Caroline Campos
Há algo de especial na forma com que tradições orais são transmitidas. Através da força de contadores de histórias, impérios foram criados, sociedades foram destruídas e lendas foram moldadas. Na África Ocidental, esse papel fica a cargo dos griots, guardiões milenares do passado, sagrados para a preservação da tradição. Em Noite de Reis, o mensageiro é personificado na figura do Roman, escolhido durante a Lua de Sangue para cumprir o ritual em La Maca. E assim, chega ao fim o Festival do Rio 2021.
Escrito e dirigido por Philippe Lacôte, o último dos 15 filmes do Festival utiliza as experimentações do realismo fantástico para desconstruir as narrativas tradicionais e mesclar presente, passado e futuro no ambiente caótico da Maison d’Arrêt et de Correction d’Abidjan – La Maca, para os íntimos. O presídio superlotado fica na maior cidade da Costa do Marfim, Abidjan, e é controlado pelo Dangôro, um líder de guerra entre os presos que, quando doente, precisa abdicar do cargo e cometer suícidio.
O comandante da vez é Barba Negra, interpretado com solidez por Steve Tientcheu. Sabendo que seu reinado se aproxima do fim, é ele quem decide por restaurar o ritual do Roman, entregando o papel ao pobre do recém-chegado vivido por Bakary Koné. Como se colocasse toda a prisão em um transe letárgico, o narrador é incumbido de entreter e mobilizar por uma noite aquele mecanismo complexo de desordem e brutalidade, mas assim que finalizar sua história, o destino que o aguarda é manchado de sangue.
Quando o Roman fala, não há apenas silêncio obediente e concentrado – os habitantes de La Maca reagem ativamente, transmitindo passagens através de seus corpos e suas vozes, dialogando com aquele conto fragmentado em uma beleza poética e artística. Assim que todos esses ouvidos se voltam para a ascensão do jovem criminoso Zama King e sua infame queda pelas mãos cheias de vingança da população, o garoto precisa contar com a sagacidade de Sherazade para garantir que a noite seja sua aliada.
Bebendo das fontes marginais do Cinema Brasileiro, Noite de Reis corre atrás das galinhas de Cidade de Deus e elabora King com a mesma destreza com que Fernando Meirelles e Kátia Lund entalharam seu Zé Pequeno 20 anos atrás. Tão convincente quanto Buscapé, o narrador da obra de Philippe Lacôte se encontra no centro de uma arena instável e desconfiada, em um constante estado de agressividade ansiosa que caminha junto a ele rumo ao ponto final.
Lacôte, no entanto, não se contenta com um simples ‘contar’; toda a capacidade criativa do diretor marfinense também mira alto no ‘mostrar’. A narrativa metalinguística do passado de Zama King constrói uma aura épica fora das grades prisionais, como uma controversa jornada do herói que conversa com cada preso que a escuta. Visualmente, somos arrebatados. A rainha de Laetitia Ky é um fenômeno da natureza, firme e potente, serena e severa. Com ela em cena, não há espaço para outros protagonistas. E, mesmo que seja apenas um recurso das palavras do desesperado narrador, sua trajetória é reverenciada pela ancestralidade da Costa do Marfim, jovem em sua independência.
O misticismo de La Nuit Des Rois é difícil de ser esquecido. Brincando com a realidade, o longa de Philippe Lacôte, escolhido para representar seu país na corrida do Oscar 2021, é um apelo pela sobrevivência e uma ode aos antepassados, tão belo em sua execução alegórica que nos perdemos na dança de seus elementos. Um povo sem memória é um povo sem passado e, em La Maca, é a história que decide se você vive ou morre.