Laura Hirata-Vale
O toque pode ser áspero, macio, quente ou gelado. Pode ter uma sensação seca ou hidratada. O maior órgão do corpo humano é a pele e é por meio dela que é possível não só sentir a dor e a temperatura, mas também as conexões se formarem, os pelos eriçarem e os sentimentos se aflorarem. É na pele que escrevemos lembretes, tatuamos frases, desenhos e lembranças. Os muros e as paredes das cidades também passam por um processo parecido: por meio de escritos, desenhos e lambe-lambes, as superfícies das florestas de concreto se colorem, e são aquecidas e resfriadas com o passar do dia. No documentário Pele (2021) – dirigido por Marcos Pimentel, produzido pela Tempero Filmes e distribuído pela Embaúba Filmes – a relação entre o meio urbano, a arte e a manifestação de ideias é explorada de forma simples, musical, cotidiana e cheia de denúncias.
Presente no 27º Festival É Tudo Verdade – na Competição Brasileira de Longas e Médias-Metragens –, Pele só chegou às salas de cinema em 2023. Extremamente urbano, o filme mostra sem rodeios imagens das paredes e dos muros de Belo Horizonte, São Paulo e do Rio de Janeiro, e funciona como um retrato das cidades e metrópoles brasileiras. As construções, além de guardarem seu valor histórico por causa de sua arquitetura e engenharia, são responsáveis por manter a expressão humana viva. Por meio de seus desenhos, grafites e palavras de protesto, os prédios, casas e edificações contam o que aconteceu na história, e documentam – de forma criativa e cheia de força – o presente momento.
Repleto de imagens estáticas e planas, com poucos movimentos, o documentário de 75 minutos envolve o espectador, de uma forma que lembra uma exposição de arte em um museu. As gravações, quando adicionadas à trilha sonora – feita por Vitor Coroa, responsável pela mixagem de som de diversos episódios do podcast Rádio Escafandro – proporcionam uma imersão no mundo de linhas, cores e tons dos centros urbanos. Além disso, a mistura dos sons, cenas e músicas são fiéis à experiência de andar a pé ou de carro nas cidades – ouvimos música, vemos os registros nas paredes, mas nem sempre prestamos atenção neles. E é esse o propósito de Pele: mostrar os escritos e desenhos, e nos fazer cientes deles.
Eu sempre gostei de caminhar pelas cidades prestando atenção no que está presente nos muros, paredes e estruturas de concreto. – Marcos Pimentel
Sem depoimentos e composto somente dos barulhos e das imagens da cidade, o documentário assume uma forma única e singela de contar a história dos muros. Com ‘sons’ de arquivo – como gritos de manifestações, como “Fora Temer!”, “Ele não!”, “Lula Livre!” e muitos “Fora Bolsonaro!”– combinando com os seus respectivos protestos escritos, Pele faz um recorte da história recente do Brasil, principalmente ao mostrar o que ocorreu na política brasileira entre 2016 e 2019. Assistir esse panorama é ainda mais emocionante quando se pensa nas eleições de 2022, após as dores e medos que as de 2018 trouxeram para a Arte e para o Cinema.
Durante o documentário, conseguimos ver camadas de uma cidade. A tinta, as construções e o som são os personagens principais da obra, assim como seus momentos peculiares. Uma mulher fazendo ioga na calçada de uma avenida movimentada; um garoto sambando em frente aos grafites; um homem praticando parkour em meio ao concreto mostram como a urbanidade é formada de instantes, e como o conjunto de todos esses movimentos constituem as metrópoles.
As camadas de Pele também mostram – de forma muito explícita – como as paredes e muros pintados são o cenário de muita desigualdade social. Na frente das cores, há moradores de rua, pobreza e destruição; e, em um contraponto, existem muitos ensaios fotográficos e selfies. Porém, ao mesmo tempo, os edifícios também possuem palavras de denúncia, além de pinturas e desenhos fotografados como belos feitos. “Chega de higienização social”, “polícia assassina” e “VENDE-SE CARNE NEGRA TEL: 190” são algumas das frases que chocam e impactam, por mostrarem a violência nas ruas brasileiras.
Em meio a todas as denúncias e protestos, há também a manifestação do amor e da paixão. Como um paralelo às cantigas de amor do Trovadorismo e a todos os sentimentos do Romantismo, é possível perceber como o romance ainda persiste nas paredes e nos muros. Indo de frases emotivas como “essa eu fiz pra ela!!” e “procura-se aluguel em um coração vazio” até frases cheias de luxúria e erotismo, como “é preciso (m)amar” e “faça amor hoje”, vemos como o amor existe e resiste, mesmo em centros urbanos tão rápidos e corridos.
Durante o documentário, chegamos à camada da hipoderme, a mais profunda do maior órgão do corpo. Nossa casca defensora, que nos protege de possíveis infecções, dores e doenças, também é a responsável por identificar toques, sentimentos e sensações. Percebemos como os centros urbanos são a casa da arte, da manifestação e do protesto, e como eles são importantes para a vida. Vemos como as cidades refletem o que vivenciamos – por meio dos desenhos, escritos e lambe-lambes nos muros e paredes, é possível perceber tudo o que sentimos na Pele.