Bruno Andrade
Pense naquele famoso discurso de paraninfo intitulado Isto é água, proferido por David Foster Wallace aos formandos do Kenyon College em 2005. Nele, lemos que a “verdadeira liberdade requer atenção, consciência, disciplina, esforço e a capacidade de se importar genuinamente com os outros”. Pronto, esse pequeno trecho pode muito bem apresentar a ideia por trás de O Cão que Não Se Cala (El Perro que No Calla, no título original), filme argentino exibido na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, dirigido e co-roteirizado por Ana Katz.
Ao longo dos 73 minutos dessa comédia dramática, acompanhamos a vida de Sebastian (Daniel Katz), um homem comum que dedica sua vida ao cão fiel. Ele trabalha em diversos empregos temporários e tenta adequar-se à mudança constante da vida adulta, em paralelo aos problemas impostos por uma Argentina em crise. À moda de Tolstói, Sebas (como também é chamado) resolve as adversidades com delicadeza e empatia, mas não se sente pertencente ao mundo, vivendo cabisbaixo como um cão sem dono, embora nunca reclame ou apareça chorando. No filme, há um equilíbrio entre o absurdo e o drama empático.
O protagonista — um homem sem qualidades — caminha por terrenos distintos, compondo sua visão fragmentada do mundo. Ele nos é apresentado como designer gráfico de uma empresa, mas prefere ser demitido a deixar de levar o cão ao trabalho, em decorrência de sua tentativa de evitar o incômodo dos vizinhos, visto que, ao sair de casa, o cão não para de chorar (essa é a cena inicial do filme, e também a que justifica seu título). Depois, inicia um emprego em uma cooperativa de alimentos naturais, confrontando suas concepções nesse ambiente singular e humilde, como na sequência em que ensina os demais a utilizarem um smartphone. Transforma-se, ainda, em professor universitário e, anos depois, retorna a empresa em que foi designer para ser uma espécie de atendente, visto que agora é pai e suas escolhas tornaram-se escassas.
Uma das metáforas que não passam batido em O Cão que Não Se Cala é o da chegada de um misterioso cometa. Ao colidir com a Terra, o corpo celeste torna o ar tóxico — parece familiar de alguma forma? —, obrigando as pessoas a utilizarem um cilindro para respirar. Por uma razão estranha, somente uma determinada altura da atmosfera é comprometida, e a utilização do aparelho permite que os indivíduos caminhem de forma ereta. Porém, mesmo com a situação de calamidade, o apetrecho permanece caro e inacessível a muitos, o que obriga os mais pobres a andarem agachados. Após ter seu cilindro furtado, Sebastian compõe o grupo dos que se locomovem sob essas circunstâncias, mas não parece se incomodar.
Após a superação da condição pandêmica, Sebas não está mais casado — algo que fica subentendido como uma consequência dos desgastes ocasionados durante o período atípico. Então, através das pausas silenciosas do filme, somos jogados a sensação de que a vida é composta por pequenos fragmentos intensos, nos quais a beleza consiste justamente na efemeridade dessas parcelas visuais. De certa forma, a aposta da diretora Ana Katz são as reflexões, e o que está em voga é essa visão existencialista, acompanhada da consciência de que a imprevisibilidade da vida é o que a torna especial.
A composição em preto e branco do filme sinaliza para uma simplicidade que foi deixada de lado em troca de um mundo complexo e interconectado. O saudosismo dessa época menos complicada, na qual a urgência não havia dominado o todo, diz respeito à infância e à juventude, observadas no filme como fases infelizmente passageiras. Devido a brevidade da existência — sinalizadas no longa através dos cortes em eclipse, que ilustram os saltos temporais na vida do protagonista —, a liberdade verdadeira materializa-se como algo difícil, pois não tem a ver exclusivamente com o que é feito diante de uma situação, mas sobre como os demais a recebem por você. Trata-se de entender que o livre-arbítrio é sobre os outros, e, sabendo disso, decidir seguir ou abdicar. No fim, O Cão que Não Se Cala é uma ode aos recomeços.