La Casa de Papel: velhas opressões, novas perspectivas

Para protegerem seus rostos, os ladrões utilizam a máscara de Salvador Dalí que, por sua vez, remete à máscara utilizada no filme “V de Vingança”. Fonte: Reprodução

Júlia Paes de Arruda

Uma mistura de ação, suspense e romance que prende a atenção do público para maratonar o dia todo. Não é à toa que ela virou a “queridinha” do momento.

Recentemente, a Netflix acrescentou em seu catálogo a segunda parte de La Casa de Papel. A série espanhola tem rendido muitos comentários por toda a internet – assim como muitas polêmicas. Usando um suposto roubo na Casa da Moeda da Espanha como trama central, ela cria uma narrativa que começa como uma tradicional série de suspense norte-americana, mas acaba se tornando difusora de críticas sociais.

Dirigida por Álex Pina, La Casa de Papel estreou no dia 2 de maio de 2017 na Espanha. Inicialmente, contava com uma temporada dividida em duas partes, totalizando 15 episódios de 70 minutos. A Netflix fez uma nova edição para adicioná-la ao catálogo, contendo dessa vez 22 episódios de aproximadamente 45 minutos.

O cenário onde se passa a série não é a verdadeira Casa de Moeda da Espanha. Como a verdadeira não permitiu a gravação dentro do prédio, a produção optou pelo Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC). Fonte: Reprodução

A trama gira em torno de oito ladrões que se unem para “roubar” a Casa da Moeda da Espanha. Na realidade, a ideia é imprimir notas novas sem que ninguém se prejudique, apenas para romper com o sistema. Isso pode ser visto como um tipo de rebelião, mas por ser um plano idealizado por “bandidos” não ecoa como deveria na sociedade. Seu líder, que atende pelo nome de “Professor” (Álvaro Morte), manipula a polícia do lado de fora para que tudo saia como planejado. Lá dentro, os ladrões precisam lidar com os reféns, especialmente com Arturo Román (Enrique Arce), o diretor da Casa da Moeda.

Para que o plano funcionasse perfeitamente, o Professor estipulou algumas regras. Entre elas, a que não houvesse laços afetivos com os envolvidos e, por isso, seus nomes verdadeiros não poderiam ser revelados. Assim, cada um cria um pseudônimo com nomes de cidades: Berlim é um psicopata que se sente superior em relação aos outros membros por ser líder da equipe; Tóquio, uma moça impulsiva e corajosa; Rio, um rapaz com uma enorme conhecimento de computação; Moscou e Denver, pai e filho que fazem de tudo um pelo outro; Nairóbi, uma mulher que luta para recuperar seu filho; e Helsinki e Oslo, primos sérvios que usam sua força para serem soldados do Professor.

Durante toda a trama, Berlim (Pedro Alonso) age de forma autoritária e machista. Em certo ponto, afirma que tudo “se trata de um patriarcado”, dizendo que a presença feminina atrapalha e fragiliza o ambiente. Mas quando Nairóbi (Alba Flores) assume a liderança, a figura da mulher ganha maior destaque, já que apenas duas mulheres são protagonistas do roubo: a própria e Tóquio (Úrsula Corberó). Infelizmente, essa situação não ocorre apenas na série.

Nairóbi rainha, né, mores? Fonte: Reprodução

Apesar de uma grande quantidade de filmes estar começando a mudar essa visão (como as animações Moana – Um Mar de Aventuras e Valente), muitos – mais antigos, mas ainda muito conhecidos – ainda revelam um machismo impertinente. Clássicos da Disney como Cinderela e Branca de Neve, se passam num mundo onde a mulher ainda está à mercê de um homem (no caso, os príncipes), sem nenhuma perspectiva de futuro, como se elas dependessem dos maridos para viver seu “feliz para sempre”. Na série, de todos os personagens, Nairóbi é a que tem o  propósito mais nobre sobre o que fazer com o dinheiro do assalto: recuperar seu filho, que foi tirado de suas mãos quando o deixou num carro para vender pílulas. Mesmo sabendo que a possibilidade disso acontecer é pequena e de que, mesmo que se concretize, seu filho pode não estar disposto a aceitá-la, ela insiste devido ao fato de seu amor materno ser maior do que qualquer dinheiro.

