Guilherme Machado Leal
A metalinguagem é uma das formas de se contar histórias no audiovisual. A partir dela, discussões sobre a arte dentro da arte são inúmeras e não possuem uma maneira específica de abordagem. Por exemplo, em Pânico 3, os personagens gravam um filme slasher enquanto vivenciam o subgênero em suas vidas pessoais. As narrativas autorreferenciais são importantes porque tiram o foco do exterior e priorizam o processo de criação em detrimento à finalidade dele. É nesse lugar que O Vazio de Domingo à Tarde, dirigido por Gustavo Galvão, se encontra.
O longa, que estreou na seção Mostra Brasil da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, acompanha a história de Mônica (Gisele Frade), uma atriz conturbada com a sua carreira e vida pessoal, que se entrelaçam e a tornam uma só. Tendo como ponto de partida a sua relação com o trabalho, a personagem trava uma batalha interna entre o seu eu pessoal e o lugar de prestígio que ocupa no imaginário daqueles que a admiram. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que a protagonista passa por essa jornada, Kelly (Ana Eliza Chaves), uma adolescente que almeja o estrelato, possui a artista como inspiração e fará de tudo para entrar no mundo da atuação.
Ao concentrar o foco narrativo em duas tramas, Gustavo Galvão e Cristiane Oliveira, escritores do filme, discutem as perspectivas da fama em diferentes etapas da vida. Mônica está cansada dos roteiros genéricos que recebe: a comédia pastelão e o melodrama exacerbado em novelas não são mais agradáveis ao seu olhar. Ela quer um divisor de águas em sua carreira, algo que a afirme como atriz. De maneira semelhante, a jovem do interior de Goiás é metaforicamente a versão crua e despreparada da veterana, mostrando aos espectadores o lado obscuro e nada romantizado do que é ser ator.
Ambientado no centro-oeste brasileiro, o longa ganha destaque por sair do eixo São Paulo-Rio e, dessa forma, levar o público a conhecer uma outra faceta do Cinema nacional. Com a produção também realizada aos arredores da região, a fotografia de André Carvalheira capta com maestria tanto as paisagens naturais – a vegetação do cerrado, por exemplo – quanto às locações urbanas: Brasília, mais especificamente a Universidade de Brasília (UNB), que serviu como cenário para a trama. Além disso, os momentos de aflição vividos pelas protagonistas são devidamente compreendidos através do jogo de cores neon que compõem a direção de arte.
O que torna O Vazio de Domingo à Tarde tão único no tema que aborda é a sua independência, dentro e fora das câmeras. Os roteiristas não poupam críticas aos acontecimentos que marcaram o país nos últimos anos: a desvalorização da cultura no governo de Jair Bolsonaro, uma piada inteligente com o jeito Record de contar histórias e o modo como as gravações de uma novela são exaustivas para os atores são algumas das feridas que o longa toca em 94 minutos. Pela sua autonomia, tais reflexões tiram o espectador da sua concepção do que é o audiovisual brasileiro. Assim, a metalinguagem assume um papel de fio-condutor da história, mas também serve como um chamariz para despertar curiosidade em uma trama inicialmente simples, mas substancial em sua totalidade.
Ainda que seja um filme essencialmente dramático, a obscuridade e a morbidez dão um tom especial para o gênero ao ter cenas desconfortáveis e angustiantes, o caracterizando como uma espécie de suspense a partir das experiências traumáticas pelas quais as personagens passam. Por esse lado, no terceiro ato, Mônica atinge o ápice do seu desgaste artístico ao ser colocada em um método desumano de atuação por um diretor sádico, mas ‘talentoso’. Interpretado por Roberto Salerno de Oliveira, o personagem mostra que, para estar no topo, esse mundo exige o abandono da individualidade em nome da arte. O problema é que, no final do dia, antes de serem ícones, personagens, todos possuem limites. E a falta deles implica, infelizmente, na perda de sua humanidade.
Apostando em um protagonismo 100% feminino, as atuações são o ponto de maior destaque do longa-metragem. A partir do trabalho de Gisele Frade (Chiquititas), o inferno vivido no consciente de uma estrela consagrada é analisado sob uma perspectiva real e condizente com as desvantagens que a exposição midiática traz. Carismática, agenciada por um bom profissional de relações públicas e amável não são modos de caracterizar a personagem principal, e isso é bom, pois desmistifica o culto à imagem do artista. Ao mesmo tempo em que a câmera é o lugar de evidência do talento de um ator, ela também é o registro diário de todos os seus atos, sejam eles morais ou não, levando ao questionamento interno de Mônica: “o que sou eu e o que é a minha personagem?”.
Além disso, a inocência de Kelly cruza com o caminho obscuro do jogo de poder típico da relação entre produtores e atores em começo de carreira. As atitudes da jovem possuem um objetivo final: ser aclamada como uma grande estrela. Toda a exaustão de Mônica com as injustiças do meio cultural são equiparados à determinação da adolescente em adentrar ao mesmo cenário. É como se a menina a entendesse e desejasse tudo aquilo que a veterana lutou tanto para ter. Se ao assistir a X e Pearl fica claro que Maxine é uma extensão de Pearl, em O Vazio de Domingo à Tarde, o efeito é parecido. Unidas por um bem maior (o prestígio), a ambição de uma complementa a da outra, retroalimentando esse beco sem saída, ou melhor, as dificuldades de ser um artista.
Domingos acontecem em todas semanas, mas são passageiros. A sua serenidade convive lado a lado ao frenesi de uma rotina a ser seguida nos dias posteriores, assim como, indubitavelmente, a vida de uma estrela. A calmaria não faz parte do mundo dessas pessoas e tampouco ajudará em seu trabalho. Na verdade, ela pode até aparecer, mas será passageira. Em uma visão mais pessimista, poucos irão alcançar o estado de plenitude e o estrelato, pois são ideias contrastantes. O Vazio de Domingo à Tarde de forma alguma é raso. Pelo contrário, ele possui identidade, cara e coração.