Júlia Paes de Arruda
Filmes com animais falantes podem ter enredos artificiais e forçados, como é O Zelador Animal. Outros conseguem atrair o público genuinamente, tal qual Dr. Dolittle, de forma que não seja necessário um reboot. Mas não é o caso de O Grande Ivan (The One and Only Ivan, no original). Neste novo projeto, a Disney consegue oferecer uma história leve, divertida e descontraída sobre um tema extremamente sensível e alvo de diversas controvérsias: a presença de animais em circos.
Na obra baseada em fatos, somos apresentados a Ivan (Sam Rockwell), um gorila de costas prateadas que é o mascote de um circo dentro do centro comercial Big Top Mall. Domesticado desde muito pequeno pelo dono do espetáculo Mack (Bryan Cranston), o animal vira sua grande atração. Porém, com as baixas audiências e os altos custos do picadeiro, Ivan é substituído pela pequena elefanta Ruby (Brooklynn Prince). Com sua chegada, o gorila passa a reconsiderar suas convicções e questionar sobre a vida que possui.
Aqui no Brasil, o uso de animais com fins circenses é proibido em apenas 12 estados, isto é, não existe uma legislação nacional que impeça esse tipo de comercialização. O motivo para a proibição é óbvia. Por trás das acrobacias “inteligentes”, eles vivem, em sua maioria, em ambientes precários – e até mesmo insalubres – contra a própria vontade a fim de proporcionar entretenimento. Só por aqui, já vemos que esse ato de humanizá-los acaba se tornando a própria falta de humanidade das pessoas, as quais enxergam uma opressão como um motivo de riso e aplausos.
A elefanta Stella (Angelina Jolie) é o retrato perfeito para tal violência. Dentro do picadeiro desde o começo, ela só é “libertada” com a chegada da sua morte. É irritante e agoniante ver a falta de empatia de Mack com o animal. Num dia, ao final de um espetáculo, ele vê Stella sem o apoio de uma das pernas e avisa para um de seus funcionários que o veterinário viria logo pela manhã. No dia seguinte, o dono do circo vê a elefanta já deitada, provavelmente agoniada, e solta um “eu ligo pro veterinário depois do espetáculo”. Essa fala deixa qualquer pessoa (pelo menos, qualquer ser humano decente) enfurecido e incomodado com a situação do mamífero que recorda com alegria nos olhos os velhos tempos na selva.
Esse aperto é ainda mais palpável por causa dos animais serem idênticos aos selvagens. A tecnologia de CGI proporciona uma experiência extremamente realista ao importar texturas de pelos, penas e traços físicos autênticos. Apesar da crítica presente no filme, é importante mostrar que a ausência de animais nas filmagens não influenciou o capricho das telas como foi no remake de O Rei Leão. Além disso, o uso de imagens computadorizadas auxilia na prevenção de maus tratos, algo bastante polêmico em Quatros Vidas de Um Cachorro.
As cenas de fuga em O Grande Ivan são tristes. Os animais saem desimpedidos, com o vento da liberdade batendo em seus rostos. Entretanto, ficam sem rumo, sem saber o que fazer depois. O coelho Murphy, inclusive, não consegue se desprender do seu caminhão de bombeiro para salvar a própria vida. Esse sentimento é parecido com a cena em Procurando Nemo, que mostra os peixes do aquário, presos em sacos plásticos, dentro do oceano animados com a sensação de independência. Dois segundos depois, um olha pro outro e surge a pergunta “e agora?”. É doloroso ver que na primeira oportunidade deles voltarem para sua vida antiga, eles a abraçam.
Os efeitos presentes no filme o fizeram ganhar uma indicação ao Oscar 2021 para Melhores Efeitos Visuais, categoria que já teve vencedores como O Primeiro Homem (2019) e Mogli: O Menino Lobo (2017). Os nomes encarregados do trabalho foram Nick Davis (nomeado ao Oscar 2009 por Batman: O Cavaleiros das Trevas), Greg Fisher, Ben Jones e Santiago Colomo. A técnica usada em O Grande Ivan, mesmo não sendo inovadora por ter sido usada também em Babe, O Porquinho Atrapalhado, trouxe a sensação de realismo aos animais, ainda que expressassem sentimentos humanos. Por causa da interação com os atores, as filmagens tiveram que ser divididas em duas partes, com marionetes e bonecos de tela verde, para que a sincronia entre as personagens pudessem ser complementares. Esse trabalho impecável veio da Moving Picture Company (MPC), a qual já havia produzido filmes reconhecidos nesse aspecto, como Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban e Guardiões da Galáxia. Já era de se esperar um serviço exemplar com esse currículo.
A direção de Thea Sharrock (Como Eu Era Antes de Você) e o roteiro de Mike White (que também dubla a foca Frankie) constrói arcos para desenvolver Ivan, deixando alguns personagens sem aprofundamentos. É o caso de Julia (Ariana Greenblatt), filha do funcionário George (Ramon Rodríguez). Ela é fundamental para que o gorila retorne aos seus laços selvagens, mas pouco se é debatido sobre a doença de sua mãe – ponto citado entre os desabafos da garota com o animal. Essa menção poderia ser facilmente excluída sem que afetasse a progressão dos acontecimentos. Também não fica claro como Ivan chegou às mãos de Mack e como surgiu a ideia de empreender um circo. Esses momentos poderiam fazer o público compreender melhor a trajetória do Grande Ivan.
A sensação de emancipação dos animais é ainda mais bonita acompanhada na sua música- tema. Selecionado mais uma vez para compor trilhas sonoras, Charlie Puth dá vida a Free, com versos profundos e deslumbrantes. A história de Ivan alcança completude com a letra e as notas do piano, alternando entre a angústia do aprisionamento com a maravilhosa sensação de finalmente estar livre. Dados do verdadeiro gorila são expostos em tela de forma a entender a inspiração do filme e, logo depois, os créditos sobem ao som da voz de Charlie. É impressionante essa construção sensorial que a sequência de imagens proporciona para a faixa.
O Grande Ivan nos dá uma grande lição de moral. Ele entra na onda dos filmes de animação que atraem o público infantil, mas que cativam outros espectadores a saírem com reflexões sobre o que assistiu. Não chega a ser um documentário da National Geographic, mas também não se trata de um desenho simplista. O enredo trata com delicadeza tópicos complexos para as crianças e as ensinam que o entretenimento não vale a vida de um ser vivo. Com certeza, merecia mais reconhecimento fora das premiações.