Jho Brunhara
Quando George R. R. Martin decidiu escrever o primeiro livro de As Crônicas de Gelo e Fogo, ele não queria apenas mais uma história de ficção. Ele queria um mundo fantasioso tão complexo que seria considerado “infilmável”. Mesmo assim, os terríveis D&D foram atrás do pepino e transformaram a obra na gigantesca Game of Thrones. Se ignorarmos muitos fatores, é uma adaptação ok, que consegue transferir parte da genialidade do livro para as telas.
Fronteiras do Universo, de Philip Pullman, pode não ser um universo tão detalhado quanto o de Martin, mas ainda sim é um desafio de ser adaptado. A Bússola de Ouro (2007) tentou, mas o apelo não foi suficiente para que a trilogia fosse concluída no cinema. Em 2019, a BBC One, em parceria com a HBO, lançou a primeira parte da versão em formato de série, His Dark Materials. Agora, com o fim da segunda temporada, podemos ter uma dimensão um pouquinho melhor dos méritos da adaptação.
Antes de tudo, é importantíssimo deixar claro que adaptar não significa copiar cegamente a obra original. Vira e mexe a Internet vira palco para chororô relacionado ao assunto, mas uma adaptação não tem obrigação nenhuma de seguir a história original como uma cartilha. O próprio nome já diz. Porém, ambos os caminhos possuem suas próprias questões. Se a escolha é seguir à risca o original, então é necessário que o impacto e a magia da versão sejam à altura da fonte que bebe.
Caso alterações mínimas ou brutas sejam feitas, essas precisam fazer sentido dentro do universo criado ali ou que sejam pelo menos justificáveis de alguma forma. Uma adaptação falha quando ela é uma cópia exata mas sem vida de sua origem, ou quando mais parece uma fanfic desmiolada que apenas se inspira em pontos chave. Graças à Autoridade, Jack Thorne, roteirista da série, teve bom senso em recriar o mundo de Fronteiras do Universo.
A primeira temporada, que segue os eventos de A Bússola de Ouro (1995), apesar de morna, foi bem sucedida em dar vida ao universo de Pullman (que é produtor executivo de HDM). Os problemas pontuais de falta de atenção à detalhes não pesaram tanto na conta, e a maior diversidade étnica e representatividade feminina compensaram as mudanças de personagens. Na trama, Lyra Belacqua (Dafne Keen), de 11 anos, uma órfã criada pela Universidade de Oxford de seu mundo fictício, tem como único parente próximo seu tio Lorde Asriel (James McAvoy).
A garota recebe um aletiômetro, objeto mágico que responde qualquer pergunta feita. A partir dessa premissa e inspirada pelas aventuras de seu tio, ela decide desbravar seu destino ao lado de seu dæmon, Pantalaimon. Dæmons são criaturas em forma de animais que manifestam a alma das pessoas no universo de Lyra. Em nosso mundo, é Will (Amir Wilson) quem precisa lidar com a doença da sua mãe e fugir de pessoas perigosas que ameaçam sua vida pelo passado de seu pai.
Os 8 primeiros episódios foram visualmente impecáveis, mostrando que a parceria BBC-HBO não foi barata, desde os dæmons em si até a estrutura física das locações de filmagem. Porém, o roteiro deixou um pouco a desejar. Por exemplo, a forma com que Lyra aprende rapidamente a usar o aletiômetro com clareza na série, em contraponto com o processo gradual dos livros. É um detalhe muito pequeno mas que ajuda a deixar os eventos menos orgânicos. Já as cenas com Ma Costa (Anne-Marie Duff de Sex Education) foram uma mudança extremamente positiva, enriquecendo e aprofundando as relações de Lyra com seu passado.
A representação do Magistério, a grande instituição religiosa que comanda a sociedade em suas ações sociais, religiosas e políticas, também foi satisfatória. Fronteiras do Universo já era importante vinte anos atrás, falando de forma tão explícita para leitores juvenis e adultos dos perigos de autocracias, principalmente aquelas que as mãos que mexem os fantoches são da Igreja.
