Musical Hamilton no Disney+ e a experiência do teatro durante a quarentena

O filme do espetáculo de sucesso da Broadway teve sua estreia adiantada em streaming

Da esquerda para a direita: Leslie Odom Jr., Daveed Diggs, Lin-Manuel Miranda, Christopher Jackson and Renee Elise Goldsberry (Foto: Joan Marcus/Playbill)

Letícia Machado e Rafaela Thimoteo  

Como um bastardo, órfão, filho de uma prostituta e pai fundador dos Estados Unidos presente na nota de dez dólares se tornou um dos maiores fenômenos na indústria dos musicais e plataformas de streaming de todos os tempos?

Hamilton: An American Musical é um musical composto, escrito e protagonizado por Lin-Manuel Miranda. Norte-americano de família porto-riquenha que nasceu em Nova York, em 1980, Miranda se inspirou na biografia de Alexander Hamilton do historiador Ron Chernow para criar essa peça.

Pôster oficial da estreia do musical Hamilton no Disney+
(Foto: Walt Disney Studios)

Miranda estava férias de outro espetáculo que escreveu para a Broadway, In the Heights, em 2008, quando leu a biografia sobre Hamilton. Decidiu, então, não desperdiçar sua chance de fazer um musical totalmente inspirado na vida de um dos pais-fundadores dos Estados Unidos. 

O gênio por trás da obra já havia mencionado durante entrevistas que as pessoas subestimavam o potencial, a história e relacionamento de Alexander Hamilton com a cidade de Nova York. Foi a partir deste sentimento que o show começou a ser desenvolvido. 

Em maio de 2009, Miranda foi à Casa Branca, durante o evento Evening of Poetry, Music and the Spoken Word apresentar uma versão inicial da abertura do futuro espetáculo. Ele acabou surpreendendo e arrancando risadas dos convidados ao anunciar que faria um musical de hip hop sobre o primeiro Secretário do Tesouro dos EUA.

Lin-Manuel Miranda recebendo o prêmio de Melhor Trilha Sonora por Hamilton (Foto: Sara Krulwich/The New York Times)

O musical estreou em fevereiro de 2015 off-Broadway (termo utilizado quando um musical é exibido em outros teatros profissionais menores que a Broadway), no Teatro Público de Nova York e tornou-se um sucesso de bilheteria e críticas positivas. Em agosto do mesmo ano, foi transferido para o Teatro Richard Rodgers na Broadway e os ingressos foram esgotados ainda na pré-venda. 

De acordo com a Forbes, após esta estreia a disputa por lugares foi tão acirrada que alguns ingressos chegaram a custar cerca de US$ 11 mil. Ainda em 2015, o musical rendeu a Lin-Manuel Miranda o prêmio History Makers Award pela New York Historical Society, assim como o de Melhor Música, Melhor Letra e Melhor Libreto de Musical no Drama Desk Awards

Em 2016, Hamilton obteve o recorde de 16 indicações ao Tony Awards, e conquistando 11 prêmios, entre eles o de Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Ator, Melhor Figurino, Melhor Direção, Melhor Coreografia e o principal da noite: Melhor Musical. Hamilton também venceu como Melhor Álbum de Teatro Musical no Grammy e Lin Manuel Miranda recebeu o aclamado Prêmio Pulitzer de Drama.

Renée Elise Goldsberry, Daveed Diggs, Leslie Odom, Jr. e o elenco de Hamilton comemorando os prêmios recebidos no Tony Awards de 2016 (Foto: Sara Krulwich/The New York Times)

Da Broadway diretamente para o streaming 

Após o sucesso estrondoso, Lin decidiu realizar uma versão do show para o cinema com o elenco original. As filmagens foram realizadas em 3 apresentações diferentes, o que gerou alguns erros pontuais de continuidade, como a mudança de detalhes na roupa de alguns personagens, mas que não atrapalharam o êxito da obra. 

