Caroline Campos
Há uma piada entre latinoamericanos que afirma que “se seu país sofreu um golpe de Estado apoiado pelos Estados Unidos, parabéns! Você pode se considerar latino”. A brincadeira apenas satiriza o que a gente já conhece. Argentina, Chile, Bolívia, Brasil – são poucos os países da região que não passaram por ditaduras militares instauradas com a ajuda do Tio Sam. Na Guatemala não foi diferente – em 1954, Jacobo Árbenz foi destituído da presidência de seu país em um golpe orquestrado pela CIA. A guerra civil decorrente durou até 1996 e a ditadura do país foi uma das mais violentas da América Latina, especialmente quando comandada pelo general Efraín Ríos Montt – julgado pelo massacre de mais de 1700 indígenas maias-ixiles nos anos 80.
Não é necessário dizer que as feridas de um genocídio nunca cicatrizam. La Llorona, coprodução entre Guatemala e França escrita e dirigida por Jayro Bustamante, bebe da fonte da história real de seu país. O ditador, no entanto, apenas muda de nome: Enrique Monteverde, interpretado por Julio Diaz, é responsável pela mesma brutalidade que sua versão fora das telas. 30 anos depois, já velho e doente, o general é finalmente condenado por genocídio, mas sua sentença é anulada após pressão de instituições privadas envolvidas no jogo de poder da justiça. O longa é, acima de tudo, político. Bustamante encharca seu filme com as lágrimas de um povo que testemunhou o verdadeiro terror e um dos mais graves crimes contra a humanidade.
Para contar sua história, o diretor também utiliza uma das lendas mais conhecidas da América Latina. A Chorona, ou Mulher que Chora, é um mito contado por gerações de abuelas a seus netos, com variações no enredo de um país para outro. No México, que foi o país base para A Maldição da Chorona, filme de 2019 que integra a franquia Invocação do Mal, a figura é uma mulher traída que afoga seus dois filhos por vingança, cometendo suicídio logo após. Entretanto, sua alma vaga arrependida, chorando e procurando por novas crianças para tomar o lugar dos falecidos filhos.
No longa guatemalteco, a origem da mulher errante é diferente, assim como seu alvo – o genocida passa a ouvir os lamentos noturnos em sua casa, protagonizando um “acerto de contas” histórico com a cultura local. O terror de Bustamante é sutil, deixando de lado os jumpscares ou as trilhas sonoras espalhafatosas. A atmosfera é uma sinfonia de gritos dos parentes de mortos e desaparecidos que protestam diariamente em frente à mansão de Monteverde e sua família. Afinal, quantas almas ceifadas atormentam o espírito condenado de um genocida?
Quando o velho começa a ficar violento e perturbado por barulhos de choro, todos os seus empregados pedem demissão. “Eles estão com medo”, afirma a governanta, que logo encontra Alma para suprir a falta de funcionários. A presença da nova empregada, interpretada por María Mercedes Coroy, é cercada de misticismo. Alma não profere muitas palavras, não interage com os patrões – a única que recebe sua atenção é a jovem Sara, neta do general. A Llorona, que adentrou a mansão pela porta da frente, passa a atormentar a residência como vingança por cada gota de sangue indígena derramada pela cúpula do governo.
Os olhos escuros de Coroy carregam o luto de assistir suas crianças afogadas por um jovem General Monteverde durante seu massacre étnico, que tinha como justificativa encontrar guerrilheiros escondidos em aldeias afastadas. Na dolorosa cena de seu julgamento, as matriarcas nativas cobrem os rostos com véus coloridos e só os revelam enquanto relembram as atrocidades sofridas nas mãos dos militares. É um momento perfeitamente construído para demonstrar a força feminina ancestral de uma comunidade, mesmo após a mais cruel das violências.
