Vitória Vulcano
Quando 2021 ainda era uma esperança requisitada, a numerologia já o denominava ano cinco. Representante da versatilidade vinda das novas oportunidades e regido pela deusa Vênus, esse reinício precisava ser marcado pelo amor – e recheado de explorações e metamorfoses. O marketing era de impacto, e um antigo Anti-Herói fez a boa sorte implantada virar refém de suas composições. Entre o alto-mar e solo firme de um outubro ligeiramente retrógrado, Jão se transforma em pirata e embarca nas nuances mais virtuosas de sua carreira.
Composto por 11 faixas, o terceiro álbum de estúdio do jovem entrega emoções familiares sob perspectivas aprimoradas da diversidade do pop brasileiro atual. Contracenando com os típicos sintomas e desdobramentos de um coração partido, a sonoridade do projeto se debruça em ritmos experimentais e letras (bem mais) intimistas, buscando amadurecer a figura de Jão. Se a energia envolvente do primeiro single da era já indicava maior espontaneidade, o trabalho final é um mergulho nas multifaces do artista e no mar de identificação invocado em nós.
Tendo sido construída desde o ano passado, a obra também reflete o sentimento coletivo mais cobiçado da pandemia: liberdade. Mas essa condição é muito mais complexa do que o poder de ir e vir, principalmente para Jão. Nas palavras do mesmo, Pirata “é muito sobre quem eu quero e quem eu almejo ser”. Assim, percorrendo temas como amor, sexo, descobertas e despedidas, o conjunto musical não pretende nada além da honestidade de recomeçar. E narrativas não-lineares, iguais as celebradas pelo cantor, fazem parte do trajeto.
A aventura é introduzida – e até parece naufragar – pela melodia psicodélica de Clarão. Produzida, junto a outras oito músicas do disco, em parceria com o renomado Zebu, a faixa estridente abafa os vocais e a euforia inicial de Jão. Mesmo que condizentes com o ritmo eletrônico, o saudosismo no relato das memórias e a excitação diante do futuro acabam se reduzindo à uma estranha confusão sonora.
Porém, o electropop não demora a surgir como um acerto, logo na música seguinte. Não Te Amo é repleta de controvérsias melódicas e escritas, retratando o caos e entorpecimento corrosivo de uma paixão mal resolvida. Apesar da audácia em negar a intensidade de seus afetos no título da canção, as reflexões, inteligentemente bagunçadas na melancolia do cantor, impedem sua consciência de seguir em frente: “E se eu te esquecer, quem vai lembrar de nós, amor?”, contempla ele.
A continuidade do projeto investe grande vigor na ambiguidade lírica. Esbaldando-se na agonia festejante de ser Idiota por amor e cantando o vislumbre sedutor de um falso Santo, a ousadia franca de Jão carrega a obra de dimensão plural, se consagrando por exaltar a tão comum e humana dualidade romântica. A conclusão? Machucar e se deixar ferir são premissas da vida. Um dia é da caça, outro do caçador – mas todo é o calendário para o artista corajoso que expõe suas cicatrizes e perversidades na mesma constância.
No entanto, ser livre também exige perder o que deixou de te representar. Colidindo o passado ao presente, Acontece constrói fluxos agridoces de pensamento e sonoridade que, altamente harmonizados, geram compreensões duras e inevitáveis: “O que o amor vira quando chega o fim?/É só que dói um pouco quando eu lembro assim/Mas enfim, acontece”, deduz o cantor. Você Me Perdeu, por outro lado, é uma lavagem de alma. Em resposta mais resignada e autoconstrutiva à Nota de Voz 8, os arranjos suaves ultrapassam as lembranças de Jão e, no compasso de dois minutos e meio, desenlaçam a antiga dor de sua voz.
O adolescente interiorano que começou a desbravar o mundo pelos corredores da Universidade de São Paulo também ganha espaço em Pirata. Compilação de histórias, diversões, imensidões sentimentais e autodescobertas: Meninos e Meninas é um coming-of-age rítmico contagiante, protagonizado por recordações de 2013 e coroado pela carta pessoal e sensível à bissexualidade do artista.
Após navegar pela descontração sonora e letra chiclete de Coringa, o disco encontra seu último suspiro pop-eletrônico. Em atmosfera alucinógena, Doce mescla constatações a angústias e se afunda em momentos magnéticos de epifania: “Eu sou a soma do que eu não consigo/Algo em mim ainda tá perdido/E eu preciso encontrar”, afirma, extasiado, o cantor.
Materializando-se como um diário de bordo, ao avistar o cais, as faixas restantes adormecem os vinte e seis anos de vida destrinchados para admirar o horizonte inexplorado e a paz iminente, ambos conquistados – por e para Jão – ao longo da viagem. A alegoria nutrida de sentimentos reais, em sintonia aos casuais solos de guitarra, preenche e enobrece Tempos de Glória. Finalmente, interligando composição e produção feitas unicamente pelo jovem, Olhos Vermelhos evoca toda a complexidade necessária para sintetizar o propósito locomotor do álbum: liberdade e solidão fazem as pazes em um convite tentador para nadar além de nosso oceano particular.
Da nostalgia à reinvenção, o projeto reforça uma realidade: ninguém descreve o peso e o gosto de uma desilusão, amorosa ou existencialista, como Jão. Deixando-se influenciar por dezenas de estilos, o cantor habita sua própria aura musical e, mesmo nos equívocos, mostra a pluralidade exigida para se destacar. Firmando um elo valioso entre águas passadas e terras à vista, PIRATA é símbolo de crescimento inquieto e evolução constante. E, quase às vésperas de 2022, não é possível mensurar se alcançamos todo o potencial que o ano vigente teria. Mas, definitivamente, presenciamos uma incrível ascensão artística.