Enrico Souto
É possível que um mortal se torne messias? Sendo este o posto dado a Kendrick Lamar pelo hip-hop, a mensagem que fica ao subir no palco do Grammy para receber seu terceiro gramofone de Melhor Álbum de Rap, em Fevereiro de 2023, é que ele é indubitavelmente humano. Depois um longo hiato, em seu quinto projeto de estúdio, Mr. Morale & The Big Steppers, o artista se apossa desse complexo para mergulhar no mais oculto de seus traumas e, assim, celebrar a beleza de suas imperfeições.
“Há 1855 dias, eu tenho passado por algo”. É com essa localização cronológica extremamente específica que Kendrick Lamar abre alas para o mais épico de seus contos. Esse é o intervalo exato entre a data de lançamento de Mr. Morale & The Big Steppers, de 2022, e DAMN., de 2017 – separados por cinco anos e todos os eventos apocalípticos imagináveis. Esse mapeamento minucioso é a primeira pista de um dos aspectos mais notáveis de seu projeto mais recente e, longe de uma afirmação trivial, intimista. Aqui, o artista contextualiza o espaço e tempo em que suas faixas se inserem, fazendo com que elas traduzam, para além de confissões individuais, conflitos palpáveis à nossa realidade.
Nessas circunstâncias, o álbum, promovido pouco depois da retomada de eventos presenciais no primeiro semestre de 2022, após dois anos de isolamento pela covid-19, foge da típica arte de escape e oferece um olhar clínico sobre eventos que tomaram conta do debate político nessa época. Movimentos antivacina, abuso sexual, violência geracional e outros temas indigestos são pautas constantes, obrigando o público, agora com a ferida aberta, a colocá-los em perspectiva.
Entretanto, nem mesmo tais comentários são gratuitos. Na verdade, esses cenários amplos cumprem, no grande esquema das coisas, o papel de refletir cada uma das ansiedades que assolam seu eu-lírico. Isso porque, assim como todos nós, o ambiente de absoluta vulnerabilidade instituído pela pandemia colocou Lamar diante de si mesmo, na iminência de enfrentar seus maiores demônios internos – ainda mais à vista de que, como o próprio reforça nos primeiros segundos de disco, os últimos anos, em que ele evitou ao máximo os holofotes, foram excruciantes.
E já vinham sendo, inclusive antes desse período. Em 2012, com good kid, m.A.A.d city, o artista foi coroado como a principal voz do hip-hop desta geração e, três anos depois, seja por uma pressão externa ou auto fabricada, ele atribuiu a si mesmo, em To Pimp a Butterfly, o compromisso de salvar o mundo com sua música. Porém, o rapper provou do próprio veneno e pagou o preço de sua jornada solitária em DAMN., descobrindo que, se a responsabilidade de denunciar todas as injustiças do nosso tempo são depositadas nas suas costas, ninguém sobra para orar por você. Uma incumbência individualista, que nos deixa nada além de uma persona trágica, quebrada e cheia de incertezas.
Contudo, Mr. Morale & The Big Steppers chega para encerrar ciclos. No último lançamento de K-Dot sob o respaldo da Top Dawg Entertainment, sua gravadora desde seu início de carreira, o dilema que assombra toda a sua discografia é enfim expurgado em uma viagem por 18 faixas, que totalizam quase uma hora e meia. O catalisador dessa mudança é retratado na forma de terapia, em que o rapper, acompanhado pelo professor espiritual Eckhart Tolle, abre a cabeça diante de nossos olhos.
Esse processo desvela duas facetas de Lamar. Se Mr. Morale, mais um para sua longa lista de alter egos, representa o complexo messiânico do artista, que ainda vê na sua ascensão social a obrigação moral de resgatar sua comunidade, The Big Steppers personifica os traumas que ainda o rodeiam e o oprimem, contraditoriamente isolando-o, da coletividade, para dentro de suas caixinhas pessoais. O disco brinca com esse conceito através das sonoras de sapateado, que surgem como fantasmas assim que alguma de suas angústias volta a acometê-lo.
Desse modo, as duas forças entram em constante disputa, como figuras pousadas em seus ombros, suplicando por sua perturbada atenção. Ambas são encarnadas por dois rappers proeminentes da nova geração: Kodak Black, que interpreta o passado de Kendrick Lamar, sempre o lembrando dos remorsos que ele leva do tempo das ruas; e Baby Keem, seu primo na vida real e, aqui, o porta-voz de seus afetos, responsável por retornar seus pés ao chão. Do íntimo, esse embate toma proporções homéricas, transformando cada um dos colaboradores em personagens primordiais à obra – dos vocais doces de Sam Dew, que ecoam as emoções de Kendrick entre as faixas, até sua esposa, Whitney Alford, que concede sua voz em interlúdios.
Colocar na mão de jovens rappers papéis tão pivotais à sua arte também evidencia uma abertura maior de Lamar para novas sonoridades. Ao passo que DAMN. adaptou as tendências da cena da época ao seu próprio estilo nos hits DNA. e HUMBLE., Mr. Morale & The Big Steppers assume o trap e o R&B contemporâneo por completo. Sounwave volta para a produção criativa do projeto e esculpe canções como N95 e Die Hard aos moldes dos charts, com refrões marcantes e ad-libs retirados diretamente de uma faixa dos Migos. Ao mesmo tempo, a presença de artistas consolidados como Ghostface Killah, do lendário coletivo de rap Wu-Tang Clan, e Beth Gibbons, a doce vocalista da banda Portishead, induz a um choque brutal entre passado, presente e futuro, essencial à diegese do álbum.
