Isabela D’Avila
Cada pessoa é composta por diversas versões. Algumas delas são apreciadas, e outras, nem tanto. Assim, alguns conseguem conter partes de si mesmo, mostrando ao mundo só aquilo que ele teoricamente desejaria ver. Alicia Keys, em seu novo projeto, rescinde com essa ideia, lançando 26 faixas em uma proposta diferente daquela que vem apresentando em sua trajetória. Aos que não gostam quando um artista muda ou alcança novos patamares musicais, cuidado! Este disco contém altas doses de ousadia.
Em uma estética de chaves e fechaduras, trabalhada no azul e dourado, a cantora, compositora e produtora norte-americana Alicia Keys lança seu oitavo álbum de estúdio, nomeado KEYS. Não é à toa que a obra leva o sobrenome da própria artista, já que ela mesma confirma ser seu trabalho mais sincero, trazendo o conceito de seu próprio mundo, ou melhor, a união de duas versões de seu mundo: uma que é conhecida pelas pessoas e outra, que parece ter sido escondida por muito tempo.
Com grande destaque na mídia e uma carreira de 20 anos já muito bem consolidada, englobando 7 álbuns, 90 milhões de discos vendidos e 15 Grammys, a cantora de If I Ain’t Got You demonstra já ter chegado a uma compreensão completa de si mesma, e não ter mais receios de esconder partes de sua personalidade. Sem deixar que outros ditem o que é o ideal para sua música, ela arrisca se desviar daquilo que seus fãs e a mídia estão acostumados a receber, para trazer uma nova perspectiva à sua jornada, entregando um projeto que pode ser considerado como um dos mais audaciosos de sua carreira.
Com KEYS, Alicia encerra um grande ciclo, já que é seu último trabalho com a Sony Music, e a cantora passa a ser agora uma artista independente. Nas entrevistas e redes sociais, Alicia não esconde sua felicidade em entregar algo sincero e que realmente traduz seu interior. Ela afirma ser seu projeto favorito de todos os tempos e diz esperar que as músicas sejam capazes de levar os ouvintes a um novo lugar, um “lugar especial”.
A artista nova-iorquina oferece aos fãs um álbum duplo, composto por músicas que exploram diferentes temas do seu próprio mundo. Elas são divididas entre Originals e Unlocked, contando com participações de Brandi Carlile, Khalid, Swae Lee, Pusha T, Lil Wayne e Lucky Daye. A primeira parte do disco, que foi produzida exclusivamente pela cantora, chamada de Original, cumpre com as expectativas dos que já conhecem seus trabalhos antigos. Com sua voz incomparável, suas melodias no piano e suas letras com profundas reflexões, Alicia usa de um estilo intimista, mais “caseiro”, e majoritariamente romântico.
No curta KEYS: A Short Film, divulgado no dia 17 de dezembro para compor o projeto, Alicia fala sobre a importância de conhecer e aceitar seu lado “original”, para que consiga se “desbloquear”. É nesse sentido que o segundo lado do CD é chamado de Unlocked, que significa desbloqueado. Ele foi resultado de seu trabalho conjunto com o produtor também ganhador do Grammy, Michael Len Williams II, mais conhecido pelo seu nome artístico, Mike WiLL Made-It. Ele traz reinterpretações das músicas do primeiro lado, com produções mais sonoras, eletrizantes e com maior presença de bateria, trazendo uma atitude mais confiante de Alicia.
Para o primeiro single de KEYS, Alicia escolheu fazer seu grande retorno com uma das criações do lado Unlocked do álbum, já anunciando ao mundo a ousadia do que estaria por lançar. Em LALA (Unlocked), a cantora e o rapper americano Swae Lee conseguem mostrar muito bem a química entre si, cantando sobre uma experiência apaixonante de se fazer amor, que acabou se tornando um compromisso na agenda: Amor fora deste mundo, fora desta nebulosa/O melhor é apenas colocá-lo na minha agenda. De forma sensual, eles trocam flertes entre sons mansos de guitarra e tempestuosos de bateria. A canção contém interpolações com In The Mood, música do cantor afroamericano dos anos 70, Tyrone Davis.
No segundo single lançado, Best of Me, em suas duas versões (Originals e Unlocked), escrito conjuntamente com Raphael Saadiq, Alicia traz o romance clássico de suas obras para falar sobre sua relação com seu parceiro de vida, Swizz Beatz: Você é minha pílula vermelha e azul/Isso me faz ganhar vida/Não seja uma mentira/Parece tão real/Você tira o melhor de mim. As duas versões contém interpolações de Cherish The Day, da banda britânica Sade. E a versão Unlocked adiciona uma interpolação de Strange Funky Games and Things, de Jay Dee. A música parece ter recebido a bênção de Sade, como relatou Alicia em alegria nas redes sociais.
