Nota Musical – Março de 2022

Arte retangular na cor vermelha escura. No canto direito está a caixa de um CD, este decorado por uma foto de quatro artistas: Charli, ROSALÍA, Karol Conká, e Miley com Anitta. No canto esquerdo, na parte superior, está escrito "nota musical" em branco, depois há a logo do Persona, um olho com a íris na mesma cor do fundo da imagem. Mais abaixo, está escrito em preto "março de 2022".
Destaques de Março de 2022: Charli XCX, ROSALÍA, Miley Cyrus & Anitta e Karol Conká (Foto: Reprodução/Arte: Vitória Vulcano)

O terceiro mês do ano foi o mais movimentado de 2022 até então. Entre perdas inestimáveis para o mundo da Música, o Brasil voltou a receber artistas nos palcos do Lollapalooza e o Oscar 2022 tomou parte, com destaque especial para as apresentações de Beyoncé, Billie Eilish e as do filme Encanto. Quem tomou as manchetes para si, entretanto, foi a morena misteriosa Anitta, que alcançou o posto de canção mais popular do mundo com Envolver

No dia 25 de março, a cantora se tornou a primeira artista latino-americana a alcançar o primeiro lugar da tabela do Spotify Global, que contabiliza os números de reprodução das músicas da plataforma em nível internacional. Desbancando o hit mais recente de Justin Bieber, a música-chiclete de Glass Animals e a nova sensação de Imagine Dragons, Anitta superou o próprio recorde, que anteriormente havia colocado Vai Malandra no top 50 posição da parada musical. Aos poucos, dia após dia, a ambição da conquista virou assunto nacional e juntou tudo quanto era dispositivo para reproduzir a canção da brasileira – e então, ela chegou lá.

Foto retangular colorida do baterista Taylor Hawkins tocando o instrumento em show. Na imagem, vemos Hawkins sentado na bateria, somente com o tom-tom de cor rosa e os pratos da bateria, em cor dourada, à mostra na fotografia, com as duas mãos levantadas enquanto segura as baquetas e sorri. Ele é um homem branco, possui cabelos loiros, longos e lisos, e possui uma barba de cor preta. Ele veste uma regata de cor preta.
Taylor Hawkins tocava bateria com Alanis Morissette quando recebeu o convite para ingressar no Foo Fighters, em 1997; desde então, dividiu o protagonismo do grupo com Dave Grohl (Foto: Entertainment Tonight)

Apesar dos motivos a serem celebrados, não há maneira de começar essa edição do Nota Musical sem lamentar a morte de Taylor Hawkins. No dia 25 de março, com apenas 50 anos, Taylor Hawkins partiu. Para muitos, essa é apenas a metade de uma vida, e, no caso dele, tratava-se de uma pequena fração de tempo em relação àquilo que ele, certamente, poderia fazer – por isso chamamos de “morte precoce”. Atrás da bateria, girando as baquetas, ele foi um símbolo de grandeza, e parecia consenso o fato do músico ser predestinado a fazer sucesso. 

A forma habilidosa de tocar, mesclando técnica e estilo, fizeram com que fosse lembrado como o grande baterista do Foo Fighters, mesmo que o vocalista da banda fosse Dave Grohl – o grande baterista do Nirvana; a verdade é que Taylor Hawkins foi o único capaz de nos fazer esquecer que haviam dois grandes bateristas na banda. Nos shows do grupo, era comum os momentos em que se levantava e deixava Grohl assumir o instrumento, enquanto ele dominava o microfone e demonstrava todo seu virtuosismo vocal em meio a total desenvoltura com o público. Foi um genuíno artista, daqueles que nos lembramos como memoráveis.

Por essa razão, tornou-se uma influência clara a todos que desejavam aprender a tocar bateria. Dono de um jeito muito particular – verdadeira definição de personalidade –, mantinha como principal característica o sorriso aberto, sem ressalvas em demonstrar a alegria, de modo que, mesmo enquanto tocava, o sorriso ainda estava presente. É essa imagem que manteremos em mente: o fantástico baterista do Foo Fighters, tocando o instrumento, sorrindo e rodando suas baquetas, enquanto tudo se apaga após um imenso clarão. 

Foto do cantor Tom Parker sorrindo, ele é um homem adulto branco, de barba e cabelos raspados e veste uma camiseta preta. O fundo da imagem é claro.
Outra grande perda de Março: com apenas 33 anos, Tom Parker, integrante da banda The Wanted, não resistiu e faleceu em decorrência de um tumor cerebral (Foto: The Wanted)

O Foo Fighters teria encerrado os 3 dias do Lollapalooza 2022, que tomou o Anhembi de sexta a domingo, entre 25 e 27 de março. Retornando depois de dois anos de cancelamento por conta da pandemia, o evento trouxe nomes internacionais como Machine Gun Kelly, A$AP Rocky, The Strokes, Alessia Cara, MARINA, Jack Harlow, Kehlani, e nacionais como Jão, Jup do Bairro, Marina Sena, Pabllo Vittar e Gloria Groove. O destaque absoluto, no entanto, repousa nos ombros de Doja Cat e Miley Cyrus. Depois de terem shows cancelados na América Latina, as duas chegaram com bastante energia acumulada para o espetáculo no Brasil.

A rapper encantou com os hits virais e com a melhor peruca da turnê, enquanto a roqueira admitiu o cansaço e o luto frente à morte do baterista do Foo Fighters (que cancelou a apresentação no festival pelo luto de Taylor Hawkins). Cyrus pintou e bordou no palco, explorando todos os sucessos que a consolidam como um camaleão musical. Do pop rock de 7 Things ao country de The Climb e o pop trap de We Can’t Stop, a loira encontrou espaço para cantar Boys Don’t Cry com Anitta, abençoar o matrimônio de um jovem casal smiler e anunciar, de surpresa, um disco ao vivo.

Foto do show da cantora Doja Cat no Lollapalooza 2022. Ela é uma mulher negra, magra, de peruca com mechas rosas e uma roupa preta e rosa, com calcinha rosa por cima do shorts preto. Ela segura o microfone rosa com a mão esquerda e olha para a frente. Ao fundo, vemos um telão com vários pixels.
Uma semana depois de cantar no Brasil, Doja Cat venceu o primeiro Grammy da carreira, ao lado de SZA por Kiss Me More (Foto: Isabella Zeminian)

Uma semana depois, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas realizou a 94ª edição do Oscar. Houve discursos emocionantes, prêmios históricos e muita música. Depois de abandonar as canções ao vivo em 2021, dessa vez os números fizeram parte da cerimônia principal. Beyoncé abriu o show, diretamente do bairro de Compton, em uma das quadras onde as irmãs Venus e Serena Williams treinavam quando crianças. A artista performou Be Alive repleta de conceito para apresentar uma das faixas indicadas da noite, mas a única vitória do filme das tenistas foi na categoria de Melhor Ator para Will Smith.

