Aviso: o texto a seguir apresenta conteúdo descritivo de violência, podendo servir de gatilho para alguns leitores.
Ma Ferreira
Em abril de 1992, na cidade de Guaratuba, no Paraná, desapareceu o menino Evandro Ramos Caetano de apenas 6 anos. Na última vez que ele foi visto, disse que buscaria seu mini game em casa e voltaria para a escola onde a mãe trabalhava, mas nunca mais voltou. Dias depois, alguns lenhadores encontram seu corpo em um matagal. O cadáver estava sem o couro cabeludo, sem as mãos e os dedos dos pés, com o ventre aberto, sem as vísceras e em avançado processo de decomposição.
Após esse bárbaro crime é que se desenvolve a trama apresentada na nova série original do Globoplay, O Caso Evandro. A narrativa é cheia de reviravoltas, infortúnios e grandes erros que foram cometidos na investigação do que foi o mais longo julgamento nacional. Com um clima de conspiração e mistério, somos convidados a participar de uma viagem no tempo para entender o pensamento da época de ocorrência do assassinato e como as informações eram apresentadas na investigação e na mídia.
Na década de 1990, houve um grande desaparecimento de crianças no Paraná. Meses antes do desaparecimento de Evandro, outra criança de semelhantes características físicas, cabelo loiro e olhos claros, Leandro Bossi, de 8 anos, também havia sido raptado. Até hoje não se sabe o paradeiro do garoto e muito se especula sobre as reais ligações entre esse incidente com o que houve com Evandro. As famílias tinham condições sociais diferentes e isso influenciou nas buscas e investigações de ambas as crianças.
Meses após, sete pessoas confessaram o crime dizendo que o menino Evandro havia sido morto para ser usado como oferenda em um ritual satânico. Entre os acusados estavam a esposa e a filha do prefeito da cidade, Celina e Beatriz Abagge, que foram apontadas como as principais mandantes do trabalho. O pai de santo Osvaldo Marcineiro teria realizado a morte da criança para trazer prosperidade aos negócios da família Abagge.
A narrativa da acusação era a de um ritual de magia negra. A alegação era de que crianças estavam sendo raptadas para serem sacrificadas em prol de riqueza e poder a políticos da época. A maneira como eram citadas e apresentadas as questões ligadas às religiões de matriz africana só causou maiores ações violentas da população da região. Até hoje, existem muitos ataques a terreiros com esta mesma visão deturpada de ser algo ligado ao satânico, ponto que a série discute exemplarmente.
A mídia viu a possibilidade de explorar o caso, auxiliando na acusação dos sete, apresentando grande desconhecimento e mesmo preconceitos para com as religiões de matriz africana, julgando as principais suspeitas de envolvimento como bruxas. Por outro lado, havia uma grande pressão em relação ao trabalho da polícia e a uma resposta breve sobre o que havia ocorrido com as crianças. Neste processo de busca de respostas imediatas, muito se errou e muito se inventou.
Durante o processo, várias falhas foram levantadas e reviravoltas no processo ocorrem. Foram vários julgamentos, páginas e páginas dos autos dos processos, provas perdidas e novos exames solicitados. Essa trama diabólica envolve uma investigação particular do tio de Evandro, Diógenes Caetano. Ele se tornou a principal referência para as equipes que investigaram o caso (Polícia Civil, Grupo Tigre, Polícia Militar, Grupo Águia) e fomentou várias conspirações com relação a família Abagge, que era sua rival política e pessoal.
Ao final da série, um novo material é apresentado: as fitas. Convidados a ouvir as gravações, os acusados, a Promotoria e a Defensoria, reagiram ao conteúdo dos áudios. Neste momento de O Caso Evandro, têm-se a problemática clara da tortura sob a qual passaram os suspeitos para confessarem o crime e a história absurda. O que fica nítido é que o caso ainda pode ter mais novidades e que nada do que se sabe sobre ele realmente auxiliou a solucioná-lo.
A produção é muito bem dirigida por Michelle Chevrand e Aly Muritiba. O trabalho com a temática é cuidadoso, com a pesquisa base que veio do Podcast Projeto Humanos, sob a coordenação de Ivan Mizanzuk. O cuidado narrativo aos detalhes, a cronologia de informações que eram divulgadas à época, bem como a maneira que eram exploradas na mídia foram problematizadas. Outras questões que atravessavam a narrativa principal, como a tortura e a intolerância religiosa com relação à Umbanda, foram analisadas e debatidas com especialistas para um melhor entendimento do público sobre a questão.
A problemática das investigações brasileiras no sentido de recursos e falta de alguns conhecimentos à época também é discutida, bem como a punição e a definição de culpados que é dada pela mídia antes mesmo de um julgamento judicial. Há um cuidado especial em dialogar com os envolvidos, que aparecem e contam a sua maneira as informações que não constam dos autos dos processos, por serem seus relatos de vida. A série documental O Caso Evandro é um marco no fazer narrativo policial de produções nacionais.
Ao final da série, tem-se a promessa de uma próxima série documental focada no Caso dos Emasculados de Altamira, que ainda se encontra em pesquisa por Ivan Mizanzuk. Caso semelhante ao de Evandro quanto a maneira com que a polícia e a mídia o abordaram, bem como na ideia de uma seita satânica que usava crianças.
O Caso Evandro é uma importante reflexão para pensarmos em como atualmente o sistema judicial tem sido falho e a mídia muitas vezes faz o papel de juiz. Um exemplo recente é o Caso Lázaro, que teve um final execrável, não dando ao acusado sua chance de ser julgado e condenado. O erro é grave por privar as famílias das vítimas da verdade. Evandro e outras pessoas ainda esperam por justiça.