No terceiro single do projeto, a cantora dá um pouco mais do gosto do lado Unlocked do álbum, lançando Come For Me (Unlocked). Ele traz uma experiência sônica calorosa, que é aprofundada com a participação de outras duas das vozes mais fascinantes do cenário do R&B atual: Khalid e Lucky Daye. A peça fala sobre um amor instável, sobre amar demais alguém que te machuca e não conseguir ir embora. Na letra, Alicia questiona: Por que você me coloca pra cima?/Só pra me pôr pra baixo?/No final das contas sabes que eu estarei lá por você. A obra foi o resultado do esforço conjunto dos três artistas, além de J. Cole, Carter Lang, Mike WiLL Made-It e BJ Burton. O dia a dia para a criação da canção foi mostrado, inclusive, em seu videoclipe.
Entre as outras 23 músicas de KEYS, algumas ganharam destaque. É o caso de Plentiful (Originals). Aos que gostam de ouvir os álbuns sempre de forma completa, é importante dizer que essa é a composição que inicia a obra. Após 45 segundos de uma bela melodia no piano, que se acelera e se intensifica, a faixa alcança seu ápice no curto, mas forte, verso de Pusha T. Usando uma interpolação de The Truth, de Beanie Sigel, a cantora fala sobre como se escondeu por muito tempo, até que teve seus olhos abertos, afirmando sua fé: Eu costumava viver escondida num disfarce/A fé é o Rei que me abriu os olhos/O meu Deus é abundante. A letra mostra uma Alicia totalmente transparente, que não quer mais se esconder em uma superficialidade falsa, e prepara o ouvinte para receber algo novo no decorrer do álbum, de uma aparentemente nova artista.
Is It Insane (Originals e Unlocked) vem como um presente para os fãs de Alicia. A música, que foi gravada em 2003, veio a ser retirada de um de seus álbuns mais clássicos, The Diary of Alicia Keys, mas é conhecida entre os fãs por suas apresentações. Na canção, que é tocada no piano lentamente, a cantora conduz um trio de jazz e exprime em sua voz a angústia e o sofrimento de um amor perdido: Ela pode te ter agora/Eu só quero desvanecer/Sacrificar a minha vida para aliviar esta dor/Quanta dor/ Senhor, tirar a dor/Isso é insano?.
Old Memories (Originals e Unlocked) consegue cativar o ouvinte por também trazer a melancolia clássica das canções de Alicia. A cantora relata a ausência de controle que temos em relação às memórias, por não se submeterem às nossas vontades. Aparecem antes de sair/E desaparecem quando se deseja que elas fiquem/Nenhum coração é imune, nenhum segredo é guardado. Os compassos ¾ e 6/8 utilizados na melodia nos relembram duas de suas músicas mais famosas: Fallin e If I Ain’t Got You. Alicia afirma que Old Memories está agora entre suas canções favoritas, admitindo que algo especial acontece quando ela usa esse tempo.
Em Nat King Cole (Originals e Unlocked), uma das únicas músicas não-românticas de KEYS, Alicia cria uma obra motivacional na qual encoraja o destinatário a ter uma atitude confiante. Na composição, ela faz cria uma relação com o comportamento do cantor afro-americano icônico dos anos 20, Nat King Cole. A artista demonstra conhecer e admirar a autoconfiança e criatividade do cantor e instiga o ouvinte a ser como ele, não se escondendo ou se acomodando em clichês, mas sim tendo coragem para criar coisas novas. A faixa está muito relacionada ao conceito geral do álbum, que destaca a importância de expressar cada versão de si mesmo. Na visão de Alicia, essa é a única forma de se destacar e tentar “ser inesquecível”, fazendo referência a mais famosa canção de Cole, Unforgettable. A versão Unlocked é ainda mais instigante e calorosa, trazendo a participação de Lil Wayne no primeiro verso.
Entre essas e outras peças da obra, Alicia canta sobre o amor, a solidão, o desejo e a ousadia. Em sua proposta de apresentar seu próprio mundo, ela demonstra ser uma mulher com emoções confusas e misturadas. Mas seus sentimentos são simplesmente humanos, e são capazes de fazer qualquer um se identificar. Nas diferentes versões das músicas, em que ela usa uma quantidade grande de acordes, instrumentos e deixa sua voz livre para se expressar de diversas maneiras, Alicia expõe um lindo e improvisado jazz, e reafirma sua capacidade de se reinventar e de tornar cada criação única.
Foi na junção da essência de suas músicas clássicas, com a originalidade de suas novas formas de expressão, que KEYS nasceu. O álbum alcança uma diversidade de pessoas: aquela que encontra serenidade e compreensão nas letras profundas de Alicia, a que se delicia em suas melodias no piano, a que precisa de encorajamento para o dia a dia, ou até a que busca por canções eletrizantes para se divertir. A paixão e sinceridade reveladas em KEYS levam o ouvinte a uma nova dimensão, mas também reacendem a chama dos que foram conquistados pela voz arrebatadora de uma jovem nova-iorquina apaixonada nos início dos anos 2000. Agora como artista independente, o futuro de Alicia Keys é incerto. Contudo, podemos ter certeza de que mesmo com duas décadas recheadas de projetos e prêmios, a cantora ainda tem muito de si a mostrar ao mundo, talvez mais do que achávamos.