Reba McEntire apareceu para agraciar o público com sua versão melancólica e esperançosa de Somehow You Do, canção proveniente do filme Four Good Days. Por parte de Encanto, Sebastián Yatra lamentou a dor de Dos Oroguitas cercado por um cenário simplório, e o elenco todo da animação se reuniu para performar o sucesso We Don’t Talk About Bruno, com o toque extra de Megan Thee Stallion, Luis Fonsi e Becky G. Para fechar o combo, Billie Eilish e FINNEAS arrasaram na interpretação de No Time To Die, a eventual vencedora da noite, fechando um ótimo ciclo para as aventuras de Daniel Craig como James Bond.

Arte em montagem com uma mulher ao fundo, de cabelos castanhos na altura dos ombros e blusa branca, e no lugar do seu rosto está colada uma imagem quadrada de uma pessoa sem camisa e de calças jeans. No lugar dos peitos, está uma listra branca.
Muitos meses depois de fazer vontade dos fãs com trechos da canção no TikTok, Leith Ross liberou os menos de 2 minutos da perfeita We’ll Never Have Sex, com direito a videoclipe com clima de formatura (Foto: Leith Ross)

“Você costumava me conhecer, mas agora não mais”

Agora partindo para os lançamentos do mês, não teve ninguém mais aventureira que a britânica Charli XCX. No 6º álbum da carreira (e o último requerido obrigatoriamente com a gravadora que muito a podou), ela encapsula referências do pop, do hyperpop e da música eletrônica dos anos 1980. O conceito por trás de CRASH é a criação de uma “personagem” sedenta pelo sucesso, que acaba vendendo sua alma para o demônio, com referências ao filme Crash (1996), de David Cronenberg, baseado no livro homônimo de J.G. Ballard

Mas indo além do que a diva pop almeja, o CD se lambuza nas entranhas do gênero, com baladas mais lentas, rendições aceleradas e recheadas de composições sinceras e brutais, além de parcerias para tirar o chapéu. Junto de Rina Sawayama, Christine and the Queens, Caroline Polachek e A.G. Cook, Charli melhora a sinceridade de Charli (2019), a violência de Pop 2 (2016) e a vulnerabilidade de how i’m feeling now (2020). Não à toa, ela aparece toda estrupiada na capa, vítima de um acidente que tirou mais do que apenas algumas gotas da água da vida.

Quase que rebatizada, a popstar não encontra limites ou muros concretos demais que a impedem de demolir o cenário. Nas faixas extras, tão boas que mereciam já estar incluídas desde a versão padrão, Charli exorcizou essa relação que a levou do céu ao inferno. Primeiro nomeado como Sorry if I Hurt You, o conceito do disco mudou com a ideia da colisão da faixa inicial, mas o pensamento original ganha vida nas músicas especiais. 

Capa do álbum CRASH Deluxe, de Charli XCX. Na imagem quadrada colorida, Charli está com os dois joelhos sobre o capô de um carro, olhando através do vidro rachado para a câmera que está dentro do veículo. Ela é uma mulher branca, possui cabelos longos e pretos, e está vestindo somente um biquíni de cor branca. Há uma mancha de sangue vermelho descendo pelo topo de sua cabeça. O sangue escorre por seu corpo todo. Ao fundo é possível ver o céu azul.
Ainda em março, chegou o Deluxe do projeto, com uma capa-irmã tão volátil e intrigante quanto a original (Foto: Warner Music UK Limited)

“Ser uma popstar nunca dura”

Companheira de automobilismo, ROSALÍA finalmente concluiu sua corrida em direção ao seu terceiro disco. O veículo é MOTOMAMI, apresentado há alguns meses como a sua obra mais íntima até o momento, numa introdução que havia causado desconfiança do público que até então tinha apenas entrado em contato com os singles SAOKO e CHICKEN TERIYAKI. Mesmo em roupagens mais sombrias do que a sonoridade solar de El Mal Querer (o aclamado disco antecessor, de 2019), as músicas escolhidas para comercializar o disco ainda eram exímios hits da estrela pop espanhola, que em muito se aproximam da lírica do trap para suas composições mais bem-sucedidas. A surpresa, no entanto, veio quando os singles foram posicionados em meio ao resto da tracklist do disco.

Lá, tudo corresponde ao sentido arquitetado pela apurada concepção artística de ROSALÍA. Entre composições dadaístas (Abcdfg), que orientam as referências à sua cultura original (BIZCOCHITO), expressam a estética sonora do disco (CUUUUuuuuuute) e seus desabafos sinceros e doloridos (DIABLO), à mesma medida que exalam sua autoconfiança (COMO UN G), o disco não tem medo do maximalismo para representar a nova era de sua artista. À flor da pele e decepcionada com a fama, ela canaliza suas pulsões numa vontade ambiciosa de ir além. E com a força potencial de MOTOMAMI, ROSALÍA com certeza chegará ao seu destino final.

“Eu não preciso disso pois me machuca”

No lado dos meninos, Rex Orange County ostentou uma das capas mais singelas do ano, unido a um dos discos mais brandos. Vindo de um poderoso Pony (2019), resultando em uma turnê cancelada, encapsulada por Live at Radio City Music Hall (2020), o cantor joga muito mais seguro do que poderia em WHO CARES? e falha em se destacar. A parceria com Tyler, The Creator não ilumina o bastante do trabalho, que soa como um disco de descartes, longe de atingir a jugular da tristeza como Alex se acostumou a fazer no passado. 

Na soma positiva, a banda Wallows lançou Tell Me Tell Me That It’s Over, álbum que honra o legado sentimental do grupo comandando por Dylan Minnette, mas nunca repetindo as exatas batidas que os consolidaram em músicas como Are You Bored Yet? Aqui, as letras recaem nos temas de sempre: desilusão, amores enfraquecidos e a sensação latente de solidão; em Hurts Me, o lamento se transforma em cântico de guerra e a finalização em paralelo com Guitar Romantic Search Adventure teima a chutar o coração partido em direção à Lua. 

“Você nunca esteve no céu. Esteve?”

Antes de presentearem Olivia Rodrigo com um Grammy de Artista Revelação (mas, sobre os gramofones, você só lerá mês que vem!), a dupla Megan Thee Stallion e Dua Lipa serviu ao mundo a mais doce das tortas, entregando muita sensualidade e poder na mistura de pop e rap que guia o single Sweetest Pie. A música, por sinal, se tornou a melhor estreia na Billboard Hot 100 de toda a carreira de Lipa, e veio acompanhada de um clipe divertido, repleto de efeitos especiais.  O outro duo do mês, Camila Cabello e Ed Sheeran, transformou Bam Bam em mais uma  investida genérica da cubana, antecedendo o lançamento de Familia

GAYLE, uma das candidatas mais fortes à sucessão de Rodrigo no Grammy do ano que vem, também aproveitou o mês para sustentar sua caminhada até lá. A dona do viral abcdfu lançou seu EP de estreia no formato que promete a consolidar como o próximo fenômeno do pop. Em a study of the human experience volume one, a jovem estadunidense de apenas 17 anos segue os passos da voz de drivers license ao empregar influências do rock e punk nos seus desabafos adolescentes. Além do primeiro single e da mais recente música de trabalho ur just horny, o destaque vai para as baladas inéditas luv started e kiddie pool, que denotam o potencial vocal e musical de GAYLE.

