A fragilidade e o totalitarismo em A Insustentável Leveza do Ser

Edição feita no Brasil pela Companhia das Letras (Foto: Reprodução)

Isabella Siqueira

Existem algumas obras que se comunicam com o leitor sem qualquer pretensão. Esse é o caso do romance tcheco A Insustentável Leveza do Ser, publicado pela primeira vez em 1984, onde a descrição dos relacionamentos afetivos por Milan Kundera incomoda pela sinceridade. Tendo como pano de fundo o caótico cenário político da Primavera de Praga, ele aborda a complexidade da vida com metáforas brilhantes.

Kundera busca destrinchar o íntimo de dois casais protagonistas: Tereza e Tomas, Franz e Sabina. Mesmo com uma premissa simples sobre desventuras amorosas, o autor consegue apontar muito sobre a vida e tudo o que lhe confere significado. Ao descrever o curso dos protagonistas ele pontua diversos conceitos filosóficos, que vão desde Parmênides a Nietzsche.

Para o filósofo grego Parmênides, o universo é composto de pares contrários; entre eles existe o peso e a leveza. Essa dualidade rege as relações amorosas na obra, e ouso dizer que, a partir daí, ela se torna um clássico atemporal.  A narrativa de Milan Kundera contrapõe a visão de Parmênides sobre essa dualidade. O peso então não seria algo negativo, ao contrário do que acredita o filósofo. Mesmo sendo um fardo difícil de carregar e infligir uma dor insuportável, o peso é o que confere significado à vida. Ele aparece sempre que nos relacionamos.

A leveza para Parmênides seria então o polo positivo. O indivíduo leve dispõe de uma liberdade que o impossibilita de criar vínculos, quase como a habilidade de voar. Contudo, o escritor tcheco questiona se a verdadeira felicidade caminha junto com a ideia de liberdade contemporânea. Assim, a trajetória dos quatro personagens se mistura com tais questões existências. E com uma boa dose de erotismo essas reviravoltas amorosas são descritas de forma única.

A Primavera de Praga foi o período de liberação política que precedeu vinte anos de ocupação na República Tcheca. O clássico de Milan Kundera se dá nesse contexto conturbado (Foto: Reprodução)

Tomas e Tereza, e depois seu cachorro Karenin, são o casal fruto de seis acasos do destino. O polo da leveza é representado pelo cirurgião Tomas, que leva seus encontros sexuais com diversas amantes sempre recusando qualquer comprometimento afetivo real. Contudo, essa recusa acaba quando ele observa o sono de uma jovem que acabará de conhecer. Assim, ele aceita o peso de um amor construído em metáforas.

“Tomas ainda não sabia que as metáforas são uma coisa perigosa. Com as metáforas não se brinca. O amor pode nascer de uma única metáfora.” (página 16)

No momento em que vê Tomas lendo o romance Anna Karenina, Tereza encontra uma saída para sua realidade insignificante no interior da Boêmia. A jovem busca algo que dê significado a sua vida. Por isso, de forma perigosa ela entrega sua felicidade por completo a essa relação. Mas a pressão de se ver como um fardo, as traições do companheiro e os sacrifícios lentamente entristecem a personagem. O íntimo da protagonista é retratado a partir de uma análise psicológica do que representam seus sonhos.

Sabina e Franz são outra representação do oposto peso/leveza. A artista visual é a personagem mais leve da obra, vive sem vínculos duradouros e se desprende de pessoas e locais de forma prática, optando sempre pelo desconhecido. Ela acaba conhecendo o professor universitário casado Franz, que, envolto em idealizações, deseja a leveza de Sabina. Dentro de seu pequeno “Léxico de Palavras Incompreendidas”, a grande particularidade desse casal, Kundera aborda como duas pessoas enxergam diferentes significados para cada aspecto da vida.

O escritor tcheco-francês vive recluso na França há mais de 40 anos (Foto: Reprodução/IstoÉ)

Milan Kundera teve sua cidadania tcheca retirada em 1979 e o best-seller mundial A Insustentável Leveza do Ser teve uma edição no país apenas em 2006. O autor, que foi até 2019 um exilado de seu país natal, tem uma extensa obra que reflete sobre o amor e a política sempre com criticidade ao totalitarismo.

E é no conflituoso ano de 1968, durante a Primavera de Praga, que acontece a trama. A invasão da Tchecoslováquia pela União Soviética é retratada na história de forma direta, com os personagens afetados diretamente pela invasão. As tentativas da população em resistir à ocupação e a luta dos estudantes também são mencionadas no romance, como forma mostrar a repressão e a perda da identidade do povo durante a tomada russa.

“Uma vez não conta, uma vez é nunca.” (Einmal ist keinmal). Com esse provérbio alemão o autor pontua outra reflexão, agora sobre a angústia de se viver uma única vez. Somos livres para escolher o que quisermos, mas ao mesmo tempo uma vida não é suficiente para tentar uma direção diferente. Assim, nesta única vida sem esboço lidamos com as consequências de cada gesto que tomamos.

“Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço.” (página 14) 

Esse romance filosófico conta ainda com um filme lançado 1988 e dirigido por Philip Kaufman, contando com atuações de Daniel Day-Lewis e Juliette Binoche, respectivamente como Tomas e Tereza. Contudo, apesar do reconhecimento mundial e das duas indicações ao Oscar por Melhor Fotografia e Melhor Roteiro Adaptado, o escritor não autorizou outras adaptações de seus livros para o cinema.

Mesmo tendo sido lançado 36 anos atrás, a obra cativa os leitores não apenas pela forte mensagem política, mas também pela visão sensível de Milan Kundera acerca relações humanas, flutuando entre a filosofia e o erotismo. Nesse romance de título tanto encantador quanto confuso, vale sempre uma nova leitura e interpretação pessoal para uma experiência diferente.

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