Gabriel Leite Ferreira
É chavão classificar obras definitivas da cultura pop como “atemporais”. Os Beatles são atemporais, Frida Kahlo é atemporal, Sylvia Plath é atemporal. É um modo hiperbólico de destacar artistas que superaram as barreiras do tempo e continuam tão (ou mais) relevantes quanto na época em que surgiram. Mas o que fazer com produtos que simplesmente não tem precedentes? Qual o lugar desses artefatos que parecem não pertencer a tempo ou lugar alguns?
Christa Päffgen saiu da Alemanha ainda adolescente para modelar para revistas francesas. Lá assumiu o nome artístico Nico, anagrama de “icon” (no inglês “ícone”), e viajou pela Europa atuando em filmes de Federico Fellini e comerciais televisivos. O divisor de águas da carreira foi a ida para Nova York, abandonando um contrato com Coco Chanel. Em 1967, como protegida de Andy Warhol, gravou o atemporal The Velvet Underground & Nico e hoje seu nome está permanentemente registrado na História.
Só o disco da banana já seria o suficiente para proporcionar fama eterna para qualquer um dos membros do Velvet Underground. Acontece, porém, que Nico, embora sofresse retaliações dos colegas pelo sotaque carregado e por cantar fora do tom, construiu uma breve e interessantíssima carreira solo após ser praticamente expulsa da banda. Entre 1967 e 1985, ela desafiou parâmetros musicais com seis peças tão intrigantes quanto influentes. A maior dessas é, sem dúvida, a aniversariante The Marble Index (1968).
Sua carreira teve início conturbado. A estreia Chelsea Girl (1967) contou com os velvets Lou Reed, John Cale e Sterling Morrison entre os instrumentistas e compositores, além de uma faixa de Bob Dylan e covers de cantores folk da época. Contudo, a intervenção dos colegas e do produtor Tom Wilson frustrou a cantora, que renegou o álbum. Musicalmente, Chelsea Girl segue a linha da delicada “I’ll Be Your Mirror”, composição de Lou para Nico: pop/folk suave, com poucos instrumentos, entre eles violões, flautas e instrumentos de corda, sem percussão.
A virada aconteceria já no ano seguinte. Encorajada por Jim Morrison (The Doors), Nico passou a focar em composições próprias, influenciada por literatura romântica e experiências psicodélicas. Um harmônio, espécie de órgão mais comumente utilizado em igrejas, dado a ela por Leonard Cohen conferiu a linguagem musical que tanto buscava. Segundo o crítico Anthony Carew, o instrumentou exótico lhe despertou mais do que sua própria linguagem artística: Nico inaugurou uma nova dimensão sonora no ocidente.
Exagero? Vamos aos rótulos associados a Marble Index: “avant-folk”, “chamber music”, “drone”, “psychedelia”. Esses termos pouco ou nada dizem sobre a música de Nico, apenas tentam encontrar categorizações compreensíveis para o que ela concebeu no segundo disco de estúdio – e, levando em conta que esta é uma obra extremamente experimental e sufocante, fazem sentido o bastante. No entanto, mais do que outros cantautores, Nico precisa ser testemunhada para se ter noção básica de sua arte.
The Marble Index foi produzido por John Cale na época em que o uso de heroína de Nico estava crescendo. Buscando ser levada a sério como artista, ela pintou as madeixas louras de preto e passou a se vestir dessa mesma cor. Em 2015, Cale disse: “Ela odiava a ideia de ser loira e bonita, e de alguma forma ela odiava ser mulher, porque percebeu que tudo o que a beleza tinha proporcionado a ela fora tristeza.”
O famoso crítico Simon Reynolds sintetizou perfeitamente a persona que Nico assumiu a partir de 1968 com o arquétipo que ele batizou de Rainha do Gelo: “Gelo é o oposto de tudo o que as mulheres devem ser: carinhosas, receptivas. Como Lady Macbeth, a Rainha do Gelo ‘assexua’ a si mesma, obstruindo seus canais lacrimais e suas glândulas mamárias. Ela oferece frio, não conforto. Sua superfície dura é impenetrável. Ela é uma ilha, um iceberg.”
