Felipe Nunes
A jornada de uma mulher evangélica que vende marmitas para sustentar a família é o retrato de diversas brasileiras. A trama poderia ser capaz de fisgar a atenção do público pela representação e, ao mesmo tempo, se perder em um marasmo de clichês e monotonias? Com certeza, caso não tivesse explorado a modernidade de forma tão livre. Lançada em Janeiro de 2023, Vai na Fé surge em uma era dificultosa para a teledramaturgia, que, aos trancos e barrancos, não retornou ao lugar magistral que ocupava na vida dos espectadores televisivos antes do contexto pandêmico. Subestimada inicialmente, a produção superou as expectativas de todos, incluindo da própria Rede Globo.
O trunfo da superação é de Rosane Svartman, que sabe bem como transformar narrativas consideradas simples em situações profundas e cativantes. Afinal, toda história, até mesmo a mais disruptiva e inovadora, parte de um lugar-comum e trivial. O encanto não é gerado apenas pelo conteúdo – na verdade, é, em grande parte, ocasionado por quem conta essas histórias e, também, por quem as interpreta. Nesse caso, pela sintonia de Svartman e Sheron Menezzes, que brilharam juntas ao longo dos 179 capítulos. O texto escrito pela novelista conflui ao tom da interpretação dada pela atriz e o sucesso da obra se deve muito a isso.
Aos poucos, a trajetória de Sol (Menezzes) se mostra bem mais peculiar do que a apresentada na sinopse inicial. Perder o esposo, Carlão (Che Moais); virar dançarina do ballet de Lui Lorenzo (José Loreto); reencontrar o grande amor, Benjamin (Samuel de Assis); revisitar os traumas do abuso que sofreu de Theo (Emilio Dantas); e descobrir que a primogênita, Jennifer (Bella Campos), é resultado de um estupro, são arcos intensos e super importantes na construção da personagem. Menezzes passeou com destreza por todas essas fases, mostrando que há tempos merecia um papel de destaque.
Torcer pela ‘mocinha’ não foi um sacrifício como acontece frequentemente em produções que colocam as protagonistas como figuras bobas repletas de ações pautadas em bondades hiperbólicas, burras e irreais. Sol não é ingênua. Pelo contrário, é forte, combatente, decidida e corajosa. Acompanhá-la, nos momentos bons ou ruins, é como procurar notícias de uma velha amiga. A mescla entre ganhos e perdas também é um fator considerável, porque mostra como a vida é: cheia de reviravoltas. A trama quebra o paradigma constante de que um personagem principal precisa sofrer do início ao fim. Em gêneros longos como novelas, isso, na verdade, é torturante. É por esse motivo que foi tão emocionante ver Sol conquistando um sonho de cada vez ao decorrer da obra, mesmo que enfrentasse percalços.
O carisma da mocinha, além da entrega de Menezzes, foi gestado já pelo texto de Svartman e de sua equipe de colaboradores: Sabrina Rosa, Fabrício Santiago, Renata Sofia, Mário Viana, Renata Corrêa e Pedro Alvarenga. Inquestionavelmente, a multiplicidade de vozes de cada colaborador foi impressa no roteiro, tornando-o fresco. A concentração textual novelística em apenas um autor foi realidade nos antigos folhetins, mas a colaboração é o futuro. Com ela, os temidos furos não são tão recorrentes e as sequências ganham novas roupagens. Monotonia passa longe quando diversos olhares estão envolvidos na contação de uma história, e o alcance do folhetim foi alicerçado nesse pilar.
Representativa, Vai na Fé contou não apenas com protagonistas pretos, mas com grande parte do elenco como um todo. De acordo com Samuel de Assis, responsável pelo advogado e galã Benjamin, 70% dos atores da novela são pretos. A representação transcende o eixo temático do racismo, que, embora tenha sido abordado na narrativa, não foi o único – o que é uma enorme conquista. Tratar do tema é essencial, porém os personagens pretos não estão lá apenas para essa função. Diante disso, acompanhá-los em outros dramas do cotidiano e vê-los em posição de destaque na história foi um ponto positivo que quebra os estigmas impregnados na teledramaturgia – a qual, por muito tempo, deu espaço aos intérpretes negros somente para coadjuvantes, ou em papéis de empregados e ladrões.