O nome promete dar trabalho para Normani, que também vem aspirando seu lugar na premiação da Academia de Gravação e ensaiando o lançamento de seu disco de estreia solo. Quando deixou o Fifth Harmony, a artista investiu em colaborações com Sam Smith (em 2019) e Megan Thee Stallion (em 2020), sendo a mais recente com ninguém mais ninguém menos que Cardi B (de 2021). Sozinha, ela emplacou Motivation com um refrão pop chiclete há três anos, e agora retorna para o R&B sedoso de Fair. O novo single pode não ter o mesmo impacto do que o primeiro ato musical de Normani, mas com certeza amplia as possibilidades da artista para o seu futuro promissor.

Cena da série Euphoria mostra o personagem Elliot tocando violão e olhando pata baixo. Ele é um jovem de cabelos encaracolados escuros com pontas claras, usa blusa laranja e tem uma tatuagem de diamante ao lado do olho direito.
Falando de adolescência, o fim de Euphoria rendeu mais uma canção original de destaque na trilha da série: Elliot’s Song, interpretada por Dominic Fike e Zendaya (Foto: HBO)

“Lembra do que você pensava ser o luto antes de receber a ligação?”

Do desapontamento à meca do gênero, e como de costume quando o assunto é Stefani Germanotta, mais uma faixa unreleased  de Lady Gaga foi vazada na íntegra por meio da internet. O material da vez é Private Audition, música que flerta com a sonoridade do álbum de estreia The Fame e segue as fórmulas do sucesso do pop chiclete impulsionado nos anos 2000. Madonna, por outro lado, conseguiu elaborar o remix do remix de Frozen, hit do álbum Ray of Light e recente sucesso do TikTok, ao lado do rapper nigeriano Fireboy DML. Para a alegria de alguns fãs, Frozen (Fireboy DML Remix) ainda foi contemplado com um clipe bem bonito – embora seja um vídeo bastante simples.  

De surpresa, no último dia do mês, a Rainha do Pop ainda se juntou à rapper estadunidense 070 Shake para lançar um novo remix da faixa. Celebrando 40 anos de carreira, Madonna resolveu dar um protagonismo quase total à jovem cantora. A veterana, vale destacar, acaba investindo ainda mais na parte visual deste lançamento, divulgando um videoclipe em que as duas artistas aparecem deslumbrantes e, em momentos pontuais, dirigindo em alta velocidade.

Cena do clipe Secrets from a Girl, de Lorde. A cena é de dia e ensolarada, mostra 3 versões da Lorde se apoiando. Da esquerda para a direita vemos sua versão de branco e batom escuro, a sua versão de cropped e saia vermelha e a sua versão de blusa florida e cabelos presos.
No clipe de Secrets from a Girl, Lorde retorna à praia paradisíaca para dançar ao lado de suas versões passadas; com direito a referências as eras Pure Heroine e Melodrama, esse é o quinto dos hipotéticos 7 vídeos que a kiwi prometeu (Foto: Universal Music New Zealand)

“Só precisamos da sua conformidade”

O cenário do rock foi sacudido por In/Out/In, do Sonic Youth. Nas cinco canções (quase inteiramente) instrumentais – gravadas entre 2000 e 2010 – que compõem In/Out/In, o grupo estadunidense aprofundou e expôs sua química. Embora o disco possa soar como uma espécie de jam session, é perceptível o entrosamento dos integrantes, elevando o disco a algo maior – principalmente para a própria banda. Em entrevista ao TIDAL Magazine, o guitarrista Lee Ranaldo disse não se tratar de “jams”, mas sim de “extrapolações”. 

De qualquer forma, “jam” poderia realmente simplificar o que Sonic Youth fez nesse (quase) EP, pois, historicamente, a banda sempre extrapolou e investiu em experimentações – é exatamente o que faz pessoas ao redor do mundo amarem o grupo por sua criatividade e abordagem sonora ou afastarem-se, alegando tratar-se de uma barulheira desnecessária. Ou se ama ou se odeia, mas In/Out/In é para aqueles que amam. 

Foto retangular colorida da banda Sonic Youth. Da esquerda para a direita, estão Lee Ranaldo, Mark Ibold, Kim Gordon, Steve Shelley e Thurston Moore. Ranaldo é um homem branco, possui cabelos grisalhos e lisos, veste um cachecol de cor cinza e uma blusa de cor azul. Ibold é um homem branco e loiro, e veste uma jaqueta de cor azul escuro. Gordon é uma mulher branca, possui cabelos loiros e está sorrindo. Ela veste uma camiseta de cor branca e uma blusa de cor preta. Shelley é um homem branco e loiro, ele veste um sobretudo de cor preta e uma camisa de cor verde. Moore é um homem branco e loiro, o maior de estatura entre todos da foto, e veste uma jaqueta de cor verde. Ao fundo é possível ver uma cidade nublada.
Em entrevista, o guitarrista Lee Ranaldo e o baterista Steve Shelley revelaram que o Sonic Youth está trabalhando em uma edição comemorativa do aclamado Washing Machine (Foto: Three Lobed Recordings)

“Tão quieto que posso ouvir que a geladeira está ligada”

Mas os destaques no campo dos discos foram para as regravações e relançamentos. No Brasil, em comemoração aos 50 anos da obra-prima de Caetano Veloso, a cantora paulistana Graziela Medori resolveu revisitar o cultuado disco Transa, de 1972. Dessa imersão, surgiu Transando o Transa, releitura que transforma as canções de Caê em um rock revigorado e nada convencional.  Enquanto no exterior, o clássico álbum The Bed Is In The Ocean (1998), da banda estadunidense de jazz-rock Karate, foi relançado em março de 2022, e ganhou uma edição inédita em vinil; o grupo também anunciou sua primeira turnê desde 2005

Karate se consolidou na cena post-hardcore dos anos 1990, e misturou de forma bastante interessante elementos do jazz com o rock alternativo. As canções do álbum são atmosféricas porque mantêm uma certa tensão, como na primeira faixa, There Are Ghosts, que parece estar sendo construída pela primeira vez à medida em que escutamos. Até certo ponto, o trabalho de Karate lembra a Fugazi de Instrument Soundtrack (1999).

