Vitor Evangelista
Desapego é peça essencial no trabalho de adaptar obras entre mídias. Dois anos depois de fazer barulho com It – A Coisa, Andy Muschietti retorna para seu grand finale. Porém, na ânsia de honrar todos os demônios de Stephen King, It – Capítulo Dois nunca consegue atingir o pico de genialidade que poderia. A sequência do embate entre os Perdedores (agora adultos) e Pennywise (ainda bizarro), embora mais visceral e sanguinolenta que o filme anterior, fecha com um sentimento de carência.
Passados 27 anos do primeiro filme, o grupo dos Perdedores tem de retornar à cidadezinha de Derry para dar fim à Coisa, agora pra valer. O livro original de Stephen King, It – A Coisa, de 1986, trabalha com o presente e o passado convergindo por meio de flashbacks. O diretor Andy Muschietti, ao lado da Warner Bros, optou por decupar a história em duas partes, uma com o elenco infantil e a seguinte, e final, com os personagens já adultos (mas ainda com a inserção de cenas da infância).
Decisão, essa, acertada. Ao passo que o filme de 2017 trabalhava muito no âmbito do temor e das descobertas da adolescência, esta sequência cria paralelos interessantes sobre depressão, sobre memórias e sobre seguir em frente. Isso acaba criando duas auras ao redor das produções que, em sintonia, se complementam. Assistidas as quase cinco horas de adaptação, It é nada mais, nada menos, que uma crônica sobre a vida e sobre as dificuldades de superar certos traumas. O gênero do terror sempre carregou essa cruz de transmitir a seu público uma mensagem inerente à sociedade. Normalmente maquiada com monstros e, nesse caso específico, um palhaço dançarino, interpretado com uma astúcia ímpar pelo sueco Bill Skarsgard. As diversas facetas de Pennywise são um agrado visual, mesmo que não funcionem em total harmonia no campo narrativo.
A escalação do elenco adulto chega a beirar o surreal. O grupo, na casa dos 40 anos, mimetiza por completo os maneirismos de suas contrapartes e convence logo de cara. Começando pelo líder Bill (James McAvoy), o personagem se entrelaça num misto de culpa, ressentimento e provação. O ator não pestaneja ao adotar a gagueira e o olhar taciturno de Jaeden Martell, intérprete do jovem no Capítulo Um. Ao seu lado, uma ressentida Beverly (Jessica Chastain). Vítima de todos os homens que já cruzaram seu caminho, a mulher demora a aceitar seu papel na cartada final contra o palhaço. Sophia Lillis, sua versão adolescente, também é efervescente em cena. Mike (Isaiah Mustafa), foi o único dos Perdedores a ficar em Derry. O personagem é o grande farol de esperança do grupo, uma luz de sabedoria. É ele, também, que serve como o livro de respostas para quem assiste.
Stanley (Andy Bean) é muito mais uma rememoração do que um personagem. As cenas do passado com o ator Wyatt Oleff são as melhores do filme. Ben (Jay Ryan) quebra a linha do clichê clássico do gostosão em filmes de terror e constrói belos momentos com Beverly. Já Ed (James Ransone) é dono de uma boa dinâmica cômica que conversa bastante com o personagem de Bill Hader. O Richie de Hader é o grande destaque de It – Capítulo Dois. O astro do seriado Barry é quem melhor evolui seu personagem original. Vivido por Finn Wolfhard (Stranger Things) no filme de 2017, Richie é o alívio cômico do grupo. Entretanto, o extenso roteiro de Gary Dauberman ri das convenções pragmáticas do cinema de horror e injeta a maior carga dramática do filme no comediante. Virada arriscada, mas que compensa e muito na experiência final.
A obra original de Stephen King conta com mais de mil páginas. Para essa tipo de adaptação, o trabalho conjunto de roteiro e direção necessitavam de atenção redobrada. É certo que It – Capítulo Dois atualiza muito do material base publicado nos anos 80. Todavia, o texto não desapega de quase nada do livro. Todas as medonhas criaturas estão aqui, o banho de sangue e o festival de balões vermelhos também.
