Fábio Gabriel Souza
“Snow cai como a neve, sempre por cima”
– Coriolanus Snow
É difícil mergulhar em um universo novamente oito anos após conhecê-lo, ainda mais quando nos deparamos com uma realidade tão diferente da apresentada na quadrilogia original, Jogos Vorazes. Entretanto, Jogos Vorazes – A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes faz um bom trabalho ao representar uma nova versão de Panem de maneira tão imersiva. Se passando 64 anos antes de Katniss Everdeen, o longa acontece nos primórdios dessa sociedade totalitária e se ocupa em mostrar, de forma cruel e crua, as origens dos Jogos Vorazes, que é muito rústico e está longe de ser o espetáculo apresentado anteriormente.
Nos momentos iniciais, conhecemos o jovem Coriolanus Snow (Tom Blyth), que após os dias escuros, a morte de seu pai e o suposto bombardeamento do Distrito 13, se encontra extremamente pobre. Com a família reduzida, a sua prima Tigris (Hunter Schafer) e a caduca Lady-Vó (Fionnula Flanagan), que se lembra apenas dos dias de glória da família Snow e da Capital – atualmente em processo de reconstrução –, são suas únicas redes de apoio. Assim, o Snow sonha com o prêmio Plinth, que começaria a restaurar a sua fortuna e seria sua porta de entrada para a universidade.
Para alcançar esse objetivo, ele e outros 23 jovens recebem a missão de serem mentores dos tributos e tornarem os jogos um espetáculo, que tomaria o lugar de uma memória da fome e miséria trazidos pela guerra. Assim, o personagem conhece a peculiar Lucy Gray (Rachel Zegler), a garota escolhida do Distrito 12. A partir desse momento, somos agraciados com uma escalada de acontecimentos que deixa qualquer um sem fôlego, desconfortável e até mesmo chocado. O filme acerta em nunca colocar Coriolanus Snow como um herói, mesmo sendo o protagonista, e entrega uma Lucy enigmática e misteriosa retratada pelos olhos do vilão.
A existência da história por si só é um tapa na cara dos fãs que estavam ansiosos para ver novamente outra edição espetacularizada dos Jogos Vorazes, muito distante do que foi entregue, mas que não deixou de agradar. A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes retrata uma versão crua, melancólica, rústica e verdadeira da punição, com cenas fortes e muito mais violentas do que estamos acostumados, mostrando o que de fato está por trás do reality: a crueldade humana. Não seriam os fãs iguais a Capital ao quererem mais um espetáculo?
Em paralelo, há histórias sendo contadas em segundo plano, como a triste e sem graça jornada de Sejanus Plinth (Josh Andres Rivera), que traz consigo uma crítica social entediante, porém necessária e sem plateia, de um garoto que se sente sufocado com a riqueza da Capital e também deslocado por ter sido do Distrito 2. Fato esse distante de representar o personagem descrito nos livros, que tem um pouco mais de profundidade. Sejanus parece estar falando com as paredes durante todo o filme. A narrativa ainda usa e abusa de teorias filosóficas já consolidadas, como a guerra de todos contra todos de Thomas Hobbes, e postula a Capital como dona de um contrato social que traz a paz.
A direção realizada por Francis Lawrence, de Eu Sou a Lenda (2007) e de outros filmes da saga Jogos Vorazes, não deixa nada a desejar. O cineasta consegue transmitir por meio de imagens e cenas primorosas a complexa cabeça de Coryo, tarefa muito difícil por sinal. É nítido a mudança de estilos com o desenrolar das cenas: ora intimista, ora distante e na maioria das vezes com takes inflamados. Assim, acompanhamos de maneira subliminar a ambiguidade do personagem principal, que navega entre a empatia e a ganância.
A Fotografia, desenvolvida por Jo Willems, desperta a curiosidade de qualquer um com imagens grandiosas da Capital que remontam aos magníficos prédios da Europa Oriental no auge da União Soviética e vão até cenas empobrecidas, impactantes e tristes que retratam a realidade dos tributos. Além disso, Willems complementa brilhantemente o trabalho de Lawrence, agregando uma ambiguidade de takes durante toda a produção.
O elenco chama atenção com nomes não tão consolidados na indústria e também com artistas de peso em Hollywood. A atuação de Tom Blyth é uma agradável experiência. Mesmo longe de ser tão magnético quanto Donald Sutherland (Jogos Vorazes), o ator performa muito bem a complexidade de um vilão que ainda não sabe ser vilão. Do outro lado, temos Rachel Zegler, que brilha e ganha um imenso destaque. A atuação e vocais emocionam e a atriz surpreendeu os fãs ao entregar uma Lucy Gray que se conecta com todos a sua volta, característica intrínseca da personagem.
Viola Davis, como sempre, dá vida com excelência à figura caricata e sádica de Dra. Gaul que, sendo totalmente descolada da realidade, nos remete a loucura e insensibilidade representada pelos Jogos Vorazes. Peter Dinklage (Game of Thrones), rouba a cena como o maior antagonista de Coriolanus Snow. Diga-se de passagem, Casca Highbottom poderia ter sido criado apenas para ter o ator como intérprete – parece que o papel foi feito para ele. Já Hunter Schafer (Euphoria), mesmo com pouco tempo de tela e mal aproveitada pela produção, brilha como Tigris Snow, ao mostrar de maneira sutil e rica, a bondade e o amor na Capital.
A trilha sonora é perfeita e trabalha de maneira síncrona com a direção e a Fotografia para realizar uma caracterização de ambientes. A música da cena final dos Jogos, por exemplo, contribui para a sequência de acontecimentos emocionantes e, juntamente ao clímax da canção, protagoniza o momento mais tenso de todo o longa-metragem. Cenas a frente, acompanhamos a explicação e a composição de The Hanging Tree, um dos principais marcos da série e que integra memória afetiva à produção.
Com uma narrativa muito bem consolidada, o filme agrega de forma positiva ao universo construído por Suzanne Collins, mas sofre com um problema de ritmo. É fato que em mais de duas horas e meia, os dois primeiros atos são vibrantes e magnéticos. Entretanto, o terceiro e o mais importante, a narrativa sofre uma grande perda de cenas de ação e aparenta se tornar um melodrama. O que é uma pena, visto que é ali que o verdadeiro vilão da saga dá as caras.
“São as coisas que mais amamos, que nos destroem, Srta. Everdeen”
– Coriolanus Snow em A Esperança
Jogos Vorazes – A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, inspirado no livro de mesmo nome escrito por Collins, estreou no Cinema garantindo alta aprovação da audiência. O filme trouxe consigo críticas pertinentes tanto para a sociedade quanto para os impactos causados pela saga cinematográfica original, e agregou de maneira pertinente e interessante o universo de Jogos Vorazes.