“Não seja indelicado” 

Para os singles, Março foi preenchido pelo retorno de vários nomes consolidados nas paradas. Poster Child foi o segundo lançamento do Red Hot Chili Peppers para promover Unlimited Love, álbum que chegou às plataformas em 1º de abril. A canção segue a cartilha Chili Peppers: guitarra que abusa do wah-wah, baixo funkeado e a bateria com notas fantasma na caixa, acompanhada pelo ritmo contínuo do hi-hat fechado. A voz de Anthony Kiedis vem na sequência, embalando todo esse instrumental. É um funk rock muito bem feito, mas nada demais em relação às outras canções do grupo.

O Pixies também deus as caras e lançou Human Crime, canção que veio acompanhada de um videoclipe melancólico, embalado por uma sensação de nostalgia e filmado em uma boate em Los Angeles, com direção da baixista Paz Lenchantin. A própria música tem um efeito hipnótico particular, que consiste na guitarra vibrante de Joey Santiago, do baixo conciso de Paz, dos vocais hipnóticos de Black Francis e das adoráveis ​​execuções de bateria de Dave Lovering. O refrão repete a letra don’t you be unkind (não seja indelicado), cujos trechos são retomados em áreas diversas ao longo da execução, criando uma espécie de transe. 

Foto retangular colorida da banda Pixies. Da esquerda para a direita estão Black Francis, Joey Santiago, Paz Lenchantin e Dave Lovering. Francis é um homem branco e calvo. Ele veste óculos escuros, uma camisa xadrez azul e preta, calça preta e sapatos pretos. Ele está semi-agachado com as duas mãos sobre o joelho direito. Santiago possui um cavanhaque grisalho, e é um homem de pele parda, vestindo uma boina de cor azul, uma camisa florida, um colete social de cor azul, na mesma tonalidade da boina, calça jeans azul e um sapato preto. Ele está com a mão direita sobre as costas de Black Francis. Paz Lenchantin é uma mulher branca, possui cabelos pretos e longos, com uma franja que cobre sua testa, e veste uma camisa florida amarela, um shorts de cor preta, meia-calça de cor preta e um sapato também de cor preta. Ela está levemente inclinada para a sua direita, com a mão direita sobre o ombro esquerdo de Joey Santiago. Lovering é um homem branco e calvo. Ele possui uma barba branca, utiliza óculos de grau transparente, veste uma blusa de cor preta, calça jeans de cor cinza e uma bota de cor preta. Ele está somente com os olhos indicando para a direita e com as duas mãos para trás de suas costas.
Os Pixies estão na ativa desde 1986, e seu primeiro álbum foi o clássico Surfer Rosa, mas o sucesso considerável veio quando a canção Where is my mind? integrou a trilha sonora do filme Clube da Luta (Foto: Pixies Recording/BMG)

“Aproxime-se agora, deixe-me contar uma mentira”

Após ter lançado sua declaração de amor ao delta blues e ter feito um verdadeiro tratado sobre suas origens no ano passado, o The Black Keys retornou com o single Wild Child. A faixa antecede o lançamento de seu próximo álbum, Dropout Boogie – previsto para 13 de maio –, que dessa vez promete músicas originais e não com versões de clássicos do blues, como o antecessor. Com os vocais expressivos e dominantes de Dan Auerbach, e a guitarra mais funkeada que o normal, a música oscila entre apenas dois acordes, mas The Black Keys preenche cada momento com bastante energia na canção que remonta aos seus anos de ouro e de auge comercial, com Brothers (2010) e El Camino (2011).

Já com uma pegada mais “eletrônica”e bem menos pesada que o trabalho anterior, Compliance foi o segundo single divulgado pelo Muse para promover o próximo álbum do power trio, Will of the People, com lançamento previsto para 26 de agosto. No comunicado de divulgação, Matt Bellamy (vocalista da banda) escreveu: “Compliance é sobre a promessa de segurança e tranquilidade que as entidades poderosas tentam nos vender durante tempos de vulnerabilidade. Gangues, governos, demagogias, redes sociais, algoritmos e religiões nos seduzem com promessas falsas, mentiras e contos confortáveis. Eles querem que nos juntemos a sua visão fechada de mundo em troca de obediência, e que ignoremos nossas vozes internas da razão e compaixão. Eles só precisam da nossa Submissão.” 

As letras do Bellamy sempre são rodeadas de referências às teorias de conspiração, cenários pós-apocalípticos e pequenos grupos poderosos que dominam o mundo – basta ouvir MK Ultra, do álbum The Resistance (2009). Nesse quesito, a canção não soa inovadora, e na verdade, tudo vem indicando que o novo álbum da banda seguirá os mesmos caminhos do antecessor, Simulation Theory (2018), que continha canções falando sobre algoritmos e propaganda, além de uma estética cyberpunk

“As escolhas sempre foram um problema para você”

Para as mídias do visual, mais especificamente a série De Volta Aos 15, da Netflix, estrelada por Maisa Silva e Camila Queiroz, os artistas Pitty, Lúcio Maia e Rica Amabis lançaram Admirável Chip Novo (2022 Remix): uma verdadeira repaginação do hit dos anos 2000. Quem também entrou na TV foi Thom Yorke, com a linda canção que compôs para a sexta temporada do seriado Peaky Blinders. A faixa 5.17, que dura 4 minutos e possui somente 10 versos, é formada somente por voz e piano, algo muito característico das trilhas compostas pelo veterano. Imparável, Yorke continuou a todo vapor com Skrting On The Surface, o terceiro single divulgado por The Smile, seu projeto paralelo ao lado de Jonny Greenwood, do Radiohead, junto a Tom Skinner, baterista do Sons of Kemet. 

A música não é nova: ela já foi tocada ao vivo com Atoms for Peace, projeto de Yorke com Flea, do Chili Peppers; porém, sumiu por mais de uma década e voltou totalmente repaginada. Diferente da versão original, embalada somente por piano e a melancólica voz de Thom Yorke, a releitura vem acompanhada dos arpejos de guitarra de Jonny, junto à bateria limpa de Skinner. Essa poderosa junção faz relembrar o Radiohead de In Rainbows (2007), e a canção ainda ganhou um belo clipe em preto e branco, gravado em filme 16mm e dirigido por Mark Jenkin, vencedor do BAFTA pelo longa Bait (2019). 

E por falar em música antiga, Opiate² é a regravação da canção de 1992, lançada pelo TOOL em homenagem aos 30 anos do EP Opiate. Nessa “versão estendida”, com 9 minutos e 54 segundos de duração, a banda de metal alternativo dá um novo tratamento à canção. A faixa é atmosférica e psicodélica, cuja diferença em relação à primeira versão consiste principalmente na guitarra de Adam Jones, que aqui está muito mais encorpada e expansiva – na versão inicial, havia momentos que beiravam quase o silêncio; nesta, nada fica quieto nunca. Os demais instrumentos também ajudam a preencher o vácuo que se manteve na versão de 1992.

