Nathália Mendes
O apocalipse na entrada dos anos 2000, com aviões caindo do céu e sistemas de computação zerando à meia noite, não é estranho para os millennials. O mesmo drama-fim-do-mundo, somado a terrorismo, compõe a trama nada revolucionária de Interrompemos a Programação. O filme de Jakub Piatek se passa dentro de um canal de televisão na Polônia durante o bug do milênio, e numa rápida sucessão de acontecimentos, anda por um labirinto de confusão e referências polonesas. Com um protagonista disfuncional e uma fotografia lindíssima, o diferencial do longa mora na frustração dos espectadores, deixados, propositalmente, com mais perguntas do que respostas.
É véspera de Ano Novo em 1999 na Polônia e um jovem armado invade um set de televisão com uma missão: transmitir uma mensagem para todo o país. Prime Time, em seu título original, estreou em 30 de janeiro de 2021, parte do Festival de Sundance, e, desde que chegou ao catálogo da Netflix, irritou os assinantes. Isso se deve ao enredo confuso que demanda a observação do contexto histórico: a virada do milênio dentro da sociedade polonesa.
Piatek segue esse enredo erroneamente adotado pela sociedade – já que a virada do século aconteceu em 2001 – e apresenta peças de um quebra-cabeça complicado. No longa, o canal de televisão está em transmissão, apesar da ameaça Y2K de zerar os sistemas operacionais, e o jovem polonês Sebastian (Bartosz Bielenia) faz 2 reféns para forçar sua entrada ao vivo. Ele deseja falar a todos os jovens de seu país, logo após a aparição do Presidente, sem deixar claro o que faria no momento em que ligassem as câmeras.
Sebastian e seus reféns, o guarda Grzegorz (Andrzej Klal) e a apresentadora Mira Kryle (Magdalena Poplawska), estão cercados por uma equipe de negociação e policiais despreparados. Todo o ataque é gravado pelos produtores do canal, trazendo a banalização do entretenimento na televisão como debate. Ali, as personagens representam grupos sociais, e a conduta de cada um deles numa situação de reféns sob o olhar de todas as câmeras, ilustra suas respectivas mediocridades.
Com o desenrolar da trama, Mira, Grzegorz e Sebastian se aproximam, e Interrompemos a Programação consegue abordar todas as personagens sem maniqueísmo ou uma simples humanização do vilão. O fato é que pouco se sabe sobre Mira e Grzegorz, mas ambos dividem mais semelhanças com seu sequestrador do que com a força tarefa do lado de fora. O trio representa uma parcela de indivíduos muito diferentes entre si, mas que não possuem voz nenhuma dentro de esferas tão poderosas como a televisiva.
Sob o olhar histórico, a trama tem muitos elementos dessa sociedade polonesa nos anos 90. Piatek adotou o estilo O Grande Irmão com uma parede de telas e o conceito de um poder soberano vigilante – a televisão. Pequenos vídeos são transmitidos ao longo do filme, com crianças brincando na neve e, em especial, um grupo de jovens que contam o desejo em sair da Polônia para a Alemanha. O papel da televisão como meio de comunicação foi fundamental para moldar esse desejo, pois essa juventude vivia o fim da Guerra Fria e ansiava a prosperidade do modelo capitalista. Seria contra um futuro mentiroso que Sebastian lutava para falar?
A cena de destaque em Interrompemos a Programação e no roteiro de Lukasz Czapski acontece com a incorporação do contexto histórico numa sequência dramática: a entrada do pai de Sebastian. Formada por um diálogo com elementos culturais e atuação impecável de Bielenia, o momento corta o coração de qualquer um. A humilhação do jovem rende algumas informações: ele havia abandonado a escola, sofria de gagueira quando criança, e, segundo o pai, “seu estilo de vida seria consertado na cadeia” – o que sugere a abordagem de muitos dos tabus nos anos 90.
Não é atoa que Bartosz Bielenia foi protagonista de Corpus Christi, indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2020; e, novamente, o ator brilha, agora no paradoxo emocional de Sebastian. Sua violência dá as caras todas as vezes que a equipe de negociação privilegia o horário nobre ao invés da vida de dois seres humanos. O jovem é definido por um rebelde com causas demais, entre a vontade de destruir um sistema e não ter coragem para fazê-lo. Ainda assim, entre humilhação e lágrimas, Piatek mantém o julgamento moral ao espectador, pois o espaço-tempo em um filme curto não permite criar empatia ou ódio pelas personagens, mesmo que o conflito ético seja intenso.
O desempenho do ator rende, apesar de que, por vezes, o longa seja estático demais para um suspense rápido. A iluminação de tons frios dentro da fotografia dos anos 2000 é certeira, casando com a trilha sonora básica e futurista. E Interrompemos a Programação é conduzido assim, com os mesmos conflitos éticos até o fim, sem uma saída para Sebastian, sem um desfecho, sem a mensagem. A inteligência de Piatek é o caráter documental aplicado do meio para o final, com cenas de entrevistas durante o longa. Esse estilo cria a dúvida se o caso teria acontecido de verdade na Polônia, resultando em uma conexão forte com o contexto histórico e confusão dos espectadores não-poloneses.
Sebastian parecia prever que seria silenciado, e sua vida seria esquecida se não conseguisse estar na televisão. Eram ínfimas as chances de um fim diferente para Interrompemos a Programação. A televisão seleciona a dedo as vozes que serão reproduzidas, e, sem os reféns, ele só seria ouvido pelo interesse em espetacularizar sua história. Então, ele queima sua mensagem, é espancado e levado preso aos sons de “Estamos filmando!”. Quebra-se a expectativa das respostas, mas cada peça se encaixa no seu devido lugar. O dia 1 de janeiro de 2000 nasce, o dilema entre transmitir ou não um “terrorista” ao vivo permanece, e fecham-se as cortinas da espetacularização para guardar – muito bem – as fitas que gravaram Sebastian. O longa não entrega respostas mastigadas e espera a frustração, pois assim é a vida real.
Apostando no enredo, Sebastian é um millennial homossexual cuja mensagem é indecifrável. Ele teve problemas na escola, incluindo gagueira na fala, um pai péssimo, uma mãe solo, uma vida marginalizada, e encarava a entrada de um novo século sozinho, aos 20 anos. Tudo ao mesmo tempo em que os canais de televisão prometiam a liberdade nos anos 2000. Talvez ele tenha premeditado que só haveria liberdade para determinadas pessoas. Sebastian foi gerado e silenciado pelo mesmo sistema. Quanta audiência o fim da vida dele teria no horário nobre?