Devido à pandemia de COVID-19, o lançamento do filme que estava previsto para 15 de outubro de 2021, foi antecipado para 3 de julho de 2020, diretamente na plataforma de streaming Disney +, que chegará no Brasil somente em novembro deste ano. O trailer de Hamilton alcançou mais de 4 milhões de visualizações na data em que foi lançado. 

Influências

Se na música introdutória Alexander Hamilton afirma que “há milhões de coisas que ele ainda não fez” o show segue na direção oposta e faz o que outros musicais premiados da Broadway como O Fantasma da Ópera (1986) e Wicked (2003) não fizeram. De uma forma super contemporânea, o musical explora uma mistura gêneros usando o hip-hop, R&B, o pop e o soul

Com raps que chegam a alcançar a marca de 19 palavras em 3 segundos, como acontece em Guns and Ships, o ator coadjuvante Daveed Diggs (que interpreta tanto Lafayette quanto Thomas Jefferson) possui o recorde de rapper mais rápido da Broadway. Sua performance foi tão excepcional que ele recebeu o prêmio de Melhor Ator Coadjuvante de Musical no Tony. O espetáculo entrega também um número difícil de ser batido: segundo o Five Thirty Eight, Hamilton apresenta uma média de 144 palavras por minuto, quando na média, musicais da Broadway apresentam de 58 a 77 palavras por minuto. 

Momento em que a platéia vai ao delírio com Daveed Diggs e o rap mais rápido da noite em Guns and Ships (Gif: Walt Disney Studios)

O estilo musical de cada personagem também é individual, o que atrai ainda mais  à atenção para os mínimos detalhes. Enquanto o personagem Lafayette canta com um tom mais rouco em um rap rápido, certeiro, rimando várias palavras por estrofe em referência à rappers dos anos 90 como DMX, Ja Rule e Big Pun, Aaron Burr possui músicas com raízes no estilo musical popular jamaicano Dancehall.

Ao longo de quase 3 horas, os espectadores são capazes de se emocionarem com o R&B de Helpless e a balada romântica de Dear Theodosia, ou rirem do personagem Rei George III em You’ll Be Back e What Comes Next? no ritmo de um pop leve e divertido. 

Assim, o show apresenta músicas que atraem diversos tipos de público, que se emocionam, acredite se quiser, com a história de como o sistema econômico americano foi estabelecido. O sucesso das músicas também foi comprovado em 2016, quando o álbum The Hamilton Mixtape foi lançado e estreou em primeiro lugar na Billboard 200 com mais de 187 mil cópias vendidas.

A experiência visual

Um dos diferenciais que também garantiu pontos positivos para o filme foi a grande direção de Thomas Kail, cineasta norte-americano, também premiado com o Tony. A forma como as coreografias e o cenário foram meticulosamente montados colabora para que quem assista sinta a emoção dos atores. 

O terceiro dia de gravação do musical, que aconteceu sem a presença da platéia, garantiu cenas em planos fechados que detalham os sentimentos dos atores e até mesmo a saliva do Rei George III, interpretado por Jonathan Groff (Mindhunter), o que provoca uma experiência diferente até mesmo para quem já assistiu o musical no teatro.

“Satisfeito” fica o público com essa produção e performance (Foto: Walt Disney Studios)

O palco com o mecanismo circular móvel colabora para cenas em que as irmãs Schuyler andam pela “rua”, assim como em cenas no estilo Matrix no qual após um tiro a bala “caminha” lentamente pelo ambiente durante um monólogo.

Um dos destaques deste mecanismo está presente na música Satisfied, quando o movimento e a troca repetitiva de câmeras, combinados com as luzes e coreografia, provocam o efeito de retrospectiva e confusão de Angelica Schuyler. A personagem conta os fatos narrados na música anterior, mas desta vez do seu ponto de vista.

O palco da diversidade  

Além da inovar ao contar a história da independência dos Estados Unidos, um dos pontos mais marcantes de Hamilton é a inclusão de diversidade tanto nas letras das músicas quanto no elenco. Em alguns momentos da peça, as músicas falam sobre a questão dos imigrantes, sobre a busca por uma vida melhor e também fazem críticas à escravidão. 