Foto retangular colorida da banda Terno Rei. Na imagem, da esquerda para a direita, estão o vocalista Ale Sater, o guitarrista Bruno Paschoal, o guitarrista Greg Maya e o baterista Luis Cardoso. Eles estão em um estacionamento aberto, e todos estão olhando fixamente para a câmera. Ale Sater é um homem de pele parda, possui cabelos lisos de cor preta e veste uma camiseta preta e um casaco de cor marrom. Ele está com as mãos nos bolsos do casaco. Bruno Paschoal é um homem branco, possui cabelos lisos curtos, penteados para o lado, e utiliza óculos escuros e veste uma blusa de cor azul. Greg Maya é um homem branco, possui cabelos lisos um pouco abaixo das orelhas, utiliza um boné de cor cinza e veste uma jaqueta de gola alta de cor preta. Luis Cardoso é um homem branco, o maior entre os 4, e veste uma camiseta polo de cor vermelha com uma listra horizontal à altura da barriga em cor preta. Ele possui olhos azuis e o cabelo platinado.
Em seu 4º álbum de estúdio, a paulistana Terno Rei explora ainda mais sua vertente indie rock, relembrando os anos 1990 (Foto: Fernando Mendes)

“Eu quero te lembrar dos dias da juventude”

No indie brasileiro, Gêmeos se consolida como o melhor álbum da Terno Rei até agora. É um disco retrô que explora a nostalgia, provavelmente aquela que reflete a adolescência dos seus integrantes, durante os anos 1990 – o que em alguns momentos soa como algo idealizado, mas se garante musicalmente. Ao mesmo tempo, o álbum questiona a pressa e o imediatismo contemporâneo, olhando para esse passado nem tão distante assim. Isso fica evidente nas canções Internet e Trailers. Embora seja um álbum com 12 músicas, ele dá a impressão de ser bastante curto, e dura pouco mais de 35 minutos. 

Gêmeos mantém diversos elementos que a banda trouxe em álbuns anteriores, como os sintetizadores – muito utilizados em Violeta (2019) –, que são quase os protagonistas de Sorte Ainda, abrindo espaço para um tratamento ainda mais indie e deixando um pouco o dream pop de lado (em trabalhos passados, a ordem foi contrária). Os clipes das faixas Dias da Juventude e Difícil recebem um filtro esverdeado, lembrando os clássicos filmes dos anos 1990 de Wong Kar-Wai – em especial Fallen Angels (1995) –, cuja câmera desorientada é uma das marcas registradas. 

“Sempre que tento, descubro que não consigo descrever você”

Econômico como Terno Rei, Zeeba trouxe poucas faixas inéditas para o repertório de seu novo álbum, Tudo ao Contrário. Por outro lado, é animador saber que esse é o primeiro trabalho em que o artista explora bastante suas habilidades com a língua portuguesa. Ao longo de 10 canções, ainda há espaço para colaborações com nomes como OUTROEU, Carol Biazin e Mallu Magalhães. 

E respeitoso como Zebba, o novo trabalho de Oso Oso é um disco de indie rock com pinta de experimental desde o início. Sore Thumb foi lançado exatamente um ano depois da morte do guitarrista, Tavish Maloney, e soa como uma homenagem. Devido à morte de Maloney, o projeto não foi finalizado, o que transforma o disco em um álbum inacabado – embora nunca soe incompleto. A capa do CD aponta essa perda, refletindo uma ausência de pessoas no ambiente. É uma sensação esquisita, mas que ganha vazão através da Arte.

“Mas eu nunca vou recuperar o que perdi”

Navegando a boa vida das premiações e do prestígio no mundo do Cinema, a banda HAIM movimentou Março. Com videoclipe dirigido por Paul Thomas Anderson, Lost Track foi lançada pelas irmãs no primeiro dia do mês. A canção possui um baixo envolvente, mas a estrela – musical e do clipe – é Danielle Haim, que transpassa emoção na sua forma de cantar, sempre verossímil. Antes de seu lançamento oficial, entretanto, o clipe foi transmitido em salas de cinema que exibiam Licorice Pizza, filme de PTA indicado a 3 Oscars e estrelado por Alana Haim. 

Além das roqueiras, o Arcade Fire lançou The Lightning I, II, uma amostra do que será encontrado no álbum WE. Prenunciando o lançamento previsto para 6 de maio, o single resgata o Arcade Fire espirituoso de Neon Bible (2007), em especial das canções Antichrist Television Blues e The Well and the Lighthouse. O piano e os sintetizadores dominam a música, em meio às vozes melódicas de Win Butler e Régine Chassagne, cantadas simultaneamente. The Lightning I, II também marca a saída de Will Butler, irmão do vocalista Win. 

Foto da cantora Arooj Aftab em tom escuro e nebuloso, ela segura um microfone e canta olhando para a frente. Ela tem os cabelos presos e usa uma regata escuro. No canto esquerdo inferior está o logo em branco da VEVO.
Ensaiando uma aproximação mais direta com a música alternativa, Arooj Aftab lançou o single Udhero Na, que mescla suas tradicionais harpas e vocais macios ao baixo decidido e guitarras suaves (Foto: Arooj Aftab)

“Então me diga onde depositar o meu amor, devo esperar o tempo fazer o que ele faz?”

Outro nome que não deixa a Música Alternativa sossegar, Phoebe Bridgers brindou os fãs com uma versão gravada em Sound City, da canção Chinese Satellite. Mas quando o assunto é mimo para os aficcionados, ninguém entrega recompensa mais proveitosa que a fada mística Florence Welch e suas Máquinas. Em fevereiro, o lançamento do single King levantou suspeitas de um novo álbum da banda, e o anúncio do quinto registro de estúdio, Dance Fever, veio acompanhado da canção Heaven Is Here. Três dias depois, My Love se juntou a tracklist, que contará com 15 faixas. 

Primeira música que Florence escreveu em confinamento, desde seus solenes versos ao seu poderoso instrumental, o single é a catarse mais intensa do interior de Welch. O clipe da canção, que se destaca pelo místico padrão performático, reforça o êxtase causado pela intensidade na qual a cantora se entrega à faixa. My Love, em contrapartida, remete a trabalhos passados da banda e explode num refrão dançante que combinado ao inigualável vocal de Florence deixa a sensação de que a alma sairá do corpo para seguir a canção. 