Outra figura de destaque é Raquel Murillo (Itziar Ituño), a inspetora responsável pelo caso. Sua história pessoal reflete a situação de muitas mulheres: mãe, divorciada, trabalhadora, vítima de abusos do ex-marido e do machismo em seu trabalho. Na trama, Raquel foi em busca de justiça, porém tardia. Depois do divórcio, seu ex-marido começa a se envolver com sua irmã. Com medo do que poderia acontecer, Raquel denuncia os abusos que sofreu, porém é vista como a “irmã ciumenta que não aceita o fim do casamento” – tanto pelo juiz quanto por seus colegas de trabalho. Para aumentar a preocupação, seu ex-marido pede a guarda da filha. Receosa de que os abusos cheguem até a primogênita, a inspetora a proíbe de ver o pai, o que a torna ainda mais a “ruim da história”.

Fonte: Reprodução

Apesar de o Professor ter deixado claro desde o início que o roubo se desenrolaria sem laços afetivos, Tóquio e Rio (Miguel Herrán) se envolvem desde os primeiros dias. O relacionamento surpreende o público pelo choque de personalidades: uma mulher sofrida pelas situações que viveu, entre elas o assassinato de seu ex-namorado (motivo que a torna tão impulsiva) e um garoto que, apesar de inteligente, continua agindo como um adolescente. Além disso, Denver (Jaime Lorente Lopez), um rapaz perturbado pelo uso de drogas, se apaixona pela refém Mónica (Esther Acebo), secretária e amante de Arturo. O casal é uma espécie de “A dama e o vagabundo”.

A série também se desenrola por meio de desgastes emocionais, tanto dos sequestradores, cansados e cada vez mais desunidos, quanto dos reféns, obrigados a seguir ordens que não concordam – especialmente Arturo, que tenta mais de uma vez escapar do cativeiro. A ação remete à luta dos trabalhadores pela liberdade do sistema capitalista. No caso da série, a liberdade é literal.

Os reféns também usavam máscara, para despistar os policiais, que não sabiam diferencia-los dos assaltantes. Fonte: Reprodução

Na primeira tentativa, a personagem provoca uma rebelião dentro da Casa da Moeda, unindo alguns dos reféns para que possam escapar dali e buscar ajuda da polícia, que está vigiando o local. Apesar do diretor não ter saído, o grupo consegue fugir, o que provoca rebuliço entre os ladrões. Por analogia, a luta por igualdade de direitos dos trabalhadores se torna mais forte quando a “união faz a força”, o que provoca abalos sobre quem domina o poder.

Outro ponto que se mostra importante é a música-tema “Bella Ciao”, que foi escolhida a dedo. Símbolo da resistência italiana contra o levante fascista de Benito Mussolini durante a Segunda Guerra Mundial, reflete graciosamente a ideologia política por trás do plano do Professor.  O irônico é perceber o esvaziamento de sentido – e também a falta de conhecimento histórico de muitas pessoas: muitos desavisados que saem em defesa da volta da ditadura militar no Brasil compartilharam entusiasmados a música em suas redes sociais.

Com um final surpreendente, La Casa de Papel pretende ser bem mais do que a primeira série espanhola que gira em torno de um assalto, nem só lembrada por “Bella Ciao”, mas sim por ser uma série de origem espanhola que encantou o mundo todo com um roteiro cativante, algo que era atribuído apenas a séries “hollywoodianas”. Sua trama recheada de críticas sociais só reafirma que é irônico ver tantos países com uma história de preconceito difundirem uma série com tal carga ideológica.

 

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