The Marble Index é um convite a essa ilha fria e isolada. “Você pode me seguir? / Você pode seguir minhas angústias, minhas carícias, palpites ardentes? / Nadar e se afogar em misericórdias matutinas?”, Nico provoca em “Lawns of Dawns”, a primeira canção. Sua voz e os sons oscilantes do harmônio evocam uma atmosfera simultaneamente misteriosa, dramática e angustiante. Aqui, ela mais recita do que canta, segurando as últimas estrofes de cada verso tal qual um fantasma que assombra o ouvinte. O sotaque carregado nunca soou tão pertinente.
O clipe de “Evening of Light” foi gravado no quintal da Fun House, a casa dos Stooges, e conta com participação de um jovem Iggy Pop (ele e Nico tinham um caso à época)
Não à toa, Cale diz que o segundo álbum de Nico tem mais a ver com música clássica europeia do que com o rock e folk sessentistas. A desolada “No One is There” traz imagens genuinamente medievais, como no verso “Do outro lado por trás da tela da minha janela / Demônios estão dançando / Em uma paródia crucial”. É possível questionar as estranhíssimas letras – o que seria uma paródia crucial? “Misericórdias matutinas”? -, mas até as construções mais enigmáticas fazem sentido quando o ouvinte se deixa envolver pela atmosfera decadente.
“Decadência”; aí está uma boa palavra para definir The Marble Index. É uma obra que não pertence ao tempo em que foi concebida, ou melhor, não pertence ao nosso tempo. Na amarga “Ari’s Song” (“Veleje, veleje, meu pequeno menino / Deixe o vento encher seu coração de luz e alegria”) e na caótica “Facing the Wind”, em que a voz de Nico é distorcida, ela se põe como uma entidade torturada (seria uma alma penada?) que já deveria ter partido há muito. Para citar um raro paralelo, é um clima muito semelhante a Closer, o álbum final do Joy Division, lançado logo após o suicídio do vocalista Ian Curtis.
Nico cantando “Femme Fatale”, clássica faixa de seu disco com o Velvet Underground, cinco anos antes de sua trágica morte: fantasmagórico
Apesar de ter morrido prematuramente (um ataque cardíaco aos 49 anos), Nico viveu para ver os frutos de sua arte peculiar. Se o Velvet Underground influenciou o punk rock, o pós-punk é todo Nico: a morbidez e a veia gótica de The Cure, Siouxsie & The Banshees, Joy Division e Bauhaus fazem parte da estética semeada por ela ainda nos coloridos anos 60. O tempo passou, mas continua firme no cânone alternativo. Olhe para Chelsea Wolfe, Jenny Hval, Grouper, Pharmakon e Julia Holter, todas “rainhas do gelo” dessa década, com canções e visual notoriamente sombrios. E pensar que foi desconsiderada pelos críticos da época…
O finado Leonard Cohen dedicou duas canções a Nico na obra-prima Songs of Love and Hate (1971). Em “Last Year’s Man”, ele canta “Eu conheci uma senhora, ela estava brincando com seus soldados no escuro / Um por um ela tinha de dizer que seu nome era Joana d’Arc / Eu estava nesse exército (…) / Eu te agradeço, Joana d’Arc / Por me tratar tão bem.” Ele expande essa metáfora em “Joan of Arc”: “As chamas seguiram Joana d’Arc / Enquanto ela veio cavalgando no escuro / Nenhuma lua para manter sua armadura brilhante / Nenhum homem para carregá-la por essa noite nebulosa.” Em ambas, um retrato carinhoso, mas amargo de uma mulher absolutamente independente e irredutível. Para citar novamente The Velvet Underground & Nico, uma femme fatale que não pertencia a seu próprio tempo e, por isso, chegou imaculada ao nosso. Ouçam Nico!