Retrato da cantora Karol Conká. Fotografia retangular vertical, com fundo vermelho e laranja. Karol ocupa quase toda a imagem. Ela é uma mulher negra, está de lado, especificamente voltada para seu lado esquerdo, exibe um penteado que remete ao cabelo da figura grega Medusa, segura o braço esquerdo com a mão direita e exibe anéis e uma unha dourados, todos ornamentados com pedrarias.
Ela voltou do Paredawn (Foto: Jonathan Wolpert)

“Minha realidade não exige perfeição”

Embora seu disco tenha sido lançado no último dia de Março, o rap do mês tem como rainha a inigualável Karol Conká. Em seu novo álbum de estúdio, Urucum, a artista reuniu principalmente músicas escritas após a conturbada participação no BBB 21, mas não se limitou tematicamente às questões vivenciadas no reality show –  Dilúvio e Paredawn, por exemplo, ficaram de fora da tracklist definitiva. Na verdade, o mais recente trabalho da Mamacita, que mescla diferentes sonoridades, indo do soul ao baião, passando pelo afrobeat e o pagodão baiano, constrói uma jornada de autoconhecimento e cura, colocando em evidência as camadas complexas e humanas que atravessam a figura da artista. 

Coloquei nessas músicas o que o meu coração falava. Muitas pessoas me perguntavam se eu viria com um rap ‘pesadão’, mas eu não sabia como seria a cara desse álbum. Nós produzimos sem planejamento, nome, tema, ritmo. Só fomos musicalizando de uma forma muito natural e improvisada. Nesse processo, eu pensava o quão natural é termos uma personalidade com várias camadas, então decidi que deixaria que elas transparecessem nas músicas”, revelou Karol ao jornal Estado de Minas.

Dando sequência a Zulu, Vol.1: De Onde Eu Possa Alcançar o Céu Sem Deixar o Chão (2019), Zudizilla chega agora com o álbum Zulu: de César a Cristo (Vol.2). No novo trabalho, o rapper narra sua vivência enquanto um homem preto, projetando também sonhos e possibilidades de futuro. As 12 faixas do projeto, vale destacar, são marcadas por um número expressivo de colaborações, trazendo nomes como Emicida, Cronista do Morro e B.art. Além dele, foi a vez de Edgar reunir três músicas inéditas e um remix no EP Ultravioleta. O artista é conhecido, dentre outros fatores, pela colaboração com Elza Soares no álbum Deus É Mulher (2018), e também apareceu dentre as atrações do Lollapalooza 2022, acompanhado de sua coletânea que tem um caráter extremamente político. 

Banner da música Agora Vai (Educação Financeira), mostra os cantores Xamã, Lia Clark e Bia Ferreira ao centro e o logo do Mercado Pago no canto inferior direito.
Agora Vai (Educação Financeira) pode até ser uma jogada de marketing do Mercado Pago, mas a união de Xamã, Lia Clark e Bia Ferreira resultou em uma das letras mais interessantes das músicas de propaganda dos últimos tempos [Foto: Mercado Pago]
“A tristeza te pega até o osso?”

Se o rap foi da Mamacita, o R&B do Mês da Mulher tem incrustado o nome de Nilüfer Yanya. PAINLESS é apenas o segundo álbum da britânica, mas já se consolida como um dos grandes projetos deste 2022 que mal começou. Um ponto forte do disco é a forma como Yanya reduz o caos ao íntimo e particular, de forma a construir melodias singelas, mas acompanhadas por letras avassaladoras. O título soa irônico, e é como se, após uma lista infindável de dores esmiuçadas ao longo das 12 canções, a cantora revelasse que tudo foi “indolor”. Diferente de seu ótimo álbum de estreia – Miss Universe (2019) –, PAINLESS parece ter ideias melhor resolvidas. 

Enquanto as canções oscilam entre o rock e o pop melódico, o projeto conta uma história com começo, meio e fim; é como se ela nos dissesse que para cada situação é necessário uma maneira diferente de narrar. Esses estilos alterados ganham uma unidade através da voz da londrina, que as embala em falsetes – sempre usados com moderação –, enquanto aponta para protagonistas que sucumbem a, talvez, um relacionamento complexo. Não parece ser por acaso que o álbum se encerra com a expansiva – e até “alto astral”, em comparação às demais – anotherlife, canção que lembra a Lorde de Solar Power (2021). Ao término de PAINLESS, paira a sensação de desejar um outro tipo de vida, mas é algo transposto de forma sutil, como todos os palpites que Nilüfer Yanya deixa no ar.

“Mas não era a intenção queimar meu filme na televisão” 

Passeando entre gêneros e estilos, na música Paredawn, Karol Conká narra, de forma totalmente descontraída, sua trajetória pela casa mais vigiada do Brasil – e até brinca com o bordão “qualquer coisa, me bota no paredão”. A princípio, a faixa não seria lançada, mas a rapper mudou de ideia: “Decidi disponibilizar ela pois acho justo e leal dividir com vocês que estão acompanhando a minha história depois do tombo”. E se o sarcasmo da curitibana fez surtir efeito, o mesmo não pode ser dito de algumas outras parcerias do pop nacional de Março. 

A junção de Jerry Smith, Mc Dricka, DG e Batidão Stronda deu origem a Saí Pro Rolê, single que é bastante genérico se levarmos em conta o perceptível potencial dos dois cantores – o que não significa, no entanto, que a música e o clipe sejam descartáveis ou irrelevantes. Preparando os ouvintes para o sétimo álbum de estúdio da carreira, Canicule Sauvage, Otto chegou com o single Peraí Seu Moço. E dando início à nova fase da carreira musical, Larissa Manoela se juntou ao cantor ZAAC – antigo MC Zaac – para lançar a canção Tenho o Poder, o terceiro single do vindouro terceiro álbum de estúdio da cantora.   

“E eu não vou mentir que até chorei, e procurei um pornô com algum ator que se pareça com você”

A aclamação caiu no colo dos artistas LGBTQIA+: Pabllo Vittar e Rina Sawayama estão juntas mais uma vez, agora com o single Follow Me, lançado no último dia do mês. A nova canção estará no repertório da turnê I AM PABLLO TOUR e já tinha sido cantada pela drag queen no Lollapalooza 2022. Já Clarissa se uniu ao veterano Di Ferrero para criar mais uma viral com a sua assinatura, agora na bateria marcada pela belíssima produção que Los Brasileiros dedicaram à faixa DESCANSA

Mas o destaque mesmo foi Number Teddie (estrela em ascensão e responsável por várias composições do disco de Urias), que uniu um raro senso de humor autodepreciativo e minúcias muito particulares de vingança e rancor na manufatura de EU DEVERIA TER COMIDO SEUS AMIGOS. Extremamente direta e específica, a faixa tira sarro de um ex que já superou a relação e dos arrependimentos daquele que teve o coração partido. Se concretiza, facilmente, como a melhor tirada de Março quando o assunto é dor de cotovelo e muito bom humor. 

“Por que será que Deus pôs ali o ser pra ser assim, sofredor?” 

