Vitor Evangelista
Bandidos não têm senso de moralidade. Ou, pelo menos, era assim que a banda tocava vinte anos atrás. A TV sempre pintou seus antagonistas como figuras cinzentas e sem remorsos. Tudo mudou quando Tony Soprano procurou terapia em 1999, na estreia de Família Soprano. Depois do mafioso desatar a discutir sentimentos e motivações, outras célebres figuras ‘malvadas’, como Walter White e Ragnar Lothbrok, se tornaram o centro psicológico de grandiosas produções. Em Ozark (2017), a história não é diferente.
Marty Byrde lava dinheiro para um cartel mexicano há uma década, quando descobre que seu sócio da firma o traía e roubava uma parte da grana. Ameaçado pelos chefões do tráfico, Byrde se muda com a família para a região dos lagos Ozark, no Missouri, para lavar uma quantia exorbitante num período curtíssimo. Marty é um desses ‘vilões’ com hora marcada na terapia, senão a literal, aquela com o público. Na terceira temporada desse estrondo silencioso, a Netflix reafirma uma máxima no drama televisivo dos últimos anos: não existe moralidade quando falamos sobre poder.
Sepultada em 2018 (mas assassinada muito antes disso), House of Cards já escancarou o escrutínio do homem, se rastejando por gotas de influência e domínio. No drama político, Claire e Frank Underwood eram o terror, eles matavam quantos leões fosse preciso para continuar na Casa Branca, ultrapassando qualquer limite moral. Essa ânsia e instinto vinha fácil para o casal presidencial que foi criado com sangue frio, como as seis temporadas do seriado mostraram. Em Ozark, o oposto acontece.
Marty Byrde (Jason Bateman) é a calmaria em pessoa. Sempre falando num tom de voz baixo e controlado, o consultor financeiro procura a saída mais segura para as emboscadas que se mete. Esse autocontrole é um prato cheio para Jason Bateman brincar com nuances. Conhecido pela comicidade de Arrested Development, o ator faz de Ozark sua vitrine de talentos: além de protagonizar o show, ele também dirige alguns episódios por temporada e assina como produtor executivo. A empreitada atrás das câmeras rendeu um Emmy de Direção em 2019, por Reparations, da 2ª temporada.
Criada por Bill Dubuque, Ozark parece ter sido concebida para focar em Marty e usar sua família apenas como um leque de coadjuvantes. Entretanto, o papel de Wendy, a esposa-aparentemente-passiva, extrapolou essas noções iniciais. E o marketing do seriado ajudou a construir essa aura de dualidade dos co-protagonistas Bateman e Laura Linney. O pôster do ano três, usado para a divulgação no Emmy, estampa o rosto do casal, e a grande chamada ‘they are all in’ (eles estão dentro), em referência aos esquemas de lavagem de dinheiro e os zilhares de outros crimes que aparecem ao longos dos 30 episódios.
A chave para essa retumbante e chamativa performance de Laura Linney como Wendy é o remorso. Mas um remorso diferente daquele sentido pelos mafiosos de Família Soprano. Wendy se frustra diariamente por não ter tido escolha, por Marty tê-la colocado nessa sinuca de bico. Ozark usa seu primeiro ano como arco inicial dos personagens, cortando fora sentimentos clichês desse subgênero máfia, cartel e crimes de colarinho branco. A temporada 1 dá descarga nessa culpa cristã e nas negações. A família Byrde, a certo ponto, abraça sua nova condição e tira proveito dela. E por isso Ozark funciona tão bem.
Se os traficantes de Breaking Bad prendiam o fôlego à qualquer menção da polícia ou do FBI, os protagonistas de Ozark colocam a Lei no bolso. A rede de proteção que a máfia de Kansas City e o Cartel de Navarro estende sobre Marty é um alívio e, para quem assiste, o terror é outro. O seriado alimenta a atmosfera de ‘prisão invisível’ quanto à situação da lavagem de dinheiro e as dívidas com cobradores perigosos, e a decisão da família protagonista em aceitar esse papel de fora da lei engrena a narrativa de Ozark num espiral de loucura, caos e medo. Tudo pode acontecer. Ainda na comparação com a trama de Walter White, a série da Netflix não se acanha na hora de matar personagens importantes.
