Laís David
Desde o início de sua carreira, Halsey nunca mirou em lançamentos simplórios. Da atmosfera adolescente de BADLANDS até a salada rítmica de Manic, a artista sempre gostou de desenvolver álbuns conceituais e histórias prévias para seus trabalhos. Em agosto de 2021, ela se arrisca no rock no seu maior lançamento até então, o irreverente If I Can’t Have Love, I Want Power.
Se até então Halsey balanceou sua criatividade marcante com a necessidade comercial de uma sonoridade pop, seu novo disco reverte muito bem esse histórico. Abandonando sua parceria fixa com grandes produtores mainstream como Lido e Cashmere Cat, a jovem cravou uma colaboração inédita com Trent Reznor e Atticus Ross, membros da premiadíssima banda de rock Nine Inch Nails. Reinventando (quase) que completamente seus próprios clichês, Halsey entrega o som mais interessante de sua discografia.
O trabalho transita entre a sexo, maternidade e saúde mental com maestria, e, por mais que desnecessário, o conhecimento extralinguístico torna o conceito do mesmo muito mais interessante: por sofrer de endometriose, Halsey chegou a sofrer um aborto espontâneo em 2015 e congelou seus óvulos na esperança de, um dia, engravidar. Em julho desse ano, no entanto, a artista deu à luz a seu primeiro filho, Ender, nome turco para ‘extremamente raro’.
Desde o anúncio de sua gravidez, ficou claro que a maternidade seria uma reformulação artística para Halsey. Se ela se aventurou um pouco com o rock em 3AM e Nightmare, é em If I Can’t Have Love que ela mergulha de vez – e com sucesso. The Tradition é a introdução perfeita para o universo de If I Can’t Have Love: em uma alegoria clara ao universo sórdido da indústria musical, o eu-lírico revela a trajetória angustiante de uma jovem pobre sendo vendida por míseras moedas: ‘’Pegue o que quiser, pegue o que puder/Pegue o que te agradar, não dou a mínima’’.
O tom lamentoso da faixa se repete em Bells in Santa Fe, uma balada esparsa e elétrica sobre a independência iminente de sua auto-sabotagem. Halsey destrincha suas feridas de uma maneira complexa e corajosa. Iniciando a seção uptempo do disco, Easier Than Lying transmite o ódio de um término amoroso da melhor forma possível. Com uma produção sufocante e sirenes estridentes, ela consegue sintetizar a ferocidade que a colocou ali em primeiro lugar. A cantora também não tem medo de se revelar como a raiz dos próprios problemas: Lilith resgata seu desastroso passado autodestrutivo sob pitadas de hip-hop.
Aqui, ela também se diverte como nunca. Seja no synth pop de Girl is a Gun ou nos riffs de garage rock de You asked for this, a estadunidense refresca os ouvintes com sua retórica autoconsciente: ‘’Vá em frente e seja uma garota crescida/Você pediu por isso/É melhor mostrar a eles porque você fala tão alto’’, ela reflete em You asked for this.
O clímax do disco, entretanto, fica para I am not a woman, i’m a god. A faixa é a junção perfeita do tato pop de Halsey e a produção eletrizante de Nine Inch Nails. Desafiando o conceito freudiano de Madonna-prostituta, a cantora se nega a assimilar o papel reducionista que a sociedade designa ao feminino: ‘’Eu não sou uma mulher, sou um deus/Eu não sou um mártir, sou um problema/Eu não sou uma lenda, sou uma fraude’’, ela repete.
Halsey também desafia o conceito social da maternidade e ainda incita a religiosidade do jeito mais irreverente possível: seja na confissão trágica de Whispers ou na aventura sáfica de honey, ela nunca foi tão honesta. Entretanto, a parte mais desafiadora da obra é 1121. Como uma carta de amor para seu filho, ela entoa: ‘’Eu não vou morrer por amor/Mas desde que te conheci/Você poderia ter meu coração e eu o quebraria por você’’.
No entanto, nem todos os momentos de If I Can’t Have Love, I Want Power são interessantes. Se You asked for this e 1121 são provas da excelência que Halsey consegue atingir, Darling é a memória tediosa da mesmice que ela entregou no passado. Num trabalho recheado de sons dilacerantes, ela soa mais como uma canção de ninar do que parte da obra por completo. O mesmo ocorre com The Lighthouse: se juntássemos todos os clichês de um side-b fajuto de rock, os 4 minutos da música seriam o infame resultado.
O álbum é encerrado com a agridoce Ya’aburnee, termo árabe que significa ‘que você me enterre’, gíria que representa a esperança de que você vai ser enterrado antes da pessoa amada, já que viver sem ela seria muito difícil. Em um dos excertos mais comoventes do projeto, ela se rasga por inteiro: ‘’E se não vivermos para sempre/Talvez um dia, a gente troque de lugar/Querido, você vai me enterrar/Antes de eu te enterrar’’.
Contrariando muitos ideais comerciais do lançamento de um disco, If I Can’t Have Love, I Want Power pode até não ser perfeito, mas é um ótimo reflexo da visão artística e profissional de Halsey. Provando que a maternidade e sexualidade podem coexistir de forma harmoniosa, o álbum rejeita os papéis pré-estabelecidos do patriarcado e instaura sua própria visão de sociedade: um lugar que, com certeza, Halsey é a detentora de todo o poder.