Agora, com a ascensão do ultraconservadorismo no mundo, associado com os valores religiosos, His Dark Materials é ainda mais relevante. Cada vez mais a história se afunila em seu propósito, que não é apenas contar as aventuras de Lyra e Will, mas de, literalmente, derrubar a Autoridade e reconquistar a liberdade individual. Asriel funciona como um anti-Messias. É uma pena que pela pandemia não foi possível concluir as gravações do oitavo episódio da segunda temporada, que iria focar no Lorde e em sua República do Céu.
Para o segundo ano, Thorne desceu do pedestal e veio acompanhado de uma sala de roteiristas (aprendam D&D). Dessa vez a temperatura esquentou, e a trama pareceu mais organizada e sem os deslizes vistos anteriormente. Porém, algo ainda paira no ar de His Dark Materials, e não são os espectros de Cittàgazze. Enquanto nos livros tudo era interessante, na TV a parte mais maçante é justamente o plot principal. E a culpa não é apenas de Dafne Kee e Amir Wilson, que, por mais fofos que sejam, custam a convencer que não estão em um estúdio cobertos por holofotes, mas da forma com que seu caminho vem sendo escrito e como os próprios estão sendo dirigidos.
Não há profundidade, e até as cenas que deveriam ser emocionantes parecem faltar tempero. Claro que é interessante assistir ambos desbravarem seus destinos e firmarem sua amizade, mas o alívio é maior quando as cenas mudam para o Magistério, Marisa Coulter, Mary Malone ou Lee e John Parry, e isso não deveria estar acontecendo. Aliás, tirando a dupla dinâmica e sem química, os outros nomes da série carregam nas costas grande parte do mundinho His Dark Materials.
Ruth Wilson está absurda como Marisa, e é a grande estrela da produção. Enquanto sua filhota Lyra só faz cara de limão azedo, Ruth passeia sem esforços por um espectro de emoções e sensações episódio após episódio, e também dá vários shows ao lado do maravilhoso Ariyon Bakare. Os talentosíssimos Lin-Manuel Miranda (Hamilton) e Andrew Scott (Fleabag) igualmente brilham. O bromance de seus personagens, Lee Scoresby e John Parry, traz cenas de tirar o fôlego, em todos os sentidos possíveis.
As bruxas, porém, continuam mais servindo de apoio para Lyra e Will do que tendo um destaque verdadeiramente próprio. É uma pena, ainda mais com Ruta Gedmintas executando tão bem Serafina Pekkala, e Jade Anouka com sua Ruta Skadi. A maior adição da segunda temporada é sem dúvidas Simone Kirby. Mary Malone é uma das melhores personagens da saga, e a atriz encarnou perfeitamente a energia da cientista. Com a terceira parte de HDM confirmada, já dá para ficar roendo as unhas imaginando os eventos de A Luneta Âmbar adaptados para a TV. Os mulefas! Mas ao mesmo tempo não dá para negar um leve medo em como Thorne vai adaptar essa parte tão preciosa da história.
His Dark Materials ainda não sabe dosar muito bem os pesos e medidas na transição da escrita literária para o formato audiovisual. Ainda que seu universo encha os olhos, incomoda a desatenção a detalhes e principalmente a perda da riqueza de diálogos, raciocínios e representações que só o narrador onisciente consegue transmitir. Onde as palavras desapareceram, a série nem sempre é capaz de substituir as intenções pela linguagem não verbal, e aí criam-se lacunas que permitem a sensação de superficialidade.
Porém, a situação não é gravíssima: HDM tem sim um saldo muito positivo até agora, mas ainda falta aquele tcham. Talvez essa seja a maior questão de adaptações de fantasia, e no geral: a magia está em entender que formatos diferentes pedem tratamentos diferentes, e nem sempre as mesmas engrenagens vão funcionar nos dois. Mas um óleozinho ajuda e sempre vai bem.