Jho Brunhara
A expectativa que um filme gera é uma faca de dois gumes. No caso de Nova Ordem, um dos títulos mais hypados da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é uma lâmina cega e enferrujada, mas que faz estrago. O filme do diretor mexicano Michel Franco, Nuevo Orden no idioma original, é uma exibição de 1h30 que em pouquíssimos momentos rompe a violência gratuita e apontamentos óbvios sobre a luta de classes.
No longa, um casamento luxuoso da elite mexicana é invadido por manifestantes, e a noiva, Marianne (Naian González Norvind), sai momentos antes com um dos funcionários que trabalham em sua casa, Cristian (Fernando Cuautle). Enquanto isso o irmão da jovem adulta, interpretado por Diego Boneta (de Scream Queens), continua na residência. Mas os problemas de Nova Ordem começam muito antes dessa sequência. Nas primeiras cenas do filme, um grupo ensanguentado vindo dos protestos dá entrada em um hospital. Os manifestantes removem os pacientes que já estavam nas macas para dar lugar aos seus.
Um desses pacientes é a mulher de Rolando (Eligio Meléndez), que precisa realizar uma cirurgia cara com urgência ou vai morrer. Rolando trabalhou por anos na casa de Marianne, e vai até lá pedir dinheiro emprestado, favor que é negado por todos da família menos pela boa moça. Afinal, o que é mais bondoso que essa vontade no coração para salvar um idoso à beira da morte? Assim se constrói a alegoria perfeita que Franco necessita, um oportunismo que quer dizer: mas nem todo branco… E logo depois os invasores escritos por Michel fazem um massacre.
Desde o ínicio, Franco assume uma postura de colocar os mexicanos de pele escura (em sua maioria indígenas e mestizos) como os agressores. Mesmo que alguns da elite sejam tratados como vilões, o pouco que se desenvolve até a invasão não justifica ao espectador as ações mórbidas dos manifestantes, e pior, a direção e o roteiro os tratam como animais. Pouquíssimas falas, ações em bando, atos cruéis e agressivos. Enquanto isso, os whitexicans (mexicanos brancos e ricos) parecem ser o tempo todo as vítimas, mesmo com fracas alfinetadas aqui e ali.
No mundo real, sabemos como a colonização da América Latina favoreceu os descendentes de europeus e deu lugar a sistemas que beneficiam os brancos, e no México não foi diferente. Mas Nova Ordem fracassa em levantar esse debate de uma forma bem executada. Na verdade, não faltam execuções, mas de outro tipo: em quase todas as cenas alguém morre, ou é espancado, ou está sangrando, e até mesmo um estupro sem relevância narrativa nenhuma foi inserido no roteiro. Essa violência gratuita exagerada, sem propósito algum para a história que não seja chocar quem assiste, mata aos poucos todas as qualidades do longa.
E mesmo se ignorarmos toda essa camada que deixa a tela pingando sangue, ainda sobra um filme covarde, que não quer decidir quem está certo e quem está errado. Ninguém está dizendo que todos os brancos são maus e vice-versa, e estaria tudo bem em apresentar esse desdobramento se a trama tratasse os dois grupos da mesma forma, mas não é isso que ocorre. O sequestro de Marianne, branca, por dois paramilitares de pele mais escura é a forma mais terrível de Michel Franco querer dizer que temos bons e maus de ambos os lados. Enquanto rola esse jogo de peteca, vemos o que é o único desdobramento interessante da trama: o que vem depois da revolta?
Quando as ruas se acalmam pela ação do exército, tudo muda na Ciudad de México, e provavelmente no país. Os ricos se mudam para uma parte protegida, cercada por muros e segurança máxima. Os pobres continuam em suas casas, com constantes toques de recolher e um sistema de segurança extremamente rígido, organizado pelas forças armadas mexicanas. A queda do governo por um autogolpe do exército dá lugar para um corrupto Estado militar autoritário. Ainda que previsível de certa forma, afinal, o mundo real já deu dessas, a angústia gerada aqui é tão verdadeira quanto. As democracias latinoamericanas são frágeis e devem ser constantemente cuidadas.
Mesmo com ideias interessantes, Nova Ordem não passa de um episódio ruim de Black Mirror. Distopia, crítica social foda e plot twist, tudo isso envelopado em uma produção grandiosa. Porém, a trama patina no sangue derramado e as alegorias que constrói não vão muito longe, flertando com o elitismo aqui e ali. Michel Franco, branco, revelou em entrevista recente que quem acusa o filme de racismo e utiliza o termo ‘whitexican’ seria tão racista quanto. Bom, só essa declaração sobre racismo reverso talvez já explique muitas das decisões de Nova Ordem. E se Franco existisse em seu mundo fictício, o convite para o casamento de Marianne já estaria garantido.