da sociedade e, acima de tudo, se é capaz de perdoar. A construção apaixonante do casal não estabelece uma conexão genuína com o telespectador em relação a esses aspectos e, ao final, o sentimento de recompensa quando os personagens ficam juntos não é tão gratificante. Para aqueles que estão tendo o primeiro contato com a obra, o longa pode garantir certo divertimento, mas não é capaz de trazer uma experiência verdadeiramente digna de um romance de Jane Austen. Elementos como a sátira e a ridicularização estão presentes, de fato. Porém, a fantasia histórica mencionada por Linda Troost e Sayre Greenfield foi deixada de lado para ceder lugar a, praticamente, uma comédia romântica.