Nathalia Tetzner
O ano era 2017 e Katy Perry dava início ao seu tão ansiado quarto álbum de estúdio com o seguinte questionamento: “se eu perdesse tudo hoje, você ficaria?”. E, não é que ela perdeu tudo mesmo? Autêntico, inovador e coeso; todos esses adjetivos são o que Perry e a sua equipe esperavam que o seu mais novo projeto fosse. A realidade é que a artista e a sua obra passaram a coexistir em um só estado de espírito e, naturalmente, seus conflitos foram refletidos em suas composições. Vicioso, genérico e confuso: Witness é o registro da catarse pessoal e artística de uma das maiores hitmakers do século que, depois de tamanho sucesso, ainda não havia experimentado o gosto traumático e amargo da quebra de expectativa.
Katheryn Elizabeth Hudson nasceu em meio ao dogmático ambiente conservador estadunidense dos anos 80. Filha de pastores, a alma pura e inocente que não tinha permissão para escutar Madonna ou assistir Os Smurfs lançou o seu primeiro e último disco em 2001. Katy Hudson, o autointitulado álbum cristão vendeu menos de 200 cópias, o suficiente para Katheryn ser assassinada e substituída por uma diva pop sem escrúpulos. Livre de qualquer estereótipo, Katy Perry ganhou vida e as principais paradas de Música mundiais ao cantar sobre beijar garotas e acordar na Cidade do Pecado. Uma década depois de sua ascensão, a homogeneidade consolidada de Perry encontraria o seu fim.
Witness, ou testemunha em português, chegou ao ouvido dos fãs após uma espera de quatro anos desde o lançamento de PRISM, seu estrondoso antecessor. Mas até esse momento chegar, centenas de globos espelhados foram avistados ao redor de todo o planeta, inclusive um no Rio de Janeiro. Ao encontrá-los, o público escutava através de um fone de ouvido a faixa Chained To The Rhythm. Se dava início a nova Era musical da garota californiana mais querida pelo Brasil. A divulgação em grande estilo não foi novidade, já que o retorno comercial dos últimos três álbuns provava que não importava o tamanho da expectativa, pois ela definitivamente seria ultrapassada. Entretanto, não foi isso o que aconteceu.
Para os amantes da Arte, arrecadação de lucros não é tudo. Na época, nem Katy Perry, nem seus fãs sabiam disso. Afinal, a Física demonstra que quanto mais alto se sobe, maior é a queda e ninguém quer sentir a dor da gravidade ao cair das nuvens de um sonho e acordar no concreto. Cidadã ativa politicamente, o desencanto se originou durante o período eleitoral estadunidense em 2016. A rainha da selva vividamente apoiou a campanha de Hillary Clinton e, com a posse de Donald Trump, ela decidiu que não iria deixar o ativismo de lado. A artista lançou dois vídeos para o primeiro single do Witness: um roedor correndo em círculos e um passeio por um parque de diversões distópico, sátiras nítidas e perspicazes ao Sonho Americano.
“Este é o meu desejo/Derrubar os muros para conectar, inspirar/Ei, aí em cima, no seu lugar alto, mentirosos/O tempo está contado para o império/A verdade que eles alimentam é fraca/Como muitas outras vezes antes/Eles são gananciosos sobre o povo/Eles estão tropeçando e sendo descuidados/E nós estamos prestes a nos revoltar/Eles acordaram, eles acordaram os leões”
Os versos de Skip Marley, neto de Bob Marley, arrepiam e provocam um sentimento de pertencimento. É como se o ouvinte estivesse ali, ao lado de Marley, lutando a mesma luta dele e de Perry, em luto pelos mesmos ideais suprimidos. Se Chained To The Rhythm acorrenta quem escuta ao seu ritmo e pode ser considerada um primor, por que o público não comprou? Logo ele, que sempre reclamava da subjetividade e do duplo-sentido nas letras da lenda do Egito, agora estava rejeitando o amadurecimento e suplicando pelo retorno daquela que sempre escondeu tópicos sérios através de analogias bobas. Em uma mistura conturbada, a sua mais nova persona se juntou ao seu passado para compor outras 16 faixas.
Flutuando na inconsistência do seu ser, Witness cumpre em parte o que prometeu. Apelidado pela sua criadora de purposeful pop (pop com propósito), o disco varia entre o público e o privado. Enquanto em alguns minutos ele narra o poder da mulher de forma polida, em outros, ele desiste do tom amargo e trata o feminino com três sílabas simples, Hey Hey Hey, feitas para grudar na mente como um chiclete. Em meio ao amadurecimento, a Katy Perry do passado que sempre precisou de um pouquinho de Peter Pan ainda estava lá. Faltava a sua larga audiência que, assustada, correu para longe quando a cantora abraçou o seu pixie cut depois de um corte químico, drasticamente alterando a sua identidade visual.
