Gabriel Gatti
Não falta conceito para a era Chromatica e para Lady Gaga. Lançada em fevereiro de 2020, a primeira faixa divulgada do novo álbum da cantora foi Stupid Love, na qual os fãs foram convidados a entrarem em um mundo criado pela Mother Monster. O clipe, entretanto, falhou na hora de entregar a ideia. O excesso de chroma key e os looks toscos comprometeram o conteúdo do vídeo. Com Rain On Me não foi muito diferente: a parceria com Ariana Grande resultou em um hit aclamado pelos fãs, porém deixou a desejar ao focar demasiadamente na coreografia e não pensar na construção de uma narrativa. No entanto, o mesmo erro não ocorreu no curta-metragem de 911. Dirigido por Tarsem Singh (Dublê de Anjo, 2006), o vídeo traz história, figurinos bem produzidos e muito conceito.
O clipe começa em um deserto onde Lady Gaga está jogada no chão, e a música que inicia o curta é Chromatica II. Em seguida, a cantora segue um cavaleiro que a leva até uma cidadela onde estão os personagens que guiam a narrativa. De início parece apenas um clipe surrealista com looks icônicos, porém a história se encerra evidenciando um acidente de carro, o que mostra que as cenas anteriores não passavam de um delírio de Gaga enquanto ela estava em um estágio entre a vida e a morte.
A letra de 911 levanta a lebre para a questão da saúde mental, o que ficou muito bem referenciada pelo vídeo. Gaga já disse que a música “é sobre um antipsicótico” que ela tomava para para o controle sobre o cérebro. No caso, “Mantenha minhas bonecas dentro de caixas de diamantes”, que remete ao livro Valley of the Dolls de Jacqueline Susann, faz referência ao uso esse remédio. Por esse motivo, a faixa foi intitulada de modo que faça alusão ao número de emergência na América do Norte.
Com isso, 911 vai muito além do que uma música pop com uma batida dançante. Pelo Instagram, Lady Gaga expressou a profundidade que a faixa e o curta apresentam: “esse curta-metragem é muito pessoal para mim, minha experiência com a saúde mental e o jeito que a realidade e os sonhos podem se interconectar para formar heróis dentro e ao redor de nós”.
Além disso, para complementar a profundidade da letra da música, a cantora buscou diversas referências clássicas para o curta. As romãs logo no início remetem à deusa Perséfone raptada por Hades, o deus do submundo. Logo, a fruta da morte e da tentação para a mitologia grega reforçam a mensagem expressa pela cantora. Outras inspirações que complementam a narrativa da história são alguns clássicos do cinema. A Cor da Romã (1968), do armênio Sergei Paradjanov, 8½ (1963), dirigido pelo italiano Federico Fellini e O Topo (1970), que veio da mente de Alejandro Jodorowsky, são apenas algumas referências cinematográficas que atenuam a narrativa de 911.
Outra obra que fisga a memória e nos faz lembrar ao assistir o vídeo de Gaga é a peça O Auto da Compadecida (1955), de Ariano Suassuna, que ganhou adaptação para as telonas em 2000, além do filme surrealista Mulholland Drive (2001), de David Lynch. A obra brasileira, que se passa no sertão, é protagonizada por João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello). Quando aquele “morre”, ocorre um tribunal para julgar sua trajetória de vida. O cenário do livro e o figurino da Compadecida (Fernanda Montenegro) para a adaptação ao cinema se assemelham ao curta lançado pela Mother Monster. Já o longa norte-americano mistura delírio e realidade ao contar a história de Rita (Laura Harring) que, após sofrer um acidente, perde a memória e vaga desorientada até encontrar Diane (Naomi Watts), que a acolhe.
O resultado de tantas influências como essas foi o curta muito bem produzido de 911, e não foi a primeira vez que Lady Gaga constrói uma história para ilustrar suas músicas. O clipe de Paparazzi, por exemplo, narra que após a cantora ser arremessada da sacada pelo seu namorado, ela se vinga colocando veneno em sua na bebida do traidor. Além desse, a Mother Monster também tem outras megaproduções como Telephone, Marry The Night e G.U.Y..
911 é mais um grande trabalho na carreira de Lady Gaga. O curta, que se constrói trazendo mais dúvidas que esclarecimentos ao longo de seu desenvolvimento, se encerra com um final surpreendente que amarra toda sua história. 911 é um clipe para nenhum little monster botar defeito.