Na Música Popular Brasileira, o cenário multifacetado colhe louros. Entre viagens entre o ontem e o hoje, o show realizado por Djavan no Festival de Jazz de Montreux de 1997, na Suíça, foi finalmente disponibilizado em forma de álbum. Graças a um acordo da gravadora Sony Music com o próprio evento, podemos agora nos deliciar com as 15 faixas de Ao Vivo no Montreux Jazz Festival 1997. Já Martinho da Vila resolveu mesclar diferentes estilos musicais, religiões e personalidades culturais no disco Mistura Homogênea. Reunindo de Zeca Pagodinho e Teresa Cristina à escritora Paulina Chiziane e Djonga, este trabalho é, provavelmente, o último álbum da carreira de Martinho.  

Ana Müller, por sua vez, ressurgiu suave e romântica no belo e breve álbum Ternura. Valorizando, no novo trabalho, o recurso voz e violão, que cria um clima muito cativante para a obra como um todo, a cantora capixaba também comemora, em 2022, os cinco anos de seu primeiro lançamento autoral: o EP Ana Muller.  Igualmente mergulhada em atmosferas amorosas, Simone retornou aos discos com o álbum Da Gente, trabalho que tem direção artística de Zélia Duncan e direção musical do pernambucano Juliano Holanda. Destacando principalmente compositores nordestinos – muitos, inclusive, da atualidade -, a nova obra da Cigarra da MPB apenas reitera a relevância dessa artista para a cultura nacional. No fim do mês, Haja Terapia, lead single do projeto, ainda ganhou um clipe dirigido por Pedro Colombo.

Depois de disponibilizarem, em Janeiro, o single Vermelho Esperança, Chico César e Laila Garin retornam, em Março, com todas as 16 faixas de O Canto de Macabéa ou a Hora da Estrela, disco concebido a partir do musical baseado na obra de Clarice Lispector. O álbum passeia por diferentes sonoridades, instigando a curiosidade do público em relação à peça de teatro. Também em Março, Vermelho Esperança ganhou um segundo videoclipe.

Capa do álbum Senhora das Folhas. Arte digital quadrada, com fundo marrom. Uma moldura formada por folhas e flores ocupa as bordas da imagem. No lado esquerdo da moldura, lemos, de baixo para cima, Áurea Martins, em letras verdes. Já no lado direito, lemos, de cima para baixo, Senhora das Folhas, em letras igualmente verdes. Ao centro, podemos observar a cantora Áurea Martins. Ela é uma mulher negra, idosa, de olhos fechados, mãos em sinal de oração, veste uma roupa preta e utiliza um adereço também preto na cabeça.
“O álbum é uma homenagem às curandeiras, rezadeiras e benzedeiras, personagens do universo feminino sagrado, guardiãs da sabedoria popular, da fé e da tradição”, publicou o jornal mineiro O Tempo (Foto: Biscoito Fino)

“Folha miúda que tem a natureza do amor, soberana no mundo, passeia por cima da dor”  

Lançado no Dia Internacional das Mulheres, o álbum Senhora das Folhas, da veterana Áurea Martins, é cuidadoso e, sobretudo, afetivo ao reunir sonoridades e temas ligados à ancestralidade, às questões ambientais, às culturas indígenas, às mais variadas fés e crenças e, claro, aos costumeiramente heterogêneos universos femininos. Se é verdade que o ano está apenas começando, também é certo que esse disco, idealizado pela produtora cultural Renata Grecco, já tem grandes chances de ser uma das obras musicais mais graciosas de 2022.       

Da mesma maneira, é seguro esperar o destaque de Lô Borges, que, desde 2019, lança um álbum de músicas inéditas por ano. Em 2022, o lançamento da vez é Chama Viva, disco com melodias e harmonias assinadas por Lô, e letras de Patricia Maês. Segundo o próprio cantor, o novo trabalho vai praticamente em direção oposta ao disco anterior, Muito Além do Fim, e os álbuns de 2023, 2024 e 2025 já estão garantidos. Em Chama Viva, Lô ainda canta junto de Milton Nascimento, Beto Guedes, Paulinho Moska e a própria Patricia.  

Capa do single Ninho de Papel. Arte digital quadrada, com fundo dourado. Na parte superior da capa, lemos o título Ninho de Papel. Ele aparece centralizado e escrito em letras cursivas pretas. No centro, vemos uma ilustração minimalista representando as cantoras do single. Ela é formada apenas por contornos feitos com linhas escuras, sem grandes preenchimentos. Na parte inferior da capa, lemos Sabrina Parlatore, Márcia Tauil e Ana Lélia em letras de fôrma pretas.
Sabrina Parlatore, Márcia Tauil e Ana Lélia são pura química em Ninho de Papel (Foto: Tratore)

“Espera, que a noite já tá chegando”  

As peças solteiras da MPB também tiveram destaque. Primeiro, a canção Redescobrir, gravada por Marcos Valle em 2020, para o álbum Cinzento, ganha, agora, uma nova versão. No single de 2022, os dois compositores da faixa – o próprio Marcos, junto de Moreno Veloso (filho de Caetano) – são também intérpretes de uma jornada musical extremamente suave. Já a canção Ninho de Papel, lançada por Ana Lélia em 2021, originalmente em versão solo, também recebeu uma nova versão. 

Com a interpretação de Márcia Tauil e Sabrina Parlatore, a gravação de 2022 reúne performances únicas e deslumbrantes, além de um novo arranjo de Jonathas Pingo. A faixa mescla pop, soft jazz e bossa nova e conecta duas artistas que já colaboraram anteriormente com Tauil. O lançamento oficial foi no dia 31 de Março, mas o Persona ouviu a música com antecedência para incluí-la nas nossas indicações do mês. 

Capa do single Rio e Mar. Arte digital quadrada, com fundo branco. Na parte superior da capa, lemos Rio e Mar em letras roxas. Já na parte inferior, vemos ilustrações azuis e roxas representando ondas, gotas de água e peixes. Em cima das ilustrações, lemos Chico Lobo feat. Kleiton & Kledir em letras brancas.
Como o próprio título sugere, Rio e Mar pode ser uma verdadeira imersão (Foto: Kuarup Música)

“Meu desejo é rio que corre pro mar e corresponde ao meu coração” 

Num mês produtivo para a MPB, o veterano Chico Lobo ainda se uniu à dupla Kleiton & Kledir para divulgar o single Rio e Mar, faixa que fará parte do vindouro álbum O Tempo é Seu Irmão. Na canção, a mistura da sonoridade popular brasileira com viola caipira constrói um caminho poético, conduzido por metáforas envolvendo o elemento água. Do outro lado, o nascido na Argentina, mas criado na Itália, Nicolás Farruggia se juntou à lenda viva brasileira Chico Buarque para lançar Tutto il Sentimento, quarto single do novo álbum do cantor estrangeiro – o ainda inédito Poema Livre. A música é uma versão em Italiano da faixa Todo o Sentimento, de Cristóvão Bastos e Chico, agora com letra de Stefano LaVia. 