Mantendo o holofote na família Byrde e na astuciosa Ruth Langmore (Julia Garner), todos que orbitam esse centro estão em perigo. Com o avançar dos anos, o seriado ultrapassa ‘fases’, quase como num videogame de ação e missões. No início, o FBI era um infortúnio, e no ano dois o problema era com os caipiras Snell, dessa forma o roteiro busca caminhos alternativos para, numa mesma medida, anestesiar essas barreiras antagônicas, mas nunca desligando-as em definitivo da mitologia do show. Tanto os agentes federais quanto a diabólica Darlene Snell (Lisa Emery) ainda cheiram a carniça à distância, mas a terceira temporada mira em Omar Navarro, o misterioso chefe do Cartel, vivido pelo ganancioso e explosivo Felix Solis.
Wartime, primeiro episódio do ano 3, abre numa cena de emboscada no México para anunciar a guerra que promete tomar conta do futuro de Ozark. Essa sequência em território latino é colorida e viva, na contramão do azul vomitado na ambientação dos Lagos onde vivem os protagonistas. A decisão estética de mergulhar a série no azul-anil é um baque forte no primeiro contato, mas a morbidez da trama justifica e apazígua a escolha ao passar dos episódios. Essas predileções características do show resultam num olhar atento das premiações para a série.
A incisiva direção de Ozark foi reconhecida no Emmy 2020, com indicações para Alik Sakharov, por Fire Pink, e Ben Semanoff, por Su Casa Es Mi Casa. A Academia de Televisão parece ter caído nas graças de Ozark. Jason Bateman foi indicado em Melhor Ator pelos 3 anos, e em 2020 concorre pelo episódio 6, Su Casa Es Mi Casa. Sua co-protagonista Laura Linney chega como a favorita ao prêmio de Atriz deste ano, indicada pelo nono capítulo, Fire Pink. Julia Garner, atual campeã de Atriz Coadjuvante em Drama, dessa vez submeteu In Case of Emergency para a consideração dos votantes. Ozark ainda concorre em Melhor Drama, batendo de frente com a favorita Succession, da HBO.
Somando 18 indicações no Emmy 2020, ainda foram reconhecidas três nomeações para Roteiro em Drama. É importante ressaltar os métodos de avaliação do Emmy. Existe uma janela de exibição, de 1 de Junho de 2019 até 31 de Maio de 2020 e, por essa razão, temporadas ‘velhas’ como as de Stranger Things e The Handmaid’s Tale só foram indicadas agora, inelegíveis na última cerimônia. Se tratando da categoria de Melhor Série de Drama, são submetidos 6 episódios para os votantes julgarem. Em atuação, seja principal ou coadjuvante, os atores escolhem apenas 1 capítulo para representá-los. Ozark focou em episódios da metade final do ano 3 nas submissões, elevando o status de slowburn que a série carrega desde seu início.
O termo slowburn, normalmente atribuído à romances, diz respeito a velocidade em que os acontecimentos se dão na trama. O foco é num desenvolvimento mais lento ao passo que a história progride e a tensão aumenta. Sinônimo dos roteiros carregados de Ozark, uma série que passa boa parte de suas dez horas anuais construindo o fôlego até o pau começar a comer. A terceira temporada já é engatilhada com o pavio quase todo queimado, prestes a explodir a dinamite. Helen Pierce, a advogada do Cartel, é a figura humana que representa o cerco se fechando para a família Byrde. A performance de Janet McTeer modula a impaciência que sua personagem bafora cena após cena, além de que sua intromissão no núcleo principal rende muita catástrofe por trás das cortinas.