O minucioso trabalho da escalação de elenco foi a mola propulsora para essa representatividade. Antes nunca vista em folhetins, Clara Moneke é, de longe, uma grata revelação e exemplo da importância da negritude em obras culturais audiovisuais. Coube a ela vivenciar a engraçada, intensa, sensível e carismática Kate. Ainda que como coadjuvante, ganhou maior tempo de tela e se consolidou como uma das melhores personagens. O mesmo vale para Carla Cristina Cardoso como Bruna, mãe de Kate na ficção. Isso porque, se no início ela era apenas o apoio de Sol, nos desdobramentos do arco maternal pôde brilhar através da relação construída com a filha e teve, enfim, uma trama para chamar de sua.
Por outro lado, vale ressaltar que veteranos também foram ‘revelados’ outra vez. É o caso de Carolina Dieckmann, que viveu seu melhor papel na teledramaturgia brasileira como Lumiar Lorenzo. Eternizada como a Lindalva, de A Senhora do Destino, e Camila, de Laços de Família, a atriz se consagrou entre as complexidades da dúbia, porém profunda, professora universitária e advogada Lumiar. É característico de Rosane Svartman criar esse tipo de personagem, com camadas que misturam as piores e as melhores facetas da humanidade: egoísmo, arrogância e crueldade entrelaçadas com bondade, intensidade e passionalidade. Também criada pela autora de Vai na Fé com Paulo Halm, Carolina Castilho (Juliana Paes), de Totalmente Demais, ilustra essa tipologia de personagem e se assemelha ao papel defendido por Dieckmann.
Além disso, os arcos, de forma geral, são bem equilibrados. É como se, além da narrativa central, micronarrativas ganhassem espaço a cada bloco de capítulos semanais, garantindo que cada parte do elenco tenha seu momento de esplendor. Regiane Alves como a volátil Clara; Caio Manhente na pele do traumatizado Rafa; Claudia Ohana na interpretação da bondosa Dora; e Renata Sorrah, que representou a atriz decadente Wilma Campos, balanceiam a trama sem invadir o espaço do enredo principal. Essa ampliação escancara o talento dos atores, é óbvio, mas não deixa de demonstrar a destreza da autora e dos colaboradores em não se perderem nos núcleos paralelos, o que acontece com outras produções novelísticas, como em Todas as Flores, que estreou na TV aberta após ser disponibilizada no Globoplay.
As sequências também foram embaladas com uma trilha sonora irretocável; aliás, a Música foi um dos fios condutores de todas as histórias. A abertura com Vai Dar Certo (Vai na Fé) na voz de Negra Li e MC Liro é um espetáculo à parte e virou hit, assim como as canções de Lui e Sol. Apenas Mais uma de Amor, de Lulu Santos; Hello Sunshine, de Aretha Franklin; e Lumiar, de Roberta Campos, também imperam na trama. Contudo, é impossível não citar Garota Nota 100, reinterpretada por Ludmilla e cantada originalmente pelo pioneiro no funk MC Marcinho. A faixa, responsável pelos momentos românticos do casal principal, fica eternizada como uma homenagem ao funkeiro, que, após sofrer uma parada cardíaca, morreu, aos 45 anos, no dia 26 de agosto, duas semanas após o fim da novela.
Fora a competência dos atores, a direção de Paulo Silvestrini é outro acerto que equilibrou a novela. Conhecido pelos trabalhos em obras de sucesso na emissora, como A Favorita e Avenida Brasil, o diretor entregou cenas catárticas e emocionantes na bela parceria com a autora da produção. Dentre elas, destacam-se o término de Lumiar e Ben; a morte de Dora; a prisão de Kate; a reunião de Wilma Campos com os novelistas João Emanuel Carneiro, Gloria Perez e Walcyr Carrasco; o incêndio promovido por Theo; e o casamento dos protagonistas.
O núcleo do Icaes, faculdade fictícia da trama, também mostra a familiaridade do diretor e da escritora com tramas juvenis. Nesse enredo paralelo, a dupla abordou com profundidade eixos temáticos relacionados a cotas universitárias, desigualdades sociais, racismo e sexualidade. Silvestrini trabalhou em Malhação: Viva a Diferença, ganhadora do Emmy Kids Internacional como Melhor Série. Já Svartman é responsável pelas célebres temporadas: Malhação: Intensa como a Vida e Malhação Sonhos.