É impossível escrever sobre o quarto álbum de estúdio de Perry sem abranger a queda do número de admiradores e o aumento do ódio gratuito que ela sofreu. O senso comum gerado em torno do disco é a causa e efeito dele mesmo. Não há como mudar a percepção tão estritamente estabelecida: todos os adjetivos negativos remetem ao projeto. Contudo, 5 anos depois, nunca foi tão perceptível o fato de que escutá-lo também pode ser benéfico. Como um remédio ruim de engolir, ele é amargo no gosto e anestesiante nas consequências. Para a extraterrestre e os seus fãs que continuaram segurando a sua mão, o fruto seria colhido apenas no término do tratamento.
Catarse é um substantivo feminino. Para a religião, medicina e filosofia da Antiguidade grega, ela significa a libertação do que é estranho à essência e que, por isso, corrompe. Já para a estética e o teatro, ela simboliza a purificação do espectador por meio da purgação dos seus sentimentos. Se Witness age como um medicamento, o diagnóstico de catarse é o que permite o seu uso. Tal porque, Katy Perry, acostumada a agir como um antídoto para a tristeza, embarcou pela primeira e única vez em uma jornada profunda pelo autoconhecimento. Expurgando tudo o que ela conhecia de si mesma, todos que entram em contato com a sua catarse são afetados, não há como continuar o mesmo.
Em busca de uma testemunha e vulnerável como nunca, Perry tornou o mundo o seu maior observador. Witness World Wide entrou ao ar na madrugada do lançamento do álbum e permaneceu ao vivo na plataforma do YouTube durante 4 dias. Com milhares de câmeras supervisionando cada passo, a cantora nunca antes esteve tão exposta. E ela não se escondeu, pelo contrário, florescendo como nunca. Entrevistas engraçadas, sessões de terapia emocionantes e cochilos ao lado de sua cachorra Nugget, a livestream significou tudo que ela havia colocado em versos na última balada do disco: a jogada com a pronúncia parecida de Into Me You See (Em mim você vê), título da faixa, e intimacy (intimidade) resume com maestria a vontade de quebrar todas as paredes altas que ela construiu para se proteger.
Produzido por Max Martin, Oscar Holter e Ali Payami, Witness embarca no labirinto mental de Katy Perry sem deixar o pop para trás do experimental. O projeto soa distinto ao ser comparado com a discografia de sua dona, ainda que tenha sido assinado pelos mesmos parceiros musicais. O time acerta ao retomar a euforia e a excitação em Roulette, favorita unânime dos fãs, enquanto comete um deslize com Bigger Than Me, uma letra notável que se torna vazia e superficial com o arranjo nada inspirado. Oscilando de um lado para o outro como um pêndulo, o álbum se movimenta constantemente, gerando para os aventureiros, a adrenalina e para os conservadores, o enjoo.
Indo na contramão da proposta do disco, Bon Appétit é a apologia a culinária mais controversa dentre todas as infinitas músicas já lançadas com o mesmo tema por Perry. Sensual, vibrante e provocadora, a torta de cereja surpreendeu e incomodou com o seu refrão açucarado. Porém, nada chocou tanto quanto a experiência visual do videoclipe dirigido por Dent De Cuir e regado de uma visão pitoresca do canibalismo. Especialista no uso do duplo sentido, ela infelizmente se juntou ao grupo de rap Migos para uma colaboração no segundo single. 5 anos atrás, o trio já colecionava acusações de homofobia e a parceria gerou uma revolta racional entre os fãs.
Toda a problemática do momento alcançou o seu ápice durante uma performance promocional no Saturday Night Live, tradicional programa humorístico dos Estados Unidos. Desconfortável e nitidamente sendo a única com vontade de trabalhar no palco, a oficial da marinha foi ridicularizada por meses. A verdade é que Quavo, Offset e Takeoff se recusaram a cantar ao lado de drag queens e, de última hora, a diva pop teve que improvisar uma encenação que, no mínimo, prendesse a atenção. Recheado de polêmicas, a parceria era completamente desnecessária. O desejo de bom apetite não adiantou, a má digestão tomou conta. Mais uma vez na Era Witness, Katy Perry dançou com o diabo.