O ritmo de Ozark atua numa subida invejável para outros dramas contemporâneos da TV quando decide matar personagens para findar tramas e adicionar novas caras na mesma tiragem. O texto e a direção são ágeis com os acontecimentos e, no fim de cada hora, parecemos estar diante de uma nova série. Problemas surgem e são solucionados na lata, mas nunca cavando caminhos fáceis ou duvidosos. Quando um importuno é ultrapassado, existem consequências que martelam as preocupações de Marty e Ruth.
Ruth Langmore continua sendo o deleite da produção. A riqueza e o afinco de Julia Garner em marcar a comparsa durona de Marty como alguém frágil e vulnerável demonstram uma gama de talento exorbitante. Essas cenas recheadas de vulnerabilidade acontecem em doses homeopáticas ao longo de Ozark, mas quando entregues atestam Garner como uma das promessas dessa nova geração de Hollywood. Não só da jovem, mas a construção de todas as mulheres do seriado é integral, são elas que comandam o passo e ritmo das temporadas. Não existem mocinhas no Missouri, aqui lidamos com monstros. Até mesmo a caracterização e figurino das atrizes é carimbo dessa ‘maldição’ da região, e todas serem loiras não é um acaso do destino.
A tarefa de preencher dez horas por ano não é fácil, mas Ozark encontra bons subterfúgios. A carta na manga de uma série assim é seu elenco coadjuvante. Ruth é paralela ao início da temporada, mas suas ações são de suma importância para que Marty consiga se safar dos agentes do FBI. O mesmo vale para o erotismo da trama de Darlene e Wyatt (Charlie Tahan). A pequena histeria cômica que permeia essa parte da série aliás é digna de comentário: se a situação do namoro mulher idosa e homem jovem fosse oposta, o tipo de piadas e olhares desgostosos não seria o mesmo. É claro que Ozark usa essas figuras politicamente corretas (Marty e Wendy) em contraposição aos caipiras de direita (os Snell), mas mesmo assim, a ironia do senso comum soa muito mais um exercício a favor do machismo, do que em detrimento da crítica desse pensamento.
Os filhos do casal principal são outro dos diferenciais que colocam Ozark no mapa de qualidade da TV. Sem birra ou atitudes estúpidas, tanto Charlotte (Sofia Hublitz) quanto Jonah (Skylar Gaertner) são partes pensantes e essenciais para a lavagem de dinheiro no cassino. E, na falta de filhos burros, a série então adiciona na mistura um irmão instável: entra em cena Ben Davis (Tom Pelphrey). De longe a melhor mudança da terceira temporada, o irmão mais novo de Wendy é o Bicho-Papão de Ozark. Mesmo que o tratamento do roteiro para sua bipolaridade não seja tão afiado como deveria, o personagem começa numa leva cômica até ultrapassar a linha para o psicótico. Suas cenas são o pico do novo ano, e sua ausência na categoria de Melhor Ator Coadjuvante em Drama é o maior roubo de 2020. Tão criminoso quanto deixarem de fora do Emmy o Padre Gato de Fleabag, ano passado.
Mesmo que a Netflix nunca tenha levado pra casa o troféu de Melhor Drama no Emmy, Ozark é um bom candidato para quebrar a maldição. Renovada para uma última temporada dividida em duas partes, o ano que vem pode enfim coroar a criação de Bill Dubuque, que dá a Jason Bateman os meios para pintar e bordar em cena. A finalização planejada de Ozark é a melhor notícia que a produção poderia receber, já que a terceira temporada acaba num ponto extremamente derradeiro. A tão esperada guerra parece finalmente tocar a campainha.
Podendo ser definido como um novela de alta tensão, o seriado encontra na fuga dos clichês seu caminho mais louvável. As viradas na mesa e cartadas inesperadas são dois pontos que fazem de Ozark um estrondo no escuro da Netflix, muito mais interessada em divulgar produções menos interessantes. Se a TV nos fez acreditar que bandidos não possuem finais felizes ou redenção, o futuro de Ozark simboliza um leve oposto, só nos resta esperar. Pois, assim como eles, nós já estamos totalmente dentro.