Outro tique do diretor Andy Muschietti é de filmar seu antagonista sempre da mesma maneira. Esse defeito já estava presente no It de 2017, mas no segundo capítulo a figura de Pennywise perde ainda mais sua força e irreverência. O palhaço diminui, literal e figurativamente. As sequências de tensão são guiadas sempre jogando seguro. A trilha sonora inquietante, um momento pré-tensão, o rápido alívio seguido pelo susto. Várias e várias e várias vezes.
O recurso funciona vez ou outra, mas logo se esgota. Enquanto narrativa, o Capítulo Dois de It é falho em nivelar por baixo a inteligência de seu público. No miolo, existem boas cenas, parcelas memoráveis e recheadas de um sadismo trágico; o que ocasiona o nascimento de uma sensação de vácuo, tanto de história quanto sentimental, é o caminho pelo qual o filme teima em seguir.
Por mais que se estendam por quase três horas, alguns acontecimentos do filme parecem corridos enquanto outros demoram demais a resolver. Culpa do ritmo da produção, que prefere construir tensões nada inventivas, uma atrás da outra, em detrimento do desenvolvimento dos personagens em tela.
Alguns dos Perdedores desviam dessa máxima e conseguem finalizar arcos coesos e bem entregues. Por mais que passem a sensação de puídos, os traumas e desesperos de Bill ornam bem em sua redenção. Richie também sai por cima ao lidar com seus demônios, e sua cena final sorri para os de coração mole.
Mas, aqui nem tudo são flores, ou balões vermelhos. Tanto Beverly, quanto Ben e Mike são prejudicados pela urgência do choque pelo choque dos sustos do palhaço. A designer de moda termina o filme sem resolver (em tela) qualquer problemática passada, ao passo que o arquiteto e o bibliotecário vêem os créditos subirem nunca tendo solucionado os momentos traumáticos que marcaram suas infâncias.
‘Eu odiei o final’. Bill, renomado autor de livros de horror, cansa de ouvir tal frase sobre suas obras ao longo do filme. O roteiro brinca com a metalinguagem e, logo no início, se exime de qualquer culpa futura. No caso de alguém detestar o fim de It, quem o realizou não tem culpa alguma. Isso, ao menos, na visão deles.
O filme também não se cansa de mostrar cenas dos Perdedores na infância, algumas originais outras recortadas do longa de 2017. Elas incham o material final, e muitas apenas repetem informações já consolidadas na mente do espectador. Setenta por cento das sequências do passado poderiam deixar o filme e o resultado seria agradável.
Dois segmentos de It – Capítulo Dois merecem destaque, mas por razões completamente opostas. O primeiro é logo na abertura: o ataque homofóbico que desperta Pennywise de sua longa ausência. Brutal, a cena não se preocupa em amenizar as ações dos criminosos e logo instaura um clima pecaminoso a quem acompanhará o restante da película. O outro momento que merece atenção é a espirituosa cameo de Stephen King, como um dono de livraria; sutilmente ácida.
Menos espirituosa que sua irmã mais velha, a sequência de It ainda consegue criar imagens perturbadoras. Muito mais comédia que qualquer outro gênero, esse Capítulo Dois não arrisca em quase nada mas é um ótimo laboratório que coloca em prática as maluquices da mente de Stephen King. É injusto, também, almejar a máxima aqui quando o primeiro filme nunca se designa a tal papel.
O trabalho de Andy Muschietti poderia ser melhor lapidado, mas a brilhante escolha e execução do elenco principal ocupa as frestas vazias das cavernas do palhaço. It – Capítulo Dois é um trabalho louvável de quem ama a literatura, mas que ainda não sabe caminhar em linha reta no campo do cinema.
Um comentário em “O amor ao original é o grande vilão de It – Capítulo Dois”