Outra assinatura icônica da Música nacional, a banda Biquíni Cavadão comemorou os 20 anos de sucesso de Quando Eu Te Encontrar, faixa do álbum Escuta Aqui (2000), com uma regravação da canção. Por fim, o projeto Uma Onda Para Tom Zé, que está em construção desde 2021 e tem curadoria da jornalista Patricia Palumbo, teve continuação com Vanguart. O trio mato-grossense trabalhou no single Amar, regravação da música lançada pelo veterano tropicalista no álbum Brazil 5 – The Return of Tom Zé: The Hips of Tradition, de 1992

“Os filhos dos filhos dos filhos dos nossos filhos verão” 

Em mais um encontro da tradição da música brasileira com a sua contemporaneidade, Nando Reis se juntou ao fenômeno pop Jão para regravar a música Sim, originalmente disponível no álbum Sim E Não, de 2006. Trazendo novos detalhes para a canção, o dueto da vez não só evidencia o talento dos dois românticos como também dá sequência ao projeto Nando Hits, por meio do qual Nando promove alguns encontros musicais.  

E o remake de Pantanal está aí provando a tendência do encontro das gerações. Para a abertura da novela, Maria Bethânia aplicou sua voz inigualável à já conhecida música-título, composta por Marcus Viana para a versão original – e clássica – do sucesso da TV brasileira. Adentrando, com respeito e glória, o “coração do Brasil”, a Abelha Rainha se destaca na faixa ao lado de Almir Sater, nome responsável pela viola caipira e pelo charango da canção. 

Também no audiovisual, guiada por Iemanjá e preocupada com questões ambientais, Daniela Mercury entregou ao mundo o deslumbrante videoclipe de As Rendas do Mar, com direção assinada por Jana Leite; e Bemti retornou com maestria no clipe de Do Outro Lado (Mantra Tornado Grito), faixa do primoroso álbum Logo Ali, de 2021. Gravado com o cantor português Murais, o vídeo foi dirigido pelo duo Couple of Things. 

Capa do single Dança das Almas, tem fundo verde e mostra o desenho de um homem marrom com o rosto formado por raízes e um boné vermelho no topo da cabeça.
No reggae brasileiro, o trio Devotos regravou a faixa Dança das Almas, de 2006, que passa a contar agora com a voz de Chico César nos versos políticos em defesa da reforma agrária (Foto: Estelita)

“De amizade eu já tô cheia, agora eu quero é sacanagem”

Não tem como encerrar o panorama de março sem pontuar os eventos dedicados ao Dia Internacional das Mulheres. Com o mesmo objetivo do especial do Persona, a Deezer lançou o EP exclusivo Icônicas – Deezer Originals. Reunindo verdadeiros sucessos nacionais e internacionais do mundo da Música, tais como My Favorite Things, A Loba e Pagu, o projeto potencializa mulheres artistas bastante relevantes na atualidade, a exemplo de Luedji Luna, Tulipa Ruiz e Jup do Bairro. Indo além das escolhas maravilhosas de repertório e intérpretes, Icônicas – Deezer Originals ainda foi parar na Times Square

No funk, e iniciando as comemorações de 10 anos de carreira, Ludmilla revisitou sua fase MC Beyoncé para criar o EP Back to Be. Formado por seis faixas autorais – sendo algumas criadas com outros compositores e outras exclusivamente pela artista -, o novo trabalho consegue, ao mesmo tempo, resgatar o funk que impulsionou a trajetória artística de Lud e trazer novos ares para a discografia da cantora. Fora isso, ainda merecem destaque as presenças de Akon, DJ 2F e Mc Don Juan no EP

“Fala que é sem sentimento, mas quando eu sento apaixona”

Diferente da entrega de Lud, o comeback de Kaya Conky foi uma das melhores surpresas nacionais chiclete de Março. Com bastante irreverência e humor, a música PODE DALE não só evidencia sua qualidade para as pistas de dança, como também vem acompanhada de um clipe maravilhoso, que ilustra a narrativa da letra autoral e foi dirigido por Gabriel Riccieri. 

Porém, foi sentaDONA (Remix) s2 que Luísa Sonza se destacou, mais uma vez, no pop nacional. Seguindo os passos de Anitta nas paradas musicais internacionais, a artista emplacou a música de Davi Kneip, Mc Frog e o Dj Gabriel do Borel protagonizando a coreografia viral desenvolvida por Flávio Verne para o videoclipe do novo single.  

“Eu não quero passar outro dia procurando por alguém que eu sei que não posso substituir”

No sertanejo, o lançamento do single 50 por cento vem fervilhando em polêmicas. Gravado em 2020, a música em parceria com Marília Mendonça fazia parte do projeto Juntas, um DVD feito durante a pandemia e que contava apenas com duetos de Naiara e mulheres do sertanejo. A faixa que sairia em 2021 não foi lançada pois, segundo a família de Marília, ela não aprovou a versão gravada e não queria ter seu nome associado ao de Naiara, após a cantora participar do almoço com o inominável que ocupa o cargo maior do poder executivo.

Sem uma conversa prévia com a família Mendonça, o lançamento foi planejado para acontecer durante a estadia de Azevedo na casa mais vigiada do Brasil, publicidade que gerou revolta em João Gustavo, irmão de Marília. A equipe de Naiara chegou a informar que a música não seria mais lançada, mas, ao fim, Naiara ficou pouquíssimo tempo no BBB e 50 por cento chegou às plataformas digitais, trazendo uma sonoridade comum ao sertanejo e uma letra que é mais do mesmo dentro da discografia de Naiara Azevedo.

O mês de Março ainda foi prestigiado com a performance de Pabllo Vittar e Ivete Sangalo, que arrasaram nos vocais de Lovezinho (I AM PABLLO LIVE), versão ao vivo da faixa apresentada originalmente no álbum 111, de 2020. Machine Gun Kelly arrancou suspiros e elogios nos palcos do Lollapalooza e aproveitou para quebrar tudo ao som de mainstream sellout, seu manifesto pop punk recheado de risadinhas. Do sorriso às lágrimas, The Weather Station estraçalhou o folk ao lado de seu How Is It That I Should Look at the Stars, disco-irmão de Ignorance, um dos destaques de 2021. 

“Você me beijou só para me beijar, não para me fazer chorar”

A festa do Grammy 2022 sacudiu a indústria do entretenimento assim que Março acabou, então é seguro aguardar por grandes nomes retornando do sossego para disputar o próximo posto de Álbum do Ano. Entre as certezas, Abril nos reserva um rock apimentado, um pop familiar e caseiro e, com certeza, mais um punhado de achados e descobertas de brilhar os olhos. Até lá, fique de olho no Persona e na curadoria musical mais afiada e precisa do jornalismo cultural brasileiro. 


Texto: Vitor Evangelista

Pesquisa e Pauta: Ana Júlia Trevisan, Bruno Andrade, Eduardo Rota Hilário e Raquel Dutra

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