“Eu escrevo, apago, repito/Mas que bem fará reabrir a ferida?”, Save As Draft é a maior contribuição de Perry para o seu quarto álbum de estúdio. Brutalmente sentimental, os vocais e os acordes transportam qualquer um para a Sunset Boulevard, rua de Los Angeles onde um SUV atrai os olhares da compositora e dos ouvintes. Ela pode até ter salvo como rascunho as indiretas para um ex-namorado, contudo, não teve medo ou recuou ao deixar todos os seus sentimentos explícitos e se entregar para a sua catarse na faixa. Nos segundos finais, ela não está sozinha quando olha para uma bifurcação no meio da estrada, pelo contrário, todos estão prontos para escolher a melhor direção ao seu lado.
Outro destaque é Déjà Vu, a sensação menos condizente com o que Witness transmite é a representação do desejo inicial de não repetir as mesmas fórmulas dos seus projetos anteriores. Cansada de correr em loop e definindo a insanidade como o ato de viver todos os dias da mesma maneira, a artista faz uma hipnose por meio das ondas sonoras. Igualmente espetacular, a turnê de divulgação, Witness: The Tour, carregou visuais deslumbrantes que contavam com um olho gigantesco como telão e uma passarela em formato de lágrima. Com uma estrutura de outro mundo e figurinos esplêndidos, a nerd ainda está devendo o documentário para os fãs que querem reviver o show.
Um dos cenários mais aleatórios que Katy Perry já criou foi a participação da cantora brasileira e meme internacional Gretchen, no Lyric Video de Swish Swish, o terceiro single do disco, com a rapper Nicki Minaj. A atração nacional trouxe exatamente o que faltava para a música, o carisma, tanto é que o videoclipe oficial falha em ser tão dinâmico e marcante. Durante a passagem da Witness: The Tour pelo Brasil, Perry fez questão de enaltecer a rainha do rebolado em São Paulo. Já no Rio, ela homenageou Marielle Franco, vereadora carioca assassinada no mesmo mês. Com o fim da turnê, a cantora humildemente encerrou a Era que se tornou um divisor de águas na sua história.
Vicioso, genérico e confuso, há quem diga que Witness foi um completo fracasso. Primeiro lugar da Billboard 200, principal parada musical estadunidense, em sua semana de estreia, videoclipes com bilhões de visualizações e plateias lotadas por onde passou, o projeto foi uma decepção apenas para os parâmetros altíssimos conquistados pela estrela do pop. Para ela, a catarse experimentada foi necessária e concluir o trabalho significou uma vitória pessoal: “Sou grata pela dor porque me empurrou para o crescimento. E agora, sinto que não sou como uma estrela pop sedenta e desesperada que está apenas tentando acertar um número”, afirmou ao ser entrevistada por Zane Lowe para a Apple Music em 2020.
“Eles disseram que eu não ia a lugar nenhum, tentaram me deixar de fora/Peguei aqueles paus e pedras, mostrei que eu poderia construir uma casa/Eles me dizem que sou louca, mas nunca vou deixar que eles me mudem/Até que eles me cubram em margaridas, margaridas, margaridas”
5 anos desde o seu lançamento, nunca houve tantos motivos para celebrar Witness. Depois de se libertar do que a corrompia e purificar os seus espectadores, Katy Perry voltou para a cena pop com o seu quinto álbum de estúdio, Smile. O título do projeto diz muito sobre o que o final de sua catarse a aguardava: o sorriso. Após todos os encontros e desencontros, Perry conhece e ama ela mesma. Mas, não somente, Daisy Dove Bloom veio ao mundo no mesmo dia que o projeto chegou às plataformas de streaming, a filha é tudo o que ela mais desejou e a prova maior de sua resiliência. Agora, com o sorriso recuperado, todos enxergam o brilho dela a uma milha de distância.
Há males que vêm para o bem e Witness é um deles. Dentro de sua intimidade, todo o mundo pôde testemunhar a sua artisticidade e vulnerabilidade. O álbum pode até ser lembrado pela sua quebra de expectativa e lacunas técnicas, porém, o que o torna memorável é a coexistência entre artista e obra que permitiu uma catarse inesquecível. Se, há 5 anos, Katy Perry incansávelmente andava à procura de alguém que a testemunhasse, hoje ela somente se preocupa em amar a vida. A dona de tantos hinos de superação e motivação enfim encontrou a sua felicidade. Witness completa mais uma volta ao redor do Sol sem deixar de ter uma testemunha para comemorá-lo.