Em Cabinet Battle #1, Hamilton enfrenta Thomas Jefferson em uma batalha de rap e critica o oponente dizendo que o Estado de Jefferson só possuía dinheiro suficiente para pagar as dívidas porque não distribuía salários, ou seja, seu lucro vinha da exploração de escravos.

Os pais fundadores se enfrentam numa competição de rimas (Gif: Walt Disney Studios)

O musical destaca atores negros, asiáticos e latinos para protagonizar os personagens da peça, quebrando paradigmas e mostrando que apesar da adaptação falar sobre figuras históricas que eram em sua maioria brancas, nada impede que sejam interpretados por pessoas de etnias diferentes.

A questão migratória também está muito atrelada a narrativa, tanto que em 2016, no lançamento de The Hamilton Mixtape, uma das músicas, intitulada Immigrants (We Get The Job Done), aborda a situação dos imigrantes, a injustiça que sofrem e critica o discurso xenofóbico.

Marquis de Lafayette (da França) e Alexander Hamilton (do Caribe) celebram o fato de serem imigrantes e contribuírem para a revolução no país (Gif: Walt Disney Studios)

A História está de olho em você

Mesmo recebendo prêmios e reconhecimento por contar de uma forma atual e dinâmica a história da independência dos EUA e a vida de Hamilton, é importante lembrar que o musical é uma adaptação de fatos reais, não um livro de História. Lin- Manuel Miranda alterou alguns elementos para desenvolver a narrativa. 

John Laurens, interpretado pelo ator Anthony Ramos fala sobre seus ideais abolicionistas (Gif: Walt Disney Studios)

Em My Shot, Alexander fala sobre “um grupo de amigos abolicionistas” em referência a seus companheiros Laurens, Lafayette e Mulligan. Porém, mesmo participando de uma organização em prol da abolição e criticando Jefferson, alguns historiadores afirmam que Hamilton não tinha essa luta como prioridade. A família de sua esposa tinha escravos, assim como George Washington, de quem ele era muito próximo.

Em entrevista à Vanity Fair, Christopher Jackson, que interpreta George Washington, diz que como um homem negro, teve de conciliar estar na pele desse personagem e mostrar de alguma forma a vergonha de Washington em relação a escravidão, assunto que o personagem não cita diretamente durante a peça, mas que retorna em Who Lives, Who Dies, Who Tells Your Story.

Eliza se posiciona contra a escravidão e fala sobre Washington; o personagem se afasta dos holofotes e abaixa a cabeça em sinal de vergonha (Gif: Walt Disney Studios)

Outro ponto de destaque é a presença das Schuyler Sisters: Angelica, Peggy e Eliza. Lin Manuel Miranda mudou pontos da história das irmãs, como ao escrever que Angelica era a mais velha e não tinha irmãos, portanto tinha que casar com um homem rico e subir socialmente ao invés de ceder à sua paixão pelo pobre Alexander.  

Registros históricos apontam que isso não é verdade. Angelica Schuyler tinha diversos irmãos, já era casada há anos e inclusive tinha filhos antes de conhecer Hamilton. Além disso, não estava presente quando ele e Eliza se encontraram. 

Miranda diz que ignorou esses fatores pois o musical seria dramaticamente mais interessante se Angelica não pudesse se casar com Hamilton por pressões sociais. Ele também buscava mostrar a personagem como uma intelectual, com visões feministas. Em The Schuyler Sisters, a atriz Renée Elise Goldsberry que interpreta Angelica, canta: “Eu tenho lido O Senso Comum de Thomas Paine e, por isso, os homens dizem que sou intensa ou louca”

Angelica fala sobre incluir as mulheres nas decisões enquanto caminha com suas irmãs pelas “ruas de Nova York” (Gif: Walt Disney Studios)

Em Ten Duel Commandments os personagens falam sobre as dez regras que devem seguir durante os duelos armados. Apesar de pesquisas apontarem que existiam na verdade vinte, Miranda decidiu colocar apenas metade influenciado pela música Ten Crack Commandments do rapper Biggie Smalls.