Cumprida a profecia de seu álbum duplo, Kendrick Lamar estabelece uma relação não só de oposição, mas também de complementaridade entre as duas partes do projeto, que se espelham em âmbito narrativo, musical e lírico. As primeiras oito faixas, na metade The Big Steppers do disco, colocam o eu-lírico em processo de autoconhecimento através da terapia, em que ele compreende como as diferentes violências com que esteve exposto formaram sua autoimagem hoje. Identificada a fonte de suas aflições, K-Dot se vê preparado para entrar em paz com elas e consigo mesmo em Mr. Morale, desselando um cofre que, até então, esteve sempre lacrado.
Escutar Mr. Morale & The Big Steppers de uma ponta a outra pode soar repetitivo, mas isso é absolutamente proposital. Apesar de delimitado em dois segmentos isolados, Kendrick cria uma dinâmica cíclica entre eles, comunicando sua condição de mudança a partir de nuances. Um exemplo está nas faixas de abertura de ambas as partes: United in Grief e Count Me Out. Apesar de mutuamente dissertarem sobre os problemas que perseguem o artista no presente, à medida que a primeira traz uma lamentação sobre como a fama não curou suas feridas e, pelo contrário, trouxe novas; a segunda coloca esse tópico sob as lentes maduras de alguém que conhece a si mesmo e, agora, está pronto para seguir em frente.
Acima de tudo, a autodescoberta demonstra-se um processo ainda mais desafiador quando, no entorno do disco, Lamar revela dinâmicas sociais muito mais profundas. Experiências traumáticas o formaram como indivíduo na mesma medida em que, conscientemente ou não, ele incita e reproduz essas violências nos afetos que cultivou ao longo da vida. Enquanto, em Father Time, o artista trata do relacionamento intrincado com seu pai e como o amor entre os dois rapidamente se transformou em distância, We Cry Together testemunha os danos disso em uma relação que normaliza sua toxicidade e a traduz em desejo, através de uma performance visceral junto da atriz Taylour Paige.
Afinal, se fomos criados através da violência, é assim que fatalmente nos comunicamos. Nossas percepções de amor, carinho, complacência e lealdade são contaminadas por uma lógica atroz fundada no capital e em opressões estruturais que, o tempo todo, colocam em inquérito as noções de moralidade que construímos. É nesse momento que, em um esforço inverso ao precedente, o artista vencedor do Pulitzer se mune de suas vivências particulares e depara-se com um plano muito maior do que ele.
O disco evoca, em diversas faixas, duas figuras emblemáticas: Oprah Winfrey e R. Kelly. Celebridades notáveis por causas diametralmente opostas, mas que compartilham histórias de profundos traumas na infância. Se a apresentadora precisou fazer voto de silêncio pela própria sobrevivência, escondendo suas dores do mundo e de si mesma, o cantor ressoou essa violência em níveis bárbaros, vitimando a vida de inúmeras mulheres. É um ciclo vicioso e perverso, que se alimenta pelo silenciamento das vítimas e pela formação de novos agressores por meio do abuso.
Kendrick Lamar não se isenta disso. Ao expor o cru de suas falhas e contradições, colocando-se no centro desse fenômeno, o rapper desconstrói sua imagem pública pedaço a pedaço, em uma autópsia que perpassa tanto o cenário interno da narrativa, quanto o contexto em que o projeto se insere. Seja calçando os sapatos de um artista como Kodak Black, que já apoiou Trump e declarou-se culpado por crime de violência sexual, ou pisando em ovos ao tratar sobre sua relação significativa com um tio transgênero em Auntie Diaries, K-Dot induz o erro e permite tornar-se alvo de críticas, se isso significa criar conversas e aprender com elas. Não há espaço para meias palavras: para que essas opressões sejam superadas e seus agentes responsabilizados, é necessário verbalizá-las.
Se for possível abstrair Mr. Morale & The Big Steppers em um único objetivo, seria este. Nossas cicatrizes não são novas e, na realidade, estão enraizadas em feridas que retroalimentam-se há gerações, mas são sistematicamente escondidas para preservar uma suposta estabilidade, enquanto escondem um cenário em que a desumanização é repetidamente injetada e naturalizada. Nessa tomada de consciência, Kendrick Lamar intercambia sua experiência como homem negro com a de outras pessoas que vivem a violência na pele e, em um exercício de pura empatia, propõe uma catarse coletiva, encontrando, na quebra do silêncio, o primeiro passo para interromper esses ciclos de uma vez por todas.
Porém, para tanto, Kendrick Lamar precisa libertar-se antes. E é então que ele, enfim, emancipa-se do título de profeta que lhe foi imputado, mostrando-se, assim como representa a coroa de espinhos de Jesus Cristo – utilizada paradoxalmente como signo na capa do disco –, um encargo santificado e maldito, prometido à trazer paz por meio de um caminho de sangue. No momento em que fazer música – à priori uma válvula de escape – o tornou mais uma vez refém dos tormentos que o afligiram até aqui, o artista nativo de Compton não pensa duas vezes antes de deixar a cultura para trás para cuidar de sua família e seguir o seu coração.
Ao passo que, em To Pimp a Butterfly, K-Dot pedia por auxílio divino de 2Pac para encontrar o propósito de sua arte, hoje ele carrega o discernimento para declarar com todas as palavras: “Tupac está morto, pense por si mesmo”. Se antes o rapper questionava a lealdade dos fãs de forma apreensiva e angustiada, agora ele é capaz de fazer a mesma pergunta com a convicção de que não precisa da validação de mais ninguém. Para o público, ao final dessa odisséia, resta apenas uma proposta. Em um hino ao amor próprio, Kendrick escolher a si é um convite para que o ouvinte faça o mesmo.