No meio de tantas bonanças e acertos, a história de Vai na Fé é manchada pela censura da direção da Globo. Uma das subtramas mais potentes, a de Clara, que após anos de abuso do marido se apaixona pela personal trainer Helena (Priscila Sztejnman), foi subalternizada. Cenas homoafetivas de beijos das personagens foram cortadas inúmeras vezes, o que prejudicou o folhetim e mostrou o retrocesso da emissora em retratar narrativas LGBTQIAP+. Regiane Alves, que deixou a empresa televisiva após a novela, não se isentou frente ao conservadorismo e à censura. “Um passo de cada vez para a construção de um futuro onde todas as formas de amor possam ser aceitas e celebradas”, escreveu via X.
Após a pressão popular, tendo em vista as inúmeras desaprovações dos espectadores, críticos especializados e do próprio elenco, novas cenas foram gravadas e liberadas. No entanto, outros erros se somam ao que não foi tão bom na novela. As famigeradas ‘barrigas’ – períodos em que nada catártico acontece e as tramas parecem monótonas – dominaram a obra. Do meio ao final, a história se tornou cansativa. O interminável julgamento de Theo durou quase um mês e é o maior exemplo, assim como as situações envolvendo o exame de DNA de Jenifer, a gravidez de Guiga (Mel Maia) e muitas outras.
Se por um lado o folhetim ficou lento, por outro, alguns arcos foram concluídos com superficialidade e correria. A carreira musical de Sol, infelizmente, é um desses casos. Depois de uma longa jornada como cozinheira e dançarina, a protagonista alcançou o sonho de ser cantora solo somente na reta final da trama e, como outras situações também precisavam ser abordadas, a trajetória profissional foi jogada para escanteio. A inserção de Ângelo Paes Leme como um novo vilão não foi bem aproveitada pelo pouco tempo destinado ao enredo, por exemplo. Na pele de Mauro Vieira, um empresário abusador, Paes Leme poderia ter trazido frescor ao folhetim caso sua entrada não tivesse sido tão tardia, visto que ele integrou o elenco somente na última semana da novela.
A mudança na linearidade é uma das inovações do folhetim. Flashbacks são pouco usados nas novelas e quando aparecem são breves, padrão que Vai na Fé rompeu. De forma geral, a fase atual é mais presente, mas isso não impediu que a narrativa principal estivesse totalmente interligada com o passado. O relacionamento de Sol e Ben, inclusive, não caiu no clichê de amor à primeira vista e foi construído, principalmente, na fase jovem dos personagens, assumidos por Jê Soares e Isacque Lopes. A escalação e a caracterização foram condizentes. Em diversas cenas passado e presente se misturam, recurso narrativo que reflete a modernidade de Rosane Svartman para escrever novelas.
Nessas sequências temporais, Ben e Theo se destacam em ambas as fases. A relação conturbada por eles é percebida logo nos primeiros capítulos. Entretanto, quando o rompimento – motivado pela revelação do estupro do vilão contra Sol – acontece no meio da novela, a obsessão do personagem de Emilio Dantas é aprofundada. O ator vivenciou o pior vilão da faixa das sete. Desprezível, nojento, abusador e cruel são características rasas para definir o que ele representa. Já Ben é o exato oposto, o contraponto que liquefaz a maldade. Samuel de Assis sustentou o carisma do galã sem perder as complexidades e representatividades que o personagem carregava. Ele e Dantas fizeram uma ótima dupla.
Leve e, ao mesmo tempo, intensa, Vai na Fé marca a teledramaturgia da Rede Globo como um dos maiores fenômenos novelísticos do horário. A particularidade em retratar temas sérios sem perder a essência clássica dos folhetins mostra que, embora seja composta por um texto moderno, a produção não tem medo de ser novela e é o que se cumpre a ser. Ao longo de 179 capítulos, retrata histórias profundas e reais, com o apoio de uma direção e um elenco em total sintonia. Ancorada na musicalidade, a obra, que tropeçou na reta final, reforça a importância de seguir em frente e ir na fé, até mesmo quando fazer isso pode parecer uma missão impossível em meio às turbulências da vida. Sucesso estrondoso, a trama mostra que, sim, os brasileiros amam novelas; mais do que isso: eles sempre vão amar.