Uma batalha de momentos marcantes 

É impossível falar desse musical e não destacar o trabalho do ator e cantor Leslie Odom Jr., que inclusive ganhou o Tony de Melhor Ator pelo personagem Aaron Burr. Seu papel como do rival de Hamilton evidencia a diferença na personalidade de ambos. Em Wait For It e Room Where It Happens conhecemos mais sobre o personagem, suas ambições e o porquê dele agir da forma que age.

A relação entre Alexander Hamilton e Aaron Burr ao longo da narrativa é um aspecto essencial na história. Somos apresentados aos personagens e descobrimos mais sobre a guerra, seguindo sempre um contraponto entre as opiniões de ambos. Burr é mais sucinto e contido, enquanto Hamilton sempre expõe suas opiniões.

Na primeira vez que se encontram Burr aconselha Hamilton a ser mais discreto e a cena desperta risadas da plateia (Gif: Walt Disney Studios)

Há sempre um paralelo entre os dois, como quando dizem que duelos são imaturos e não resolvem nada, mas no final acabam duelando entre si. Em Dear Theodosia, Burr expressa seu amor pela filha, enquanto Hamilton fala sobre seu filho. Por um momento a rivalidade entre eles dá lugar a um tom de delicadeza e emoção. 

E por falar em trechos emocionantes, a atriz de ascendência chinesa Philippa Soo, que interpreta Eliza, protagoniza um dos momentos mais marcantes do show na música Burn. Ressentida, ela canta enquanto põe fogo nas cartas que recebeu de Alexander.

Alexander sempre se dedicava à escrita, nesse momento, porém, vemos Eliza queimar as palavras que um dia ele escreveu para conquistá-la (Foto: Walt Disney Studios)

Os paralelos entre as cenas continuam, a exemplo da primeira frase do musical: “como um bastardo, órfão, filho de uma prostituta…”, que surge quando Burr se refere a Hamilton. O protagonista também repete “eu imagino tanto a morte que parece mais uma memória”, pois um dos seus objetivos era deixar um legado antes de morrer. O mesmo paralelismo ocorre nas músicas mais voltadas ao desenvolvimento das batalhas, como em Right Hand Man e Yorktown. Em Non Stop trechos de várias outras músicas são cantadas ao mesmo tempo, em uma espécie de catarse. 

O fenômeno cultural Hamilton não apenas abriu portas para uma nova maneira de se contar um fato histórico, como também inovou o cenário teatral em aspectos como a construção das letras, ritmo musical, diversidade no elenco e interação com o público. Seguindo um modelo diferente das adaptações convencionais como Les Misérables (2012) e Cats (2019), Hamilton foi um dos primeiros musicais a ser disponibilizado por streaming em sua versão original, entregando para muitos fãs que ansiavam pelo lançamento e acompanhavam pelo Spotify, Twitter e Youtube, a sensação de assistirem diretamente da Broadway, da sala onde tudo aconteceu.

Um comentário em “Musical Hamilton no Disney+ e a experiência do teatro durante a quarentena”

  1. Muito bacana mesmo a ideia do Lin em trazer o rap hiphop e outros estilos musicais que advém da cultura POC para um dos símbolos do elitismo dos EUA (Broadway). Mas são válidas as críticas que rolam nas redes sociais à distorção histórica, ainda que o musical não tenha compromisso com a realidade.
    Acabou que Hamilton, quando foi lançado, apareceu como um símbolo de inserção POC, mas agora ele não é mais suficiente, sendo até mesmo criticado pela mesma comunidade que o abraçou no início. É aquilo né, a sociedade vai evoluindo e nós demandamos sempre mais, mas acredito que isso não tire a importância que o musical teve.
    Parabéns pela matéria, muito legal.

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