As mulheres de La Llorona são as peças-chave da narrativa. Filha, esposa e neta de Monteverde estão sempre por trás dos panos tentando controlar seus atos selvagens em meio ao isolamento que são obrigados a realizar por estarem cercados pelos manifestantes. Margarita Kenéfic interpreta a submissa Carmen, que se perdeu entre as décadas de mentiras do marido genocida, mas, durante a noite, sofre com pesadelos aterrorizantes em que se vê fugindo de tropas militares. Natalia, filha do casal, passa a desacreditar, na contramão da mãe, das ações tão puras do pai. A personagem sublime de Sabrina De La Hoz batalha pelo equilíbrio da casa, mas elencando suas prioridades – senil ou não, o general não deve colocar a vida de sua família em risco.
“Por que as pessoas falam mal do vovô na internet?”, pergunta Sara, vivida por Ayla-Elea Hurtado. Natalia a mantém no escuro, tentando a proteger do motivo pelo qual centenas de pessoas atiram coisas em suas janelas e pedem por justiça em sua porta. Assim, depois do tempo sozinha, Sara vê em Alma uma nova amizade com cabelos incrivelmente longos e uma idade não tão avançada. A relação é ameaçadora até entendermos que a menina não é alvo algum. As brincadeiras de Sara e Alma, ficando o máximo de tempo debaixo d’água sem respirar, cria a expectativa do desastre acontecer, mas ele nunca acontece. A Llorona de Alma não procura novas crianças; ela procura o assassino das suas.
Os anos truculentos de Monteverde passam a assombrar a todos os habitantes da mansão, à medida que suas alucinações com Alma começam a piorar. Jayro Bustamante utiliza do folclore para arquitetar uma vingança gradual e satisfatória, com um jogo sonoro cru, mas extremamente bem trabalhado, que evidencia os leves balanços da água e os gritos contra a família enclausurada. Vivos e mortos entoam: sem justiça, não há paz.
A relação de apoio entre as mulheres é a única parede da casa que se mantém sólida; tudo desaba. La Llorona é incansável em desestruturar seu vilão, pavimentando o caminho para um clímax que vem sendo construído há décadas na história da Guatemala. Os lamentos ensurdecedores de Alma pelas suas crianças se tornam um farol para todos os mortos seguirem até a figura de Monteverde. Quem os lê é Valeriana, a governanta nativa, que insiste em segurar a mão de seu patrão. “Nenhum guarda pode detê-los”. E não detiveram. No plano terrestre, Enrique Monteverde pode ter ficado impune, mas sua conta foi paga. E o caminho espiritual é muito, muito longo.
Não se massacra uma etnia sozinho. E, com um final no melhor estilo Kill Bill, Alma ainda tem muito sangue para cobrar. E os envolvidos não demorarão a ouvir seu pranto. La Llorona conseguiu uma indicação para o Globo de Ouro 2021 na categoria Melhor Filme em Língua Estrangeira, primeiro longa da Guatemala a atingir o feito. Jayro Bustamante é um dos grandes nomes do cinema guatemalteco, que luta por reconhecimento e projeção internacional em meio à debandada de filmes europeus que abocanham as indicações anualmente.
Infelizmente, esse ano a situação não mudou. A Academia divulgou a lista de indicados ao Oscar 2021 e a obra de Bustamante não foi selecionada. Uma pena, principalmente sendo uma das poucas submissões de um país da América Central, mas esperar que os votantes, que, na maioria das vezes, só tem olhos para as belas histórias europeias, escolham um filme de terror latinoamericano sobre genocídio indígena beira a ingenuidade. Se até o Globo de Ouro, a premiação mais fajuta da temporada, reservou uma vaga para La Llorona, torcíamos por um pouco mais do homem dourado.
Se aqui no Brasil ainda existem manifestações pela volta da ditadura militar, filmes como La Llorona deveriam ser exibição obrigatória sobre o fim que um torturador e assassino merece. Jayro Bustamante entende e relembra a dívida histórica que homens como Efraín Ríos Montt possuem com seu país. Enquanto continuarmos elegendo generais, não teremos aprendido nada da luta contra a repressão. E não podemos esperar que entidades folclóricas façam o trabalho por nós. Sem justiça, não há paz.