Nathan Nunes
Em 1952, o cultuado cineasta japonês Akira Kurosawa (Ran) lançou ao mundo Ikiru. 70 anos depois, o pouco conhecido diretor sul-africano Oliver Hermanus (O Rio Sem Fim) se reuniu ao vencedor do prêmio Nobel de Literatura Kazuo Ishiguro, autor de best-sellers como Vestígios do Dia e Não Me Abandone Jamais, para prestar tributo ao longa original através de um remake chamado Living. O resultado dessa empreitada é sentido nas expressivas indicações do filme ao Oscar 2023 de Melhor Roteiro Adaptado para o escritor e Melhor Ator para Bill Nighy (Simplesmente Amor, Piratas do Caribe) no papel principal.
Essa está longe de ser a primeira vez que um filme de Kurosawa é refeito para uma linguagem ocidental. Por Um Punhado de Dólares (1964), por exemplo, é um remake de Yojimbo (1961), enquanto Sete Homens e um Destino (1960) e Vida de Inseto (1998) ecoam diretamente Os Sete Samurais (1954). Até George Lucas diz ter se inspirado em A Fortaleza Escondida (1958) para conceber Uma Nova Esperança (1977). Contudo, é apenas agora que estamos presenciando o debute de Ikiru nessa mesma linha, pois a maioria dos realizadores sempre esteve ciente da grande dificuldade de adaptá-lo para uma nova roupagem. Felizmente, o tributo que Living faz ao clássico mantém a sua essência desde o nome, pois ambas as palavras titulares têm o mesmo significado em tradução: viver.
Os cenários e o período histórico são evidentemente diferentes. Living troca o Japão pós-guerra onde se passa Ikiru pela Londres de 1953, no entanto, ambos se situam na mesma estafante burocracia do mercado de trabalho. No que tange a sua representação em cena, talvez o primeiro se saia melhor em como integra a cultura local com a sensação de aprisionamento do protagonista, ao se utilizar dos tradicionais costumes britânicos de educação e da finesse dos figurinos de Sandy Powell para surtir tal efeito. Ainda assim, tanto um quanto o outro recorrem ao mesmo recurso na direção de arte: o ambiente que sufoca os trabalhadores com pilhas gigantes de documentos ao redor.
Independente da época de produção, fato é que a história naturalmente começa se voltando para um olhar bastante pessimista da burocracia como uma sugadora de almas. Para ilustrar esse ponto, acompanhamos as diversas tentativas de um grupo de mulheres para conseguir aprovar a construção de um parque infantil numa região desolada de Londres. O que se sucede é uma rápida edição de movimento entre um setor e outro, cujas transições laterais (que também aparecem em Star Wars até hoje), organizadas pelo montador Chris Wyatt em Living, prestam homenagem as mesmas que Koichi Iwashita organizou em Ikiru.
Logo nos primeiros minutos de imersão dentro desse universo, somos introduzidos ao personagem principal, um homem idoso que dedicou grande parte de sua vida aos mecanismos do trabalho e se esqueceu de vivê-la no decorrer dos anos. Essa noção fica clara com o diagnóstico de uma doença terminal, que o condena a poucos meses de vida. A cena da descoberta dessa fatalidade funciona como um meio para entendermos a dicotomia entre os filmes.
Em Ikiru, o recebimento dessa notícia pelo burocrata Kanji Watanabe vem acompanhado de uma grande dramaticidade, onde o intérprete Takashi Shimura (Rashomon) incorpora fortes e notáveis expressões de medo e angústia. Já em Living, o protagonista, aqui chamado Rodney Williams, reage de maneira melancólica e triste, mas menos intensa. Imediatamente, a câmera de Hermanus o captura quieto nas sombras de sua sala de estar, como se estivesse completamente engolido por esses sentimentos.
Toda obra artística é produto do seu tempo e, assim sendo, do seu próprio Cinema. O longa de Kurosawa, por exemplo, é carregado de uma teatralidade que remete às raízes do texto na literatura de Tolstói (A Morte de Ivan Ilitch é a maior referência). Além disso, também toma liberdades mais expressivas. Uma delas é a poética, através do uso da narração para situar o espectador no estado de espírito do protagonista, nos confidenciando a informação de sua iminente morte antes mesmo dele ter conhecimento dela. A outra é a comercial, tendo em vista a sua longa duração com ritmo lento, que naturalmente afasta as gerações mais novas.
O remake de Hermanus opta por um caminho oposto, apesar de ainda manter essa notável qualidade poética. Ela se faz presente na trilha sonora melódica de Emilie Levienaise-Farrouch e na cinematografia de Jamie D. Ramsay, que transita brilhantemente entre a dor da escuridão, o calor da boemia e o sentimento pitoresco de aproveitar um belo passeio no parque. Por outro lado, existe uma concisão tão forte na forma como os temas são explorados que os impede de ecoar de modo tão complexo quanto o clássico. O melhor representante disso são os minutos de farra de Williams nas noitadas londrinas ao lado do Sr. Sutherland de Tom Burke, que são comprimidos em breves montagens.
Ainda assim, as aspirações mais sutis de Living não deixam de ter eficiência própria. A cena do jantar entre Williams, seu filho Michael (Barney Fishwick) e sua nora Fiona (Patsy Ferran) é um ótimo exemplo disso. Desde o início, onde vemos Nighy treinando em frente ao espelho para revelar a verdade e falhando, até o desfecho, em que o silêncio prevalece sobre a mesa e o design de som faz rugir cada tilintar dos talheres nos pratos, sente-se perfeitamente o desconforto e as tensões entre os três, tão acumuladas que o simples gesto de pegar uma colher de comida fala mais alto que suas vozes.
Essas sutilezas são a base da interpretação de Nighy e fazem valer a sua indicação ao Oscar. O ator britânico trabalha com gestos muito delicados ao longo de toda rodagem, seja em sua fala vagarosa ou em sua hiper postura de cavalheiro inglês. Contudo, há de ser dito que nenhum elemento de sua performance é tão fascinante quanto o seu olhar, principalmente em uma de suas últimas conversas com a amiga Margaret Harris (Aimee Lou Wood), onde ele finalmente se abre sobre o estado de sua saúde. No decorrer da cena, percebemos a transformação orgânica de seu olhar, conforme ele se conforma com a inevitabilidade de seu desfecho e retoma o ânimo para aproveitar o pouco que lhe resta de vida.
O que se segue, a partir daí, é um terço final que esmiúça as memórias de seus companheiros de trabalho sobre sua vida e personalidade. Enquanto todos os burocratas sufocados por ternos e gravatas chiques tentam chegar a uma explicação lógica para o legado que o protagonista deixou, somos pouco a pouco apresentados a uma imagem belíssima e contemplativa.
Ela acontece no parque que tanto Williams em Living, quanto Watanabe em Ikiru construíram para as crianças de um bairro carente, conforme os desejos das mulheres que foram apresentadas nos minutos iniciais. Isolados em meio a neve, eles permanecem cantando e sentados em um balanço, num contexto extremamente interessante metaforicamente falando. São homens à beira do fim de suas vidas, que escolheram morrer num local que é símbolo de seus estágios iniciais. A cena encanta na sua versão de 52, e também na atual. Logo, percebemos que, independente do momento histórico, de escolhas estilísticas e de diferentes abordagens cinematográficas, a importância de Viver continua a mesma.