Na tentativa de atrair uma audiência maior, a cerimônia prefere abdicar da celebração do Cinema
Vitor Evangelista
“Um filme é feito três vezes: primeiro nas páginas, depois, nas gravações, e finalmente na montagem”, disse o cineasta francês Robert Bresson. O porquê da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas decidir por televisionar ao vivo as disputas de Roteiro e Direção, mas não a de Montagem, forma uma completa nuvem de dúvida na cabeça de quem anseia pela cerimônia de 2022. Após o controverso anúncio de que oito das vinte e três categorias seriam recortadas e remanejadas dentro da premiação, os chefões do Oscar não parecem arredar o pé. E, se nem eles, os que respiram e transpiram Cinema, dão a mínima para a coisa, qual é a mensagem que fica?
De cara, ela não é nada positiva. A ânsia de atrair uma audiência maior para um evento que não chama tanta atenção quanto antes é furada na concepção. Diferente dos números dos anos 90 e 2000, o Oscar mudou. O público mudou seus gostos, a TV a cabo entrou em uma subida, o streaming nasceu e estraçalhou qualquer aspecto do modo antigo de consumir cultura. Os cinemas fecharam na pandemia, mas muito antes disso a Marvel já regurgitava seus lançamentos e dominava as listas de bilheteria no fim do ano.
Quem vibrou no passado com os “populares” Forrest Gump, Um Sonho de Liberdade e O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei, envelheceu e não consome Cinema como o fazia há quase trinta anos. O argumento de que o Oscar e a Academia não abraçam ou indicam filmes “do povo” cai por terra quando analisamos títulos que vão de A Origem, Toy Story 3, Histórias Cruzadas, As Aventuras de Pi, Gravidade, Mad Max: Estrada da Fúria, Corra!, Pantera Negra e Parasita, só olhando para as listas de Melhor Filme.
Se uma parcela do público aguarda a aparição de Vingadores: Ultimato ou Homem-Aranha: Sem Volta para Casa na categoria principal, apenas para cumprirem a cota de “filmes populares” e que engajarão a galera a ligarem a TV e assistirem mais de 3 horas de premiação, então essa parcela se frustrará. E adivinha: mesmo se o capítulo final da aventura do Teioso disputasse o careca com Belfast e CODA em 2022, os índices não bateriam no teto de uma hora para a outra.
Chegou a hora de admitir que o público do Oscar é restrito, assim como quem acompanha cerimônias da FIFA, da Champions League ou mesmo do Campeonato Brasileiro. Não é esperado que todo fã de esporte, por menos aficionado que seja, sintonize na disputa do Melhor Jogador do Mundo, logo por que esperamos que todo fulano que compra ingresso e se diverte às custas de um blockbuster qualquer se ligue na disputa de Melhor Som ou Melhor Design de Produção?
A Academia erra feio ao presumir que a saída mais correta e lucrativa é a de capar a cerimônia e destruir a credibilidade “diminuindo” as categorias técnicas e as de Curtas-Metragens, a fim de agradar essa audiência fantasma que, no máximo, checa os vencedores na segunda de manhã, enquanto navega pelas redes sociais. Os executivos da rede ABC, responsável pela transmissão, só enxergam cifrões e gráficos em declínio, sem notar que, como um todo, a tendência é exatamente essa.
O Emmy e o Grammy colecionam recordes negativos de participação da audiência, visto que os meios mudaram e o público não assiste Televisão da mesma maneira. Ora, a mera ideia de transmitir por mais de três horas uma porção de discursos e agradecimentos parece distópica no mundo em que uma rede social de vídeos curtos dita a tendência da Cultura lucrativa. Não há maneira de se curvar ao sistema sem assolar aqueles que o sustentaram por tanto tempo. Exibir os prêmios de Montagem, Trilha Sonora Original e Curtas-Metragens à parte dos de Direção, Roteiro Original e Atriz Coadjuvante nivela alguns profissionais por cima e outros lá para baixo.
Na última semana, diversos comunicados foram emitidos, desde sindicatos dos trabalhadores das categorias “cortadas” até o diretor Guillermo del Toro, que tomou o palco da premiação da Hollywood Critics Association para bradar o movimento que vem tomando conta do Twitter: #PresentAll23, traduzido como “Apresentem Todas as 23”, clamando que a Academia não prossiga com o absurdo de picotar a maior celebração do Cinema.
Um filme não existe sem os departamentos de Cabelo e Maquiagem, sem a equipe de Efeitos Visuais, ou mesmo sem quem edite e mixe o Som, quem monte o material filmado. Um filme não existe sem roteiro, sem direção ou sem produção. Um filme só é um filme pois é formado por todos esses componentes, por todas as engrenagens que, em harmonia, devem e merecem ser aplaudidas ao vivo.
Cineastas realizadores de curtas, comumente escanteados pela mídia, vão perder a chance de agradecer àqueles que acreditaram e financiaram seus projetos. Profissionais que atuam longe dos holofotes serão proibidos de aproveitar o decisivo e único momento quando ouvem seus nomes chamados para receber uma estatueta de ouro que mudará suas vidas. Sem contar que muitos momentos emocionantes e importantes da história vêm das palavras desses artistas técnicos.
Não há maneira de esquecer John Legend e Common no palco após vencerem Canção Original, por Selma, e fazerem um paralelo entre a marcha por igualdade do filme e da música, relacionando-os com as pessoas que continuam lutando por seus direitos até os dias de hoje. Ou de Michael Moore, diretor do documentário Tiros em Columbine, que não hesitou em criticar a conduta do então presidente George Bush e a guerra no Iraque. Ou ainda o momento em que Bill Launch agradeceu ao prêmio musical por A Bela e a Fera e dedicou a conquista a seu parceiro Howard Ashman, que morreu vítima da epidemia de AIDS.
E esses são apenas exemplos frescos que vem à memória. No baú da Academia, existem milhares de momentos tão ou mais emocionantes que os citados e que, na mudança de 2022, viverão em uma ilha de edição, por ironia, uma das categorias fora da cerimônia ao vivo. O plano atual, passível de mudanças a qualquer momento, é receber os indicados às 8 disputas uma hora antes do início da cerimônia, entregar as estatuetas, anunciar o acontecimento através do Twitter e, mais tarde, incorporar os vídeos ao evento principal.
Cortando os respiros, a surpresa, a caminhada até o microfone. Cortando as ordinariedades que criam os momentos de emoção e vulnerabilidade de quem acabou de ter sua carreira mudada para sempre. Se a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas não se importa com o Oscar, por que deveríamos nós? A resposta é simples: quando as estratégias falharem, os gráficos apontarem quedas e os executivos forem demitidos, restaremos nós, aqueles entusiasmados com os filmes, com a magia da Sétima Arte e com todas as pequenas engrenagens do Cinema.