Angelus Simões
O clima é de abóboras, doces e Terror. Outubro chega e traz com ele uma das datas mais aguardadas pelos amantes do gênero, o Halloween. E é impossível falar de cultura do Horror sem evocar o nome de Howard Phillips Lovecraft, contista de ficção de Terror e fundador de um novo gênero dessa mesma cultura, e autor de O Chamado de Cthulhu.
O nome de Lovecraft é conhecido pela grande maioria dos entusiastas de ficção e Horror, e mesmo aqueles que não se relacionam muito com Literatura não estão salvos de suas obras. A influência das criações do autor, como The Call of Cthulhu, alcançou o mundo dos games, dos quadrinhos, séries, RPGs, animações e filmes, como, por exemplo, o jogo Bloodborne e a série de animação Rick and Morty.
O principal problema com a grande popularidade angariada por suas histórias, está no fato de que isso acaba por ofuscar o verdadeiro monstro de suas obras, o seu próprio racismo. Quando se fala em Lovecraft, muitos pensam em Dagon ou Cthulhu, e pouco se pensa na postura racista e preconceituosa que ele representa, e mesmo aqueles que pensam no assunto costumam estar dispostos a perdoar essa imensa mazela que permeia quase todos os contos do autor em prol da qualidade de escrita do mesmo.
Dessa forma, é crucial preparar-se para um texto advindo de outro lugar histórico. O fato é que as histórias de Lovecraft não são influenciadas apenas pelos valores da época em que foram escritos mas também pelo contexto de vida do próprio autor. O contista cresceu a maior parte de sua infância na mansão do avô, afastado inclusive da escola devido a sua saúde frágil, e passava grande parte de seu tempo na biblioteca da casa, lendo obras clássicas e livros de Terror.
Esse comportamento literato deu a Howard um vasto arsenal de mitologia e vocabulário para fazer mão em seus textos. No entanto, a soma de sua reclusão com a vida em uma cidade pequena e a criação aristocrática, acabou por fortalecer os preconceitos do autor, gerando um comportamento racista, xenofóbico e muitas vezes eugenista, atitude essa que viria a ser acentuada durante seu período de maior convivência social em Nova Iorque. Esse medo e desprezo em relação ao diferente se vê traduzido em seu estilo de escrita e em suas histórias, sempre protagonizadas por vilões de etnia estrangeira e/ou não-branca. Especula-se que, inclusive, alguns de seus primeiros monstros fossem representações desses povos por quem tinha menosprezo.
Assim sendo, é importante ter consciência sobre essas mazelas que mancham de forma significativa as diversas criações de Lovecraft. Infelizmente, para aqueles que desejam conhecer o Horror cósmico como foi concebido, vez ou outra acabará por ler alguma de suas obras e terá de enfrentar os monstros não-ficcionais em seus textos. No fim, cabe a cada um decidir como lidar com isso.
Dos contos do autor, juntamente com suas criaturas míticas, O Chamado de Cthulhu é possivelmente o mais conhecido e influente de todos. A história se inicia com uma estrutura característica adotada pelo contista: a narrativa em primeira pessoa. Esse é um recurso utilizado com maestria por Lovecraft, que o utiliza para aproximar o leitor das experiências narradas e trazer um tom de realidade maior para seu Horror. Nesse em específico, Lovecraft nos faz acompanhar quase na pele a construção do medo e da insanidade vividas pela personagem narradora da história.
A trama, publicada em 1928, tem início quando o narrador herda de seu tio-avô, um professor universitário, vários documentos e obras referentes ao seu trabalho, e dentre eles se depara com um estudo peculiar nomeado como “O culto de Cthulhu”. Esse estudo trata de uma série de documentos, cartas e anotações que tem como centro uma seita obscura e secreta a uma divindade ancestral que possui o nome de Cthulhu.
