Vitória Gomez
Em Fevereiro de 1995, a estrela da série Baywatch, Pamela Anderson, e o baterista fundador da banda Mötley Crüe, Tommy Lee, se casam após 4 dias juntos. A dupla se conheceu na virada do ano de 1994 e, nem dois meses depois, o músico perseguiu a atriz até Cancún, onde passaram os dois pares de dias que terminariam com seu noivado e casamento. Luxuosos, imprudentes e apaixonados, o relacionamento ganhou os holofotes e paparazzis da Hollywood da época. Também, revirou a vida de ambos: o que começou intensamente, evoluiu para uma das histórias mais indignantes do mundo dos famosos, que, mesmo desbotada na troca de gerações, ecoa na indústria cultural até hoje.
O ponto inicial da muvuca foi o vazamento da sex tape do casal. Daí para frente, o relacionamento se tornou ainda mais turbulento, e os desdobramentos e o processo judicial que seguiram o acontecido escancararam ainda mais o sexismo da época. É o que a minissérie Pam & Tommy recria. A produção do Hulu encena o encontro inicial e a vida a dois de Lee (Sebastian Stan) e Anderson (Lily James), assim como a descoberta da fita vazada. A produção também inclui o ponto de vista de Rand Gauthier (Seth Rogen), o eletricista faz-tudo que trabalhava na mansão do casal, e, por vingança, foi o responsável por roubar e distribuir o registro íntimo dos artistas.
A série foi encomendada no final de 2020 e os burburinhos ao seu redor começaram ainda em 2021, com a divulgação das primeiras imagens dos atores nos personagens. Caracterizados, Sebastian Stan, na pele do rockeiro, e Lily James, como a atriz e modelo, se assemelhavam até fisicamente com as pessoas reais que encarnavam. James teve de se submeter a uma rotina de maquiagem de quatro horas de duração diariamente e, ainda mais que Stan, lembrava Pamela Anderson até nos traços de seu rosto – a produção não poupou esforços para recriar as figuras em que se inspirou. Quando os episódios começaram a ser lançados semanalmente na plataforma do Hulu, os intérpretes provaram que a caracterização com as maquiagens, figurinos e tatuagens, porém, foi superficial. Eles iriam além.
Ambos mergulharam na história de Pam & Tommy e adotaram os maneirismos, trejeitos e linguagem corporal dos artistas. O ator romeno-americano dá vida a um personagem complexo e multifacetado como é o Tommy Lee da minissérie, e, com uma filmografia recente indo do aterrorizante Fresh ao policialesco Falcão e o Soldado Invernal, prova ser um dos atores mais versáteis de sua geração. Já a britânica, com uma extensa e diversificada carreira na TV e no Cinema, tomou as dores de Pam, mas não foi sortuda o suficiente para ganhar um roteiro aprofundado com o qual trabalhar. Isso porque a preocupação dos produtores em respeitar a imagem de Anderson foi tanta que eles não ousaram retratá-la como algo além de um ser angelical. Ainda assim, não ter a autorização da figura real envolvida na história – pior, tendo o seu repúdio à série – não foi o suficiente para impedi-los.
Como Lee e Anderson, Stan e James foram nomeados como Melhor Ator e Atriz em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme na 74ª edição do Primetime Emmy Awards. As indicações são as primeiras da carreira de ambos no Oscar da TV, que terá seu evento principal na noite de 12 de setembro. Seth Rogen, intérprete do eletricista que vazou a sex tape, foi lembrado como Melhor Ator Coadjuvante em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme. Entre outros nomes creditados, o comediante também participou de Pam & Tommy como produtor executivo.
No elenco da série, fruto do trabalho de Mary Vernieu e Lindsay Graham Ahanonu, e reconhecido na categoria Melhor Direção de Elenco em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme, Rogen fica com a responsabilidade de retratar a pessoa que supostamente começou todo o escândalo em primeiro lugar. Como mostra a produção logo em seu episódio piloto, Rand está trabalhando em uma reforma na casa do baterista e da atriz quando é demitido, junto de sua equipe, sem pagamento. Ele volta para recuperar suas ferramentas e é recebido por Lee com uma arma apontada para sua cara. Quando decide colocar em prática um plano de vingança e assaltar o cofre do casal, o eletricista encontra, sem pretensão, a fita que mudou seus planos.
Pam & Tommy foi inspirada no artigo Pam and Tommy: The Untold Story of the World’s Most Infamous Sex Tape, da jornalista Amanda Chicago Lewis para a revista Rolling Stone. Na matéria, de 2014, a repórter detalha como aconteceu o antes, durante e depois do roubo e do vazamento da sex tape, incluindo como Rand Gauthier invadiu a mansão do casal, os processos judiciais e depoimentos de pessoas envolvidas no caso durante os anos. Os showrunners e roteiristas da minissérie, Robert Siegel e DV DeVicentis, revelaram que a produção se baseou nos acontecimentos destrinchados na reportagem, e, segundo eles, as partes ficcionalizadas foram somente os diálogos e algumas interações entre os personagens. A produção também se aproveitou dos depoimentos de Tommy Lee, presentes em sua autobiografia Tommyland, de 2005.
Como conta Siegel, ao ler o artigo, ele se surpreendeu que o acontecimento ainda não tivesse se tornado um filme ou uma minissérie. A história de Pamela Anderson e Lee, astros desde os anos 1980, se tornou ainda mais tumultuada e glamurosa com a união dos dois, na década seguinte – uma narrativa aparentemente ideal para ser recontada nas telas. Além do apelo dos anos 90, o recorte temporal dos acontecimentos também coincidiu com a popularização da internet. A ascensão da world wide web e os paparazzis que constantemente assediavam o casal já abriam alas para o que viria em Hollywood nos próximos anos.
Tommy Lee, baterista da Mötley Crüe, já tinha seis álbuns de estúdio lançados com o grupo de metal e mais de 100 milhões de cópias vendidas mundialmente quando conheceu Pamela Anderson. O músico também já havia se casado outras duas vezes e se envolvido em polêmicas – os extremos da vida de Lee iam além das performances musicais. No topo das paradas, a banda viveu seu auge nos anos 80 e, durante a década, gravou, lançou e saiu em turnê com quatro discos. Ao mesmo tempo que aproveitava o sucesso, o quarteto ganhou fama de barra pesada, destruindo hotéis e bares em que passava, se envolvendo em brigas e episódios de violência, acidentes e abusando de álcool e substâncias químicas, ao ponto de um dos membros da banda ser declarado morto por overdose a caminho do hospital.
Já Pamela Anderson começou como garota propaganda para uma marca de cerveja canadense, até ser convidada para posar nua na revista Playboy. O trabalho como modelo alavancou sua fama e a levou à atuação: entre 1992 e 1998, foi a estrela do seriado Baywatch (S.O.S. Malibu, no Brasil), entre outros papéis na TV e no Cinema desde então. Já marcada como sex symbol desde o começo da carreira, Anderson fazia o caminho oposto do marido. Ao invés de se beneficiar da imagem de rebelde e revoltado com a qual Lee conseguia se safar, a atriz tinha que se comportar com polidez e inocência para crescer em uma indústria do entretenimento machista, que ganhava audiência ao sexualizar mulheres.
Longe de ser as mil maravilhas de um casal apenas intensamente apaixonado, Pam & Tommy mostra os conflitos na vida a dois dos artistas. Apesar dos limites entre real e ficção se mesclarem na trama da série, depois do vazamento da fita íntima ficou escancarado o caráter abusivo do relacionamento. A atriz pediu divórcio do baterista assim que Tommy deixou a cadeia por violência doméstica, tendo agredido a esposa enquanto, grávida do segundo filho dos dois, ela segurava o primogênito. Em uma produção de 2022, já não cabe romantizar um relacionamento abusivo em nome da “maior história de amor já vendida”.
Além da vida dos próprios Tommy Lee e Pamela Anderson gritar “invasão de privacidade”, é justamente na minissérie do Hulu que mora o problema. Como Pam & Tommy mostra ao longo de seus 8 episódios, dirigidos por Craig Gillespie, Lake Bell, Gwyneth Horder-Payton e Hannah Fidell, o terror com o roubo da sex tape foi só o começo. O casal só descobriu os itens furtados dois meses depois, tempo o suficiente para que Gauthier já tivesse vendido os objetos de valor e rodado Hollywood em busca de meios de comercializar a fita. Foi nesse processo que a internet entrou no jogo. Ao lado de Milton Ingley (na série, interpretado por Nick Offerman), um produtor de filmes pornográficos, os dois bateram de porta em porta nos estúdios adultos em Los Angeles, mas receberam a mesma resposta: sem a autorização dos envolvidos na gravação, o material não poderia ser distribuído.
Recorrendo à máfia, Gauthier e Ingley pegaram dinheiro emprestado, o suficiente para criarem um website e arcarem com os custos de vender a fita por lá, de maneira independente. Em pouco tempo, o filme caseiro se espalhou e cópias ilegais estavam sendo feitas, vendidas a torto e a direito. Apesar de Pamela Anderson e Tommy Lee terem contratado investigadores particulares e descoberto o culpado pelo roubo, a gravação já tinha se espalhado e, quanto mais eles tentavam pará-la, mais conhecida se tornava. Um ano depois do assalto à mansão do casal em Malibu e da sex tape estar disponível para ser comprada por qualquer um, os boatos de que uma famosa revista pornográfica da época tinha conseguido fotos polaroid do casal fez com que eles abrissem um processo, antes mesmo da liberação do material. O tiro saiu pela culatra e a situação continuou escalando.
Tommy Lee e Pamela Anderson, indiscutivelmente o casal mais falado de Hollywood na época, se viram envolvidos em julgamentos e processos judiciais. Primeiro, a ação contra a revista Penthouse ganhou um dos veredictos mais cruéis e machistas da indústria do entretenimento: com um julgamento que expôs e ridicularizou a atriz, o júri decidiu que a comercialização das fotos não era crime, já que a modelo havia posado nua mais de uma vez para a revista Playboy. Nesse ponto, a série recria o doloroso processo e discute consentimento. Mais uma vez, porém, não segue seu próprio ensinamento.
Depois de perder a ação, o casal foi novamente abordado por conta da fita, agora com uma proposta. Naquele momento, ambos já estavam esgotados, sem energia para conter um registro íntimo que já havia se espalhado mundialmente e lucrado 77 milhões de dólares, como conta o artigo da Rolling Stone. Pam & Tommy também mostra o que facilmente deduzimos da vida real: a carreira de Pamela foi criticamente mais afetada do que a de Tommy. Os dois foram expostos contra suas vontades, mas, enquanto ela perdia credibilidade na sua escalada como atriz, ele era parabenizado. Foi quando o produtor Seth Warshavsky, dono de um site pornográfico, propôs ao casal que vendessem a sex tape. O dono da página pornô já havia transmitido o vídeo e sido processado por isso, mas o número de visualizações e a notícia do processo que Lee e Anderson abriram contra ele só movimentaram ainda mais o seu negócio. Assim, ele decidiu que compraria a fita.
Para Pam e Tommy, que, legalmente, tinham perdido seus direitos de lutarem pelas suas imagens, a venda do material para alguém que não fosse eles significaria que o novo dono poderia, então, processar e impedir outras pessoas de comercializarem sem autorização. Na série, o embate moral da decisão foi rapidamente sanado e o casal, ao invés de negociar a fita, a cedeu ao produtor. Na vida real, de uma forma ou de outra, a gravação terminou nas mãos de Warshavsky. Agora com dono e com o selo do site pornográfico para o qual foi vendido, a gravação passava a ser liberada somente para aqueles que a compravam ou tinham a assinatura do canal, e as cópias ilegais poderiam ser derrubadas.
Hoje, o roubo e vazamento de fotos íntimas de famosos é levado mais a sério do que foi nos anos 90. Quando a fita de Pamela Anderson e Tommy Lee foi publicada, a internet engatinhava e a aplicação de leis a ela ainda não havia sido regulamentada. Passado nem uma década, outras personalidades hollywoodianas passaram pela mesma situação: em 2004, uma sex tape da atriz e socialite Paris Hilton e seu então namorado Rick Salomon foi lançada nas redes. Anos depois, a assistente de Hilton, Kim Kardashian, foi a vítima da vez, mas a mãe da então subcelebridade reverteu o vazamento em sucesso para a filha. Não só a gravação de Lee e Anderson foi a primeira de muitas que viriam à tona nos próximos anos: o casal também afetou a forma com que a indústria do entretenimento consumia seu conteúdo.
É claro, os dois ascenderem à fama por seu talento, seus álbuns de sucesso e seus papéis de destaque na TV, mas seguiram na mira dos holofotes pelo estilo de vida que levavam. Os paparazzis seguiam a dupla não só por seus dotes nas suas respectivas áreas de atuação, mas justamente para conseguir fofocas acerca da fita, e os dois foram um dos precursores da fama pela personalidade, simplesmente pelo ato de ser uma celebridade. Pam & Tommy, inclusive, destaca que Lee estava decaindo em popularidade antes de se casar com Anderson e mal era reconhecido em Hollywood, até voltar a ser um dos rockeiros mais famosos após a distribuição da gravação.
Porém, apesar da minissérie se preocupar tanto em contar o lado da história de Pamela – e até de Rand Gauthier – e frisar que, diferentemente dos trabalhos da modelo para a Playboy, a distribuição da fita não foi consentida, a produção ignora sua mensagem principal. Nem Tommy Lee e nem Pamela Anderson estiveram envolvidos de qualquer forma na série. O músico chegou a declarar não se importar e desejou boa sorte a Sebastian Stan, mas a atriz repudiou ver sua história recontada e seu trauma revivido. Sem a autorização de sua figura principal, a qual a minissérie clama por vingar, Pam & Tommy representa mais uma das violações decorrentes da sex tape pela qual a artista teve que passar.
Os tapinhas que Pam & Tommy dá em suas próprias costas não funcionam e o feminismo que a série afirma pregar se revela uma causa vazia. Não que a história de Pamela Anderson não seja emblemática: desde o vazamento da fita, passando pela decisão judicial que a negou seus direitos à imagem e privacidade, e indo até sua reputação e carreira consideravelmente afetadas, o que a atriz passou representa claramente o machismo e o sexismo de Hollywood. Agora, mesmo quase duas décadas depois dos acontecimentos, se a atriz continua não querendo reviver seus traumas em prol do entretenimento ou da Arte da TV, o que isso faz da produção?
No Emmy 2022, o nome de Pamela Anderson, que não queria ser novamente associada à sex tape, será anunciado ao menos dez vezes entre os indicados. Só na noite principal, com o evento transmitido pela emissora norte-americana NBC, serão quatro menções: além das três nomeações para o elenco principal, a série da Hulu também foi indicada como Melhor Série Limitada ou Antologia, um dos prêmios principais. Não só a atriz e modelo terá de presenciar sua imagem sendo atrelada a um evento que ela gostaria de apagar – ou melhor, que nem tivesse acontecido -, mas, agora, o evento em questão será associado ao nome da maior premiação da TV dos Estados Unidos. Pam & Tommy clama por fazer jus a Anderson. Se verdadeiramente a respeitassem, a série, por mais bem executada que possa ser, não existiria em primeiro lugar. Agora cabe à Academia Internacional de Artes e Ciências Televisivas decidir: quantos prêmios vale mais uma violação?