A história então se desenvolve para ser dividida em três partes que visam ilustrar esse estudo sobre o culto. Na primeira, o texto acompanha as investigações do protagonista acerca dos estudos realizados por seu tio-avô, e neles, o parente acaba por descobrir uma interligação entre artistas e poetas que têm alucinações e sonhos semelhantes relacionados a algum tipo de monstruosidade perdida nas profundezas do mar. Essa parte da narrativa é fundamental para plantar a semente da apreensão no leitor, nos fazendo olhar o horror da história em um plano maior e mais ameaçador. Na segunda parte, o conto regressa um pouco no tempo e nos mostra um culto nos pântanos de Nova Orleans. Enquanto se desenvolve essa etapa da história, o Horror cósmico começa a mostrar sua face, diminuindo-nos a vítimas impotentes das vontades de uma raça ancestral adormecida em nosso planeta, enquanto tudo o que podemos fazer é aguardar seu despertar.
Na terceira e última etapa da narrativa, o protagonista investiga o caso da tripulação de uma embarcação que foi atacada por cultistas, e, ao sobreviver, acabou supostamente se deparando com a cidade ciclópica, antes vista apenas nos sonhos dos artistas e nas narrativas dos adoradores. Esse ponto em específico do texto pode ser um pouco decepcionante para alguns, pelo fato de quebrar o ar de mistério sobre a existência de todas as coisas descritas nas partes anteriores, mas ainda é de suma importância na construção do medo no conto como um todo.
O ponto mais forte do estilo de Lovecraft, que é altamente presente nesse conto, é o Terror como uma sugestão. A maior parte da história é composta por divagações e investigações por parte do narrador, onde nada de concreto de fato acontece, e, no entanto, o medo está ali. Esse terror psicológico deixa o próprio Cthulhu, que leva o nome no título, como uma espécie de personagem secundário, uma sombra milenar que se estende através do tempo para assombrar os dias atuais. O mérito do conto está em nos deixar com medo daquilo que não sabemos o que é, como definir ou que sequer somos capazes de compreender, e é nisso que se baseia o Horror cósmico (subgênero de Terror em que Lovecraft foi pioneiro), na insignificância humana perante um universo desconhecido, assustador e incompreensível.
A verdadeira face do medo criado pelo autor é o desconhecido, reflexo direto da mentalidade do próprio contista, que se traduz em um preconceito explícito que é transmitido por seus personagens. Os grandes cultistas e protagonistas das vilanias retratadas em seus textos são as minorias, povos estigmatizados e negligenciados pela história, de origem majoritariamente negra. O medo de Lovecraft é o medo do estrangeiro, o próprio Cthulhu é uma criatura advinda de fora da Terra, das profundezas ancestrais do Cosmo.
É nesse espectro de medo do desconhecido, de horror psicológico e de atomização do ser, que se constrói a maior parte da narrativa. Mas, para os amantes de finais abertos e reflexivos, esse conto traz pequenas decepções ao abordar uma confirmação concreta da existência desta divindade alienígena, a consolação se dá pelo fato de não se saber ao certo o que houve com ela, e que destino terá o planeta Terra.
O conto em si, que conta com 64 páginas e tradução de Ramon Mapa na edição da Darkside Books, é um clássico essencial aos amantes do terror psicológico e para aqueles que desejam ter um contato genuíno com o Horror cósmico. Seu grande defeito, porém, se encontra na mentalidade do autor e no momento histórico em que foi escrito, o que exige um olhar crítico e preparado.
No que se refere às traduções para o português brasileiro, é perfeitamente cabível afirmar que a língua latina casa muito bem com a história de O Chamado de Cthulhu, valendo-se de um arsenal vasto de palavras rebuscadas que ajudam a construir o clima de um Terror quase gótico. Não é à toa que suas obras inspiram autores até os dias de hoje, como é o caso do Mestre do Terror Stephen King, ou até mesmo escritores mais